TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 56-58

BANDIDOS DUM RAIO

Como, 18 / Jan. / 64.

Sábado.

Aquele silêncio, ao entardecer, fazia espanto, pois, noite e dia, quando menos se esperava, éramos açoitados.

E, como aquilo já caíra na rotina, quase não fazíamos caso. Eles que viessem!

Sim, o silêncio pesado como agouro de asas negras, prolongado, era um grito estranho na noite que trazia sobre nós uma atmosfera de excitação. Estariam eles a traçar planos, ciladas, ou ter-se-iam esquecido?

Acabara de desfiar meu terço de ave-marias. É preciso ter fé quando a nossa vida está toda nas mãos de Deus e da Pátria. De repente, atordoou-se o silêncio, quebraram-se os ares. As balas não vinham só do mato, mas cruzavam-se em todos os sentidos. Tinham montado um cerco em ferradura. Dum e doutro lado era um vomitar de fogo que as estrelas pareciam tremer com a loucura dos homens e a terra fugia debaixo do corpo estendido. Granadas de mão iluminavam por segundos o espaço, desventravam a terra, faziam tremer.

O abrigo do Júlio era o mais assediado. Como estava coberto de colmo por causa do cacimbo, os turras julgavam que fosse um ninho de metralhadora. E iam-se aproximando, bem colados ao solo, entre a erva seca, fazendo fogo e lançando granadas. Das três armas do / 57 / abrigo só uma estava em condições de funcionar. As granadas rebentavam ali a dois metros e enchiam de poeira o rosto do Júlio que suava em bica. E tão confuso estava que perguntou:

– Muge, tenho sangue?

– Não! Isso é terra e suor…

E o Muge levantava-se e arremessava granadas, enquanto o Nobre enchia os carregadores.
Eles continuavam a aproximar-se. De cotovelos apoiados no parapeito, o Júlio aguentava firme, mas as mãos é que já lhe doíam. Estavam queimadas, porque a arma estava em brasa.

Uma granada, entretanto, caiu sobre o parapeito.

E no abrigo do lado, o Copio gritou:

– Ai que o nosso furriel já morreu! – E desmaiou.

As munições escasseavam e parecia que aquilo estava para durar. Então, o Muge foi pedir mais metralha. Mas, como se demorasse, o Júlio começou a pensar o pior: «Já está para aí varado...» E, entregando a arma ao Nobre, foi ter com o Bretão, a rastejar, debaixo de fogo cerrado, bem colado a si e ao chão, e, ao chegar junto do abrigo, atirou-se de cabeça para dentro.

– Que é isso? – perguntou-lhe o Bretão ao ver que ele, atordoado, não dizia nada.

– Isto não é do medo... é do cansaço…

– Tenha calma! – E mandou o Casinhas como reforço. De vez em quando, uma ou outra bala, batendo no parapeito do abrigo, assobiando, lançava-me terra para os olhos. Outras, vindo de trás, carimbavam a árvore ao meu lado. Eu tremia todo e disfarçava o medo e o tique nervoso, batendo com os pés no chão, enquanto recebia ordens do centro, agarrado ao AN/PRC10. O capitão transmitia:

«Calma no fogo! Poupem munições...»

«Correcto» – respondia-lhe eu.

«Há alguma coisa de anormal ?»

«Tudo normal...»

Porém, a força e a violência do fogo que partia das nossas linhas, acompanhado de morteiro, convenceu-os do perigo que corriam. Além disso, tinham mortos e feridos. Era melhor cavar. / 58 /

Perto, gritos lancinantes de dor alegraram-nos as mãos presas ao gatilho e poças de sangue humedeceram a terra, a bolanha seca, encarquilhada.

O capitão, repisando as palavras:

«Devem estar a retirar... Muita atenção!»

«Correcto...»

Uma hora e tal de inferno na noite cheia de calafrios e terror!

Corri os abrigos da minha área. Soube que o Rodrigues apanhara um tiro num dedo. Tudo estava mais calmo. Respirava-se mais fundo, como se cada um acordasse dum pesadelo medonho, e trocavam-se, baixinho, as primeiras impressões.

O Silva dizia:

– Bandidos dum raio! Mil macacos lhes mordam as orelhas! Vieram-me estragar a noite... – E limpava a testa às mãos.

E o Carneiro desabafava:

– Um estupor qualquer, ali em frente, dava-me que fazer, mas, por fim, fi-lo calar…

E concluía um tanto orgulhoso de si e da sua arma: – O diabo que o carregue!

Entretanto, o silêncio veio quebrado, aqui e ali, por tiros isolados, que matavam o resto das sombras e fantasmas, enquanto as fogueiras do outro lado, pouco a pouco se iam definhando...

 

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