TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 52-53

SOBREVIVÊNCIA

Tomo, 16 / Jan. / 64.

A sede queima, devora e gasta as forças e nada mais precioso, então, do que a água que em campanha é um dos grandes problemas. Ali, em Cauane, não havia um poço sequer. Só mais longe, a uns trezentos metros, junto à casa do tal Brandão, o único branco que ali vivera, há tempos, onde montara os seus negócios e fizera fortuna. Ele casara com a filha da rainha dos Bijagós e vivia agora em Catió. O filho, que diziam ter morrido, andara com os terroristas, o Chiquinho.

Mas não estaria a água envenenada? Mais tarde, quando a tabanca caiu toda em explosões de fumo e pó, de pedras e paus pelos ares, encontrou-se uma bisnaga vazia, de cor castanha, onde explicava em língua francesa o modo de se usar.

Por isso, ontem, alguns filtraram para beber a água estagnada e verde duma poça, onde se refrescavam suínos, quando chegámos…

Porém, a sobrevivência dá-nos sempre uma inspiração. Quem não se lembra ainda dos poços que fazia em criança na praia ou à beira da casa? Por isso, eis-nos, hoje, de enxada e pá nas mãos, à busca de água que, graças a Deus, se encontra à superfície, embora salgada por vezes. Não importa que seja um pouco suja e que não chegue para lavar o rosto, as mãos. Importa é que haja água para matar a sede. / 53 /

E como a vida nos traz algo de novo cada dia! Quem havia de dizer para consigo e para com os seus botões que havia de pilar arroz, como as bajudas? No entanto, eis alguns moços descascando desajeitadamente arroz nos pilões para fazerem algum petisco, já que a ração do combate não sabe a nada. E, palavra, que não é nada fácil.

Mas a fome é negra e amarga.

Mas, morrer assim, de boca vazia, como uma planície abandonada, sem pão, não se morre. Basta correr atrás de cabritos e vacas (ou derrubá-las com um tiro certeiro), agarrar-lhes pelo rabo e não importa que elas nos levem de rastos, pois, daí a meia hora, os bifes sabem bem.

E, às vezes, até dá para rir.

– Agarra! Pega essa!

– A tua força é de lesma…

Depois, o talho monta-se em qualquer lado, ao ar livre. Esfola-se, estripa-se, cortam-se as quatro pernas que se penduram num ramo de árvore ou nas paredes de alguma casa e aproveitam-se os lombos. O resto vai para debaixo de terra. Não há balança, mas há o sentido de família, a camaradagem. Tudo o que morre é para todos.

E o sal? E o pingue?

Até eu me dei hoje comigo, tronco nu, sentado num monte de areia, a fazer bifes na marmita com o resto do azeite duma lata de sardinha...

 

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