TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 39-41

GENTE SEM CABEÇA

T30 / Nov. / 63.

Chegámos ao destino.

Sentámo-nos à sombra de uma velha árvore e alguns começaram a gravar, a canivete, na casca lisa do tronco, nomes e datas.

A casa, que sobressaía, era a do chefe da tabanca, feita de adobes e toscamente pintada de um amarelo pálido, à frente da qual presidia à vida de todos a bandeira das quinas. Ele disse-me que havia ali alguns doentes, mas que estavam na casa do menino morto.

E, falando eu de bandidos, ele disse-me:

– Isso ser gente sem cabeça, nosso alfero!

E apontando-me alguns rapazes que tinham cumprido o serviço militar:

Aqui tudo português limpo, nosso alfero!

Depois mostrou-me radiante, como um pai carinhoso, o filho mais novo que tinha um ano e trazia ao peito um talismã para afastar o feitiço:

Filho, menino di mim…

Quando chegámos à casa do menino morto, um ror de gente estava sentada à porta, de pés cruzados, sobre esteiras, e conversava em voz baixa. Em volta das laranjeiras, dezenas de cabeças de gado. Milhares de moscas pousavam em tudo. À uma, todos nos estenderam as mãos. Era um nunca mais acabar.  / 40 /

A visita às tabancas é fundamental a fim de criar nos seus habitantes uma confiança sólida.

/ 41 / Então, apareceram algumas mulheres que traziam desajeitadamente crianças nos braços, dizendo:

– Menino cabeça quente... mist mesinho!

E o enfermeiro, passando a mão pela testa das crianças, fazia-lhes engolir um comprimido e explicava com dificuldade às mães quando lhes deviam dar os outros. E, às vezes, esfregava com pomada as costas de algum velho. Para o negro, tomar comprimidos, andar com um penso num braço ou num pé, e apanhar injecções é manga di ronco. E é tão verdade que o número dos doentes foi aumentando de tal modo que, ao fim e ao cabo, toda a gente tinha a mesma doença: cabeça quente, dores nas costas. Até eu tive que fazer de enfermeiro, dando comprimidos e mais comprimidos.

No fim, o homem grande deu-nos laranjas e pediu para tirar connosco uma fotografia, o que nós aceitámos. Era uma pequena prova de amizade.

 

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