TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 50-51

NERVOS NUM FEIXE

E fez-se a noite do primeiro dia, escura e cheia de medos e fantasmas. Qualquer folha ou fruto caindo das árvores ou bulindo no chão (ou mesmo o roçar das cobras verdes na folhagem), qualquer sapo saltitando, caindo no abrigo, lembrava um passo estranho que arrepiava. Em frente, na mata, separada de nós por uma pequena bolanha encharcada, duas ou três fogueiras crepitavam cinicamente. E não imaginam como aquilo fazia subir à cabeça uma dose tão grande de irritação que pedia vingança. Ao meu lado ouvi dizer:

– Ah, ladrões, se eu um dia vos apanho a jeito...

E, de vez em quando, as brasas brilhavam no espaço, saltando, quando a pontaria de algum que nada perdoa, e, muito menos, a troça de bandidos, lhes caía em cima.

Dormir assim num buraco, aos três, estando sempre um de vigia, aos mosquitos ferozes, às estrelas perdidas longe, ao cacimbo, quando o inimigo nos espreita astuciosamente, não é nada cómodo. E muito menos cómodo ainda, porque do lado de lá toda a noite cuspiram fogo sobre nós. Acreditem: aquilo era de fazer os nervos num feixe.

Mas a manhã veio-nos com ares de paz. Galos cantando hinos ao sol para os lados da mata, cordeiros e crianças balindo longe e, junto a um abrigo, uma vaca morta. Seria alguém? Pelo sim pelo não, o mais seguro / 51 / foi atirar certeiro, pois que, de noite, todos os gatos são pardos.

Quando acabei de comer duas bolachas m. m. com um pouco de marmelada (bolachas que empanturram, secas como palha), deitei-me à sombra duma casa a descansar os músculos.

Ali perto, alguns homens andavam aos cabritos, trazendo-os ao colo, o que irritou os vizinhos, os maus vizinhos, que começaram, de novo, a festa. E não houve remédio senão ir para o abrigo. Descalço, larguei o pano de tenda onde me estendera e, aproveitando a cobertura duma árvore, num momento, estava no abrigo de arma na mão.

Alguns berravam aos bandidos que ripostavam com mais violência.

– Se é para mim venha mais! – clamava o Paulino.

– Faz a pontaria mais baixa! – vociferava o Copio, acrescentando palavras de linguajar de almocreve.

– Eh, ursos! Camelos dum raio! – era clamor geral.

E, como ninguém desse um único tiro, eles resolveram calar-se e eu fui outra vez repousar. Mas o coração e a alma caíram-me num poço sem fundo, quando dei com os olhos num buraco, mesmo ao centro. Fora uma bala perdida que varara o pano de tenda.

Olhei o céu. Agradeci a vida.

 

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