TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 34-36

TARDE NA BOLANHA

Eis-nos a caminho da Flora.

Novembro, 63. Duas da manhã.

A noite era uma caverna escura que os olhos não conseguiam rasgar por entre o cacimbo. Para não nos perdermos, andávamos de mãos apoiadas nos ombros uns dos outros. De repente, caímos todos por terra, fulminados, embrulhados num silêncio de espasmo e expectativa. Estremeci. Um macaco estremunhado – sentinela inútil naquela árvore que a velhice e o tempo tombaram – rumorejou os ramos secos num ou dois saltos e gritou no capim meio amadurecido.

Lá mais longe, caíram-nos as mãos dos ombros. E, por momentos, as labaredas das casas de mato encapelaram-se num frenesim vermelho de cor e morte, em línguas afiadas que pareciam devorar o sol que rompia por detrás.

Mas ali não era paragem e a distância começou a alongar-se sempre a nossos passos. Longe, os jactos rugiam fogosos sobre os covis da Flora e os estrondos ecoavam, perdendo-se num turbilhão de ruídos. Pelos arredores, cheirou a pólvora, a caçadores. Alguém tinha fugido. À beira do trilho estreito, rastos de há pouco, farrapos e um canhangulo embrulhado numa esteira.

Lá adiante, a tabanca estava deserta. Nem um velho, nem uma criança. A um canto duma palhota, havia um / 35 / cabaço com meia dúzia de bocados de fígado, misturados num punhado de arroz, talvez cozinhado na véspera. E uma bicicleta.

Dentro das cercas, os cabritos espreitavam os estranhos, metendo o focinho nalgum buraco. E, enquanto se passava revista, alguns divertiam-se. Treinavam a pontaria, atirando setas nas velhas cântaras de barro e os escombros foram mais uma vez uma mancha negra na paisagem.

Continuámos.

O mato era denso, irritante. Quando se nos deparou a bolanha, descansámos os músculos. Era meio-dia. E, para enganar a fome, começámos a mastigar pedaços de cana de açúcar que ali colhemos.

Depois, veio o inferno. Cruzámos as armas no peito.

– Lá vamos nós meter outra vez água... – dissera o moço que me seguia. E começou a contar uma anedota qualquer com certa dose de pimenta.

O pântano é doentio e amachuca.

A água podre, dum vermelho lodoso, cheia de sargaços e algas e espadanas, sempre afiadas para cortes e arranhões, estendia-se, perdia-se de vista, não sei onde.

À frente, o Fula levava a bicicleta às costas.

Do lado esquerdo, ficavam as casas de mato da Flora. E se eles atacassem? Só sei que seria um prego de dois bicos. E dos bandidos libera me, Domine!

Mas, enfim, enquanto os sargaços iam teimando em prender-me os pés ao lodo, deixei-me perder. Viajei-me.

Evoquei: o homem não é limitado nem no espaço nem no tempo e, por isso, não quero os pés ou os braços amarrados. E corri despreocupado até ao fim das recordações da infância (eu nunca matarei o menino que fui dantes!) até ao fim da aldeia branca. Foi lá que aprendi a amar os outros para além do arremessar pedras ao sino da capela ou desenhar flores e bonecos exóticos ou a minha bicicleta em todas as paredes…

Sim, viajei. Mas não quis aquela bicicleta do fula para fazê-lo. Preferi aquela que fiz de madeira. Dizia-me mais de mim e até ouvi nas tardes calmas:

«Filho, vai fazer as tuas obrigações, as tuas contas...»

Mas hoje não faço contas à vida, pois é impossível / 36 / quando o perigo ronda e os nervos rebentam à flor da pele. Nem estudo heróis, nem leio maravilhas de fadas encantadas ou desencantadas. Nem sequer a Nau Catrineta. Ali, naquele fio de moços bravos e esforçados, via a história que aprendi na escola, via o romance da Nau Catrineta que tem muito que contar…

O sol era violento e narcotizante.

Uma queixa soou monocórdica:

– Já me prendem os pés e se o caminho é longo… Que horas serão?

– Duas menos cinco.

Um T6 sobrevoava-nos baixo. A água baixava agora um pouco e deixava marcada na cintura uma fiada de ciscos, bichos e mosquitos e não sei que porcaria. O homem da bicicleta esforçava-se por fazê-la deslizar, mas apenas a arrastava, pois o esterco enrolava-se nos raios, nos eixos, enchia os guarda-lamas.

Senti fome. Tirei do bolso um nougat, mas, por ironia, logo me havia de quebrar um dente.

Então, lembrei-me do «Amanhecer no Pântano» e desloquei-me para a Indochina. E quase via ali o miúdo a caçar rãs e outros bichos para matar a fome.

A marcha arrastava-se num ritmo quebrado de faz que anda, mas não anda. E, quando os pés tocaram o caminho, um alívio enorme ergueu-nos a cabeça e as calças despejaram os litros de água que arrastámos naquelas três horas.

Subimos, então, para um pequeno monte.

À distância, pairava a canção da morte com rumores violentos. Era tropa de Nova Lamego que contactava com o inimigo.

Montada a segurança, alguns rapazes deram logo caça a um ou dois cabritos que andavam por ali. Assaram-nos.

– É servido? Falta o tinto, mas...

Claro, que não disse que não. Tinha uma fome dos diabos. E, tirando uma pequena febra bem tostada, enfiei o capacete e subi para o unimog.

Era noite.

 

Página anterior

Página inicial Página seguinte