TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 27-31

ELE FOI NA CARAVANA

Foi ele mesmo que me contou a história a mim e a quem quis ouvir nuns tímidos arremedos de Português. É certo que não lhe sei o nome nem a raça, porque na altura não tomei nenhum apontamento, mas lembro-me da sua fisionomia. Era de estatura média, tinha os lábios partidos e as faces chupadas e ganhava a vida, trabalhando como chauffeur duma firma qualquer.

Um dia, em Mamboncó, uma rajada de metralhadora encheu-lhe o peito de medo. Estremeceu. Um grupo de bandidos galgou a berma da estrada. Deitaram-lhe as mãos à roupa, violentamente. Tinha uma respiração ofegante. Perguntaram-lhe para onde ia ao que ele respondeu. dizendo que se dirigia a Farim. Em seguida, como autoridades, pediram-lhe os documentos. Ele meteu a mão no bolso da camisa verde, a tremer, e tirou a papelada e entregou-lha. Eles abriram o bilhete, cheio de papéis, mas não percebendo nada do que estava escrito, deram-na a um cabo-verdeano que, pejos vistos, devia ser chefe de grupo. Abriu-o, leu e ironizou:

– «É amigo de branco e ainda paga impostos!»

O chauffeur não moveu os lábios, o que lhe valeu logo uns valentes murros na fronte, no rosto e nos olhos.

– «Fica a saber que desde hoje não obedecerás mais a branco nenhum nem, tão pouco, pagarás impostos.» – disse-lhe aquele homem armado de pistola e granadas de / 28 / mão, magro, mas de olhos vivos, quase agressivos, o cabo-verdeano.

Um deles amarrou-lhe as mãos e esbofeteava-o de vez em quando, quando lhe dava na real gana. Os outros começaram a descarregar a camioneta: sacos de açúcar e bacalhau, caixas de batata, garrafas de brandy e whisky.

Ainda me recordo perfeitamente dos comentários que se fizeram então no quartel, quando se soube do assalto, frases textuais:

– «Os ladrões vão ter um bom fim de semana. Vão tirar a barriga de misérias. Que rebentem de congestões!»

«Hoje, vão ter arroz doce, os bandidos!»

E, igualmente, me recordo das armadilhas que foram ventiladas para um dia os apanharmos com a boca na botija, como se costuma dizer.

Dentro do mato, a uns 500 metros da estrada, era uma azáfama, uma satisfação a cheirar a vitória retumbante. Iam e vinham. Outros carregavam inúmeros burros, burros da tabanca de Cai, com toda aquela abundância, nunca vista em seus dias e, muito menos, nas casas de mato.

O cabo-verdeano, depois de se enfurecer com um dos do grupo que já esgotava uma garrafa, a bater com uma das mãos na barriga e a arrotar, mandou seguir a caravana.

O prisioneiro ia à frente e os terroristas troçavam dele, davam-lhe pontapés sem escolher onde. Ele tremia todo e temia ser aquele o seu último dia. Suava em bica.

Entretanto, na estrada começou a distinguir-se o ronronar das viaturas. O barulho era já suficientemente conhecido. Eles apressaram o passo. Era a tropa que fora alertada pelo ajudante do chauffeur. E, além disso, o golpe fora mal feito, disse o chefe. Não haviam de ter deixado fugir o outro.

Nasceu-lhe um pouco de esperança. Talvez fossem persegui-los.

Quando a tropa chegou ao local do assalto, a camioneta acabava de arder. O sol declinava e a caravana chegava a Cai. Ele, porém, foi levado para Morés. Prenderam-no a um tronco de palmeira, de pés e mãos amarradas, numa parada ampla, rodeada de imensas casas / 29 / de mato, feitas de arbustos e palmas entrelaçadas e camufladas com lianas e ramos verdes que são substituídos logo que secam. É por causa da aviação. Havia alguns mosquiteiros.

Aí o tal verdeano fez-lhe inúmeras perguntas: quando passava tropa para os lados de Mansabá; se sabia de alguma operação em vista.

A tudo ele dizia que não sabia, acompanhando e sublinhando as palavras com um prolongado encolher de ombros. O verdeano e o que estava de guarda davam-lhe pontapés na barriga e murros nos olhos, no rosto. Ele choramingava e os lábios, partidos, escorriam sangue. Cuspia. Olhava o chão.

Depois, o que ele julgava chefe moderou mais a voz e dizia-lhe que a partir daquele hora, ele seria um deles a lutar para que este chão não fosse mais dos brancos, porque era dos africanos. Depois de tomado, as casas dos brancos seriam para os que combatiam pela causa do PAIGC... Ele iria ficar preso mais três dias. Depois soltá-lo-iam e ensinar-lhe-iam a trabalhar com armas. Poderia mesmo vir a ser chefe. Se ele recusasse, seria morto ali mesmo com dois tiros na cabeça.

De repente, um ruído longínquo prendeu-lhe a atenção. Calou-se. Teve um momento de espanto e mandou dispersar a todos. Só ficava o sentinela.

A aviação bombardeava Cai. Sabia-se que ali eles costumavam guardar as provisões e, naturalmente, teria sido ali que os burros deixaram as cargas dos víveres. Todos fugiram apavorados, estendendo-se junto dos troncos das árvores mais grossas. A fuzilaria explodiu e o sentinela, anichado, a tremer, resmungava:

«Se morrer gente, tu morrer também...»

O prisioneiro, sentia um furor a trespassar-lhe os ossos. Se viessem ali bombardear, talvez, ele, no meio da confusão geral e do pavor, desfizesse os nós da corda e fugisse. Bela vingança! E emaranhava-se nestes pensamentos.

Entretanto, caiu a noite e a sombra do seu carrasco projectava-se agressiva. Nem uma gota de água, aqueles bandidos. Nem uma mão-cheia de arroz. Era tudo mentira e pela mentira conseguiam levar muitos. E, a pensar numa oportunidade qualquer, adormeceu. Estava cansado. / 30 /

No dia seguinte, o sentinela e ele entabularam conversa. O sentinela contava valentias, mas nas suas frases deixava transparecer os perigos que todos corriam, porque a tropa, astuciosa, não lhes perdoava nada... Além disso, ultimamente, passavam fome, privações. Cultivavam pouco, porque estavam sempre inseguros e o pouco que cultivavam era destruído pela tropa. Sim, nem de noite estavam seguros, nem dormiam tranquilos, porque a artilharia, quando menos se esperava, lhes batia as casas de mato com fogo cerrado. Tinham sempre no contacto com a tropa muitos mortos e feridos. Os feridos atravessavam o rio Cacheu em canoas e eram transportados para o Senegal e República da Guiné. E muitos morriam pelo caminho.

O chauffeur mostrava-se interessado, esboçava mesmo, de vez em quando, um sorriso forçado. Mas o certo é que tudo lhe estava a entrar por um ouvido e a sair pelo outro. Preocupava-se com outra coisa mais importante. Ruminava lá por dentro.

E, por volta do meio-dia, voltou à carga o verdeano que lhe disse que as forças de Amílcar Cabral liquidavam muitos brancos e muitas outras coisas mais. Depois, perguntou-lhe se ele queria ser um deles, combater o branco. Ele disse que sim (interessava-lhe mudar de táctica...) e mostrou-se satisfeito, quando lhe prometeu uma arma. Talvez, fosse a sua sorte. Assim, seria mais fácil libertar-se. Depois, apresentar-se-ia à tropa. Isto pensava ele para consigo e para a sua camisa verde, já toda às tiras.

A noite de sábado surgiu ruidosa em Morés. O luar esgueirava-se entre a folhagem e a lua era uma moeda de ouro pegada ao azul.

O prisioneiro estava de cabeça caída sobre os pés estendidos e de espírito amachucado. Ainda não metera nada no estômago e a noite doía-lhe como pedradas nos ombros. O sentinela conversava, contava-lhe muitas coisas. Há meses que andava no mato e já vira muita desgraça. Dava mesmo a perceber o cansaço. Porém, ele fazia ouvidos de mercador. / 31 /

Os bandidos acenderam uma enorme fogueira que lambia, ameaçadora, as árvores, o luar. E um tambor anunciava batuque, orgia. Vieram bajudas das tabancas próximas. A parada regorgitava de gente e de garrafas de whisky e brandy.

E não tardou a começar o batuque. Danças escabrioladas. Os seios das bajudas saltavam, negros e luzidios, contra a luz avermelhada e o céu sereno. As palmas das mãos estouravam em ritmo e os pés redopiavam o coração da terra. E as garrafas andavam de mão em mão, estilhaçavam-se contra as árvores.

A noite ia alta. E o chauffeur não conseguia conciliar o sono, tomado pela angústia dos seus pensamentos. Lembrava-se da mulher e dos filhos e mordia os lábios partidos. Ardiam-lhe de febre. Além disso, o rosto doía-lhe, estava disforme.

Entretanto, outro sentinela veio render o primeiro. Ao chegar junto dele, trincou-lhe as orelhas, puxou-lhas até ele se erguer, gemendo, calcou-lhe os pés. Dizia coisas sem nexo. Estava embriagado. Ria-se sozinho.

O batuque perdia o calor inicial e havia orgia já por todo o lado.

Por fim, vacilante, o sentinela encostou-se à árvore. Adormeceu. E ele pensava atormentado. Talvez se libertasse essa noite. Tinham ido todos ou quase e os que por ali gozavam volúpias não se importavam com ele. Deixou-o entrar num sono profundo, olhou em volta. A fogueira definhava e a lua descia no azul crivado de estrelas. Olhou os pés, as mãos amarradas. E começou a sua aventura.

Com os dedos desceu os nós da corda que o amarrava. Meia hora de trabalho meticuloso e de expectativa. A respiração era ofegante. Cada vez tremia mais. Depois, o resto foi fácil. Remirou cuidadosamente o seu carrasco que dormia, a ressonar, babando-se. Ergueu-se com jeito, deu passos curtos, mal pousando as plantas dos pés. Voltou a cabeça. Ele continuava longe. E continuou os primeiros passos. Todo ele tremia. Vergavam-lhe as pernas, mordia os lábios de medo. Entrou no escuro. Parou. Olhou. Já não via ninguém. Ouvia apenas gemidos. A fogueira extinguia-se.

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Nota - No começo deste capítulo a seguinte observação do censor: «Não vejo nada especial, o final é claro e bom.»

 

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