TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 54-55

VOZ ESTRANHA

Como, 17 / Jan. / 64.

Sinto-me em baixo. A alma pesa-me como chumbo. E causa-me calafrios a morte daqueles dois moços que, ao entardecer, foram encontrados nus. Só lhes deixaram as meias enfiadas nos pés, por algum motivo religioso. De resto, levaram-lhes tudo. Tinham o sexo mutilado, o nariz arrancado e os olhos, e, pelos rasgões espalhados pelo corpo, tudo leva a crer que lutaram corpo a corpo, quando se viram sós e sem munições. Nesse dia os turras vieram mesmo à fala, atacando em massa a unidade que desembarcara do outro lado da ilha. Mas, ao meio da tarde, foram de rota batida, perseguidos, deixando mortos e feridos para trás. Foi, então, que eles se perderam para sempre.

Sinto-me em baixo. E estive mesmo tentado a pôr de parte a intenção de contar as guerras. Mas achei que devia trazer para a luz o que anda nas sombras: o mistério do sangue. E não escrevo tanto para os outros como para mim, para me sentir mais liberto do tédio que me rói as entranhas. Há quem exagere ao contar a paisagem da sua vida. Porém, eu prometo não sair dos caminhos e perigos do mato, mas os meus caminhos e perigos. Não contarei nada com cores carregadas. Cada palavra será tão real como a morte ou o sofrimento. Não quero que ninguém fique com a impressão de que / 55 / este diário é pura ficção nem, tão pouco, que me mascarem de valente. Faço tudo por vencer, cumpro e é tudo. Sei mesmo que poderia nem ter começado. Mas hoje senti uma coragem de vencer o silêncio das minhas próprias palavras. Uma voz estranha me intimou a continuar a escrever: aquela morte. Escreverei para mim e não para a eternidade. E aqui estarei para chegar até ao fim.

Obs. – Todo este cap.º foi assinalado pelo censor com um traço vertical na margem esquerda.

 

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