Eis-nos a caminho da Flora.
Novembro, 63. Duas da manhã.
A noite era uma caverna
escura que os olhos não conseguiam rasgar por entre o cacimbo. Para não
nos perdermos, andávamos de mãos apoiadas nos ombros uns dos outros. De
repente, caímos todos por terra, fulminados, embrulhados num silêncio de
espasmo e expectativa. Estremeci. Um macaco estremunhado – sentinela
inútil naquela árvore que a velhice e o tempo tombaram – rumorejou os
ramos secos num ou dois saltos e gritou no capim meio amadurecido.
Lá mais longe, caíram-nos as
mãos dos ombros. E, por momentos, as labaredas das casas de mato
encapelaram-se num frenesim vermelho de cor e morte, em línguas afiadas
que pareciam devorar o sol que rompia por detrás.
Mas ali não era paragem e a
distância começou a alongar-se sempre a nossos passos. Longe, os jactos
rugiam fogosos sobre os covis da Flora e os estrondos ecoavam,
perdendo-se num turbilhão de ruídos. Pelos arredores, cheirou a pólvora,
a caçadores. Alguém tinha fugido. À beira do trilho estreito, rastos de
há pouco, farrapos e um canhangulo embrulhado numa esteira.
Lá adiante, a tabanca
estava deserta. Nem um velho, nem uma criança. A um canto duma palhota,
havia um
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cabaço com meia dúzia de bocados de fígado, misturados num punhado de
arroz, talvez cozinhado na véspera. E uma bicicleta.
Dentro das cercas, os
cabritos espreitavam os estranhos, metendo o focinho nalgum buraco. E,
enquanto se passava revista, alguns divertiam-se. Treinavam a pontaria,
atirando setas nas velhas cântaras de barro e os escombros foram mais
uma vez uma mancha negra na paisagem.
Continuámos.
O mato era denso, irritante.
Quando se nos deparou a bolanha, descansámos os músculos. Era
meio-dia. E, para enganar a fome, começámos a mastigar pedaços de cana
de açúcar que ali colhemos.
Depois, veio o inferno.
Cruzámos as armas no peito.
– Lá vamos nós meter outra
vez água... – dissera o moço que me seguia. E começou a contar uma
anedota qualquer com certa dose de pimenta.
O pântano é doentio e
amachuca.
A água podre, dum vermelho
lodoso, cheia de sargaços e algas e espadanas, sempre afiadas para
cortes e arranhões, estendia-se, perdia-se de vista, não sei onde.
À frente, o Fula levava a
bicicleta às costas.
Do lado esquerdo, ficavam as
casas de mato da Flora. E se eles atacassem? Só sei que seria um prego
de dois bicos. E dos bandidos libera me, Domine!
Mas, enfim, enquanto os
sargaços iam teimando em prender-me os pés ao lodo, deixei-me perder.
Viajei-me.
Evoquei: o homem não é
limitado nem no espaço nem no tempo e, por isso, não quero os pés ou os
braços amarrados. E corri despreocupado até ao fim das recordações da
infância (eu nunca matarei o menino que fui dantes!) até ao fim da
aldeia branca. Foi lá que aprendi a amar os outros para além do
arremessar pedras ao sino da capela ou desenhar flores e bonecos
exóticos ou a minha bicicleta em todas as paredes…
Sim, viajei. Mas não quis
aquela bicicleta do fula para fazê-lo. Preferi aquela que fiz de
madeira. Dizia-me mais de mim e até ouvi nas tardes calmas:
«Filho, vai fazer as tuas
obrigações, as tuas contas...»
Mas hoje não faço contas à
vida, pois é impossível
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quando o perigo ronda e os nervos rebentam à flor da pele. Nem estudo
heróis, nem leio maravilhas de fadas encantadas ou desencantadas. Nem
sequer a Nau Catrineta. Ali, naquele fio de moços bravos e esforçados,
via a história que aprendi na escola, via o romance da Nau Catrineta que
tem muito que contar…
O sol era violento e
narcotizante.
Uma queixa soou monocórdica:
– Já me prendem os pés e se
o caminho é longo… Que horas serão?
– Duas menos cinco.
Um T6 sobrevoava-nos baixo.
A água baixava agora um pouco e deixava marcada na cintura uma fiada de
ciscos, bichos e mosquitos e não sei que porcaria. O homem da bicicleta
esforçava-se por fazê-la deslizar, mas apenas a arrastava, pois o
esterco enrolava-se nos raios, nos eixos, enchia os guarda-lamas.
Senti fome. Tirei do bolso
um nougat, mas, por ironia, logo me havia de quebrar um dente.
Então, lembrei-me do «Amanhecer no Pântano» e desloquei-me para a
Indochina. E quase via ali o miúdo a caçar rãs e outros bichos para
matar a fome.
A marcha arrastava-se num
ritmo quebrado de faz que anda, mas não anda. E, quando os pés tocaram o
caminho, um alívio enorme ergueu-nos a cabeça e as calças despejaram os
litros de água que arrastámos naquelas três horas.
Subimos, então, para um
pequeno monte.
À distância, pairava a
canção da morte com rumores violentos. Era tropa de Nova Lamego que
contactava com o inimigo.
Montada a segurança, alguns
rapazes deram logo caça a um ou dois cabritos que andavam por ali.
Assaram-nos.
– É servido? Falta o tinto,
mas...
Claro, que não disse que
não. Tinha uma fome dos diabos. E, tirando uma pequena febra bem
tostada, enfiei o capacete e subi para o unimog.
Era noite.
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