Como, 18 / Jan. / 64.
Sábado.
Aquele silêncio, ao
entardecer, fazia espanto, pois, noite e dia, quando menos se esperava,
éramos açoitados.
E, como aquilo já caíra na
rotina, quase não fazíamos caso. Eles que viessem!
Sim, o silêncio pesado como
agouro de asas negras, prolongado, era um grito estranho na noite que
trazia sobre nós uma atmosfera de excitação. Estariam eles a traçar
planos, ciladas, ou ter-se-iam esquecido?
Acabara de desfiar meu terço
de ave-marias. É preciso ter fé quando a nossa vida está toda nas mãos
de Deus e da Pátria. De repente, atordoou-se o silêncio, quebraram-se os
ares. As balas não vinham só do mato, mas cruzavam-se em todos os
sentidos. Tinham montado um cerco em ferradura. Dum e doutro lado era um
vomitar de fogo que as estrelas pareciam tremer com a loucura dos homens
e a terra fugia debaixo do corpo estendido. Granadas de mão iluminavam
por segundos o espaço, desventravam a terra, faziam tremer.
O abrigo do Júlio era o mais
assediado. Como estava coberto de colmo por causa do cacimbo, os turras
julgavam que fosse um ninho de metralhadora. E iam-se aproximando, bem
colados ao solo, entre a erva seca, fazendo fogo e lançando granadas.
Das três armas do
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abrigo só uma estava em condições de funcionar. As granadas rebentavam
ali a dois metros e enchiam de poeira o rosto do Júlio que suava em
bica. E tão confuso estava que perguntou:
– Muge, tenho sangue?
– Não! Isso é terra e suor…
E o Muge levantava-se e
arremessava granadas, enquanto o Nobre enchia os carregadores.
Eles continuavam a aproximar-se. De cotovelos apoiados no parapeito, o
Júlio aguentava firme, mas as mãos é que já lhe doíam. Estavam
queimadas, porque a arma estava em brasa.
Uma granada, entretanto,
caiu sobre o parapeito.
E no abrigo do lado, o Copio
gritou:
– Ai que o nosso furriel já
morreu! – E desmaiou.
As munições escasseavam
e parecia que aquilo estava para durar. Então, o Muge foi pedir mais
metralha. Mas, como se demorasse, o Júlio começou a pensar o pior: «Já
está para aí varado...» E, entregando a arma ao Nobre, foi ter com o
Bretão, a rastejar, debaixo de fogo cerrado, bem colado a si e ao chão,
e, ao chegar junto do abrigo, atirou-se de cabeça para dentro.
– Que é isso? –
perguntou-lhe o Bretão ao ver que ele, atordoado, não dizia nada.
– Isto não é do medo... é do
cansaço…
– Tenha calma! – E mandou o
Casinhas como reforço. De vez em quando, uma ou outra bala, batendo no
parapeito do abrigo, assobiando, lançava-me terra para os olhos. Outras,
vindo de trás, carimbavam a árvore ao meu lado. Eu tremia todo e
disfarçava o medo e o tique nervoso, batendo com os pés no chão,
enquanto recebia ordens do centro, agarrado ao AN/PRC10. O
capitão transmitia:
«Calma no fogo! Poupem
munições...»
«Correcto» – respondia-lhe
eu.
«Há alguma coisa de anormal
?»
«Tudo normal...»
Porém, a força e a violência
do fogo que partia das nossas linhas, acompanhado de morteiro,
convenceu-os do perigo que corriam. Além disso, tinham mortos e feridos.
Era melhor cavar.
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Perto, gritos lancinantes de
dor alegraram-nos as mãos presas ao gatilho e poças de sangue
humedeceram a terra, a bolanha seca, encarquilhada.
O capitão, repisando as
palavras:
«Devem estar a retirar...
Muita atenção!»
«Correcto...»
Uma hora e tal de inferno na
noite cheia de calafrios e terror!
Corri os abrigos da minha
área. Soube que o Rodrigues apanhara um tiro num dedo. Tudo estava mais
calmo. Respirava-se mais fundo, como se cada um acordasse dum pesadelo
medonho, e trocavam-se, baixinho, as primeiras impressões.
O Silva dizia:
– Bandidos dum raio! Mil
macacos lhes mordam as orelhas! Vieram-me estragar a noite... – E
limpava a testa às mãos.
E o Carneiro desabafava:
– Um estupor qualquer, ali
em frente, dava-me que fazer, mas, por fim, fi-lo calar…
E concluía um tanto
orgulhoso de si e da sua arma: – O diabo que o carregue!
Entretanto, o silêncio veio
quebrado, aqui e ali, por tiros isolados, que matavam o resto das
sombras e fantasmas, enquanto as fogueiras do outro lado, pouco a pouco
se iam definhando...
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