TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 59-60

ÀS DUAS DA MANHÃ

Como, 20 / Jan. / 64.

A lua, suavemente pálida, escondera-se no fim do mundo e a noite era de breu e cheia dum frio e denso cacimbo que formava um muro alto e forte que os nossos olhos não eram capazes de vencer e, junto a ele, acocorados, medos e sustos.

Um tiro súbito, seguido de mais dois, partira do meu lado esquerdo e, passando-me rente aos ouvidos, interrompeu-me o sono, sobressaltou-me, quebrou a noite.

Ergui-me. Indaguei o que quer que fosse, porque não via nada. Então, o vigia, que disparara à queima roupa, disse-me que três vultos, de pé, se aproximavam vagarosamente do meu abrigo e que, quando atirara, desapareceram num momento e nunca mais vira nada e que, talvez, fosse alguém que ainda não soubesse da nossa presença ali. (E eu acrescento: talvez, gente que nada tem a ver com a guerra...). E o Abílio concluía em voz serena, como bom cumpridor do seu papel:

– Decerto, vinham buscar a bandeira…

Eram duas horas da manhã.

Um vento húmido, de norte, trazia o cheiro horrível a carne a apodrecer algures, cortado pelos estrondos da artilharia que se prolongavam por distâncias infindáveis. / 60 /

Quando acordei com o sol a dar-me nos olhos piscos, fiquei-me a saborear longamente a alegria de viver nas fumaças dum cigarro que pedi, enquanto espirais de fumo erguiam cânticos e preces à vida. Perto, uma esteira enrolada e uma cabaça partida que eles deixaram na fuga.

 

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