TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 42-43

UMA TIGELA DE LEITE

T12 / Dez. / 63.

Comecei por meter água muito cedo, às quatro da manhã. E não me meti ao riacho para agarrar a lua, porque ela se escondera longe, mas, porque não sendo bom equilibrista, escorreguei da ponte, feita com dois troncos de palmeira.

Depois, na tarde, a ferver, corri como um louco, como os outros que corriam à minha frente, sem saber porquê. A razão só a soube, e de que maneira, quando me vi metido numa emboscada de abelhas, que obrigaram muitos a atirar as armas por terra para se sacudirem. De facto, era um exército aguerrido e bem armado que criou pânico e deitou muitos por terra em penosa quietação. O Napoleão ficou com as orelhas em sangue. E começaram a aparecer os inchaços nas orelhas, mãos e olhos, que alguns esfregavam com dentes de alho.

Pela violência do ataque, emocionado, o cabo cento e oito caiu ensopado em suor de tanto correr. Dizia que estava almariado. Deitou-se na maca, abriu-se-lhe a roupa e até ao fim do dia andou aos ombros por veredas, entre mato alto e capim, por tabancas e tabancas, todas vazias, mas com sinais de vida: rebanhos e pegadas frescas. E ninguém pelos campos.

Entretanto, a noite estugou-nos o passo e deu-nos / 43 / uma fonte de água límpida para matar a sede que gretava os lábios. Ali, perto, ficava uma tabanca de fulas armados.

Um velho, de barba branca, com uma túnica verde, homem grande, trouxe uma tigela de leite e açúcar para o capitão que, agarrando numas moedas, lhe agradeceu.

Bajudas enchiam pequenas cântaras de barro na água corrente com os cabaços. Rente à orla da mata, garotos nus, cheios de guardas de corpo, guardavam uma enorme manada de vacas, numa algazarra quase festiva.

Depois de cavarmos os abrigos e limparmos convenientemente os campos de tiro, num quase descampado, alguns moços puxaram das latas de chouriço e começaram às voltas com elas, devorando os nacos de chouriço com bolachas m. m. (Manutenção Militar) e, às vezes, davam à língua, cavaqueavam:

– Caramba! Hoje, nem bandidos, nem tiros! Dia de sorte!

– Talvez venham para a batucada logo pela calada da noite... está mais fresco.

E, dando mais uma bocadada, o Silva dizia, concluindo:

– Mas já sabem: homem que eu enfie na arma é homem dobrado em dois.

Dormimos ao ar livre.

Havia estrelas para quem fosse poeta e sonhador, mas dormir assim, aos dois e três, em constante alerta, em círculo, metidos em buracos cavados à pressa, cobertos de folhas e ramos tenros para afofar o leito, debaixo dum cacimbo que não perdoa o bater do dente nem, de quando em quando, um arrepio pelo corpo todo – era doloroso. Dormir, não se dormiu, porque o medo espanta e o frio gela e o cansaço imenso agarrado aos pés amortece a vida. Mas, quando surgiu a manhã, em dois ou três segundos, estávamos em marcha, como se fôssemos um único homem.

À porta da tabanca amiga, o homem de barba branca tinha um cesto de bananas que distribuía, uma a uma, pela longa fila, enquanto, lá ao fundo, três burros bebiam água num riacho distraidamente.

 

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