TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 37-38

UM BURRO COM SORTE

Bissorã, 24 / Nov. /63.

Há dias numa carta perguntaram-me como passo o tempo. Como passo o tempo? Eu vos conto.

Faço as minhas guerras, apanho imensos sustos (custa tanto morrer, quando o sonho nos baptiza cheios de esperanças na vida...), escrevo cartas de saudades e versos de exílio, penso na terra e sonho o encanto dum lar feliz com flores e crianças e um berço. Ergo os olhos e as mãos e a alma para o céu, filho duma esperança eterna. E, muitas vezes, também passo as horas longe de mim, perdido entre manhãs de nevoeiro sem existir.

Para me distrair e fugir do tédio, ou leio anedotas para manter o bom humor nas horas difíceis, ou pego no arco e atiro setas gentias a alvos de papel, espetados num eucalipto, árvore tão rara nas terras da Guiné. Não tenho o vício do fumo ou das cartas. Por isso, jogo póquer ou damas, mas não queimo a vida num cigarro inútil e prejudicial. E agora faço as minhas cavalgadas.

O meu Platero ficou prisioneiro um dia em Fajonquito e tomou parte numa aventura perigosa com iguais irmãos de infortúnio. Atravessou as bolanhas e a picada, carregado de cartucheiras, e aguentando os dois que lhe deram ordem de prisão, metendo-lhe uma corda ao pescoço.

É dum ruço preto-branco, tem ares de infeliz dentro / 38 / do arame farpado e não gosta lá muito da cor da minha pele. Quando lhe bato por me fazer alguma patifaria, pincha, relincha e foge-me num passo desacertado e pensa noutra partida a pregar-me na primeira ocasião.

– Arre, bandido! Goss, goss…

Mas gosto do meu Platero e, ao cair da tarde, de arma a tiracolo, vou dar-lhe de beber ao rio.

– Arre, bandido! Goss, goss...

 

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