Foi ele mesmo que me contou
a história a mim e a quem quis ouvir nuns tímidos arremedos de
Português. É certo que não lhe sei o nome nem a raça, porque na altura
não tomei nenhum apontamento, mas lembro-me da sua fisionomia. Era de
estatura média, tinha os lábios partidos e as faces chupadas e ganhava a
vida, trabalhando como chauffeur duma firma qualquer.
Um dia, em Mamboncó, uma
rajada de metralhadora encheu-lhe o peito de medo. Estremeceu. Um grupo
de bandidos galgou a berma da estrada. Deitaram-lhe as mãos à roupa,
violentamente. Tinha uma respiração ofegante. Perguntaram-lhe para onde
ia ao que ele respondeu. dizendo que se dirigia a Farim. Em seguida,
como autoridades, pediram-lhe os documentos. Ele meteu a mão no bolso da
camisa verde, a tremer, e tirou a papelada e entregou-lha. Eles abriram
o bilhete, cheio de papéis, mas não percebendo nada do que estava
escrito, deram-na a um cabo-verdeano que, pejos vistos, devia ser chefe
de grupo. Abriu-o, leu e ironizou:
– «É amigo de branco e ainda
paga impostos!»
O chauffeur não moveu os
lábios, o que lhe valeu logo uns valentes murros na fronte, no rosto e
nos olhos.
– «Fica a saber que desde
hoje não obedecerás mais a branco nenhum nem, tão pouco, pagarás
impostos.» – disse-lhe aquele homem armado de pistola e granadas de
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mão, magro, mas de olhos vivos, quase agressivos, o cabo-verdeano.
Um deles amarrou-lhe as mãos
e esbofeteava-o de vez em quando, quando lhe dava na real gana. Os
outros começaram a descarregar a camioneta: sacos de açúcar e bacalhau,
caixas de batata, garrafas de brandy e whisky.
Ainda me recordo
perfeitamente dos comentários que se fizeram então no quartel, quando se
soube do assalto, frases textuais:
– «Os ladrões vão ter um bom
fim de semana. Vão tirar a barriga de misérias. Que rebentem de
congestões!»
«Hoje, vão ter arroz doce,
os bandidos!»
E, igualmente, me recordo
das armadilhas que foram ventiladas para um dia os apanharmos com a boca
na botija, como se costuma dizer.
Dentro do mato, a uns 500
metros da estrada, era uma azáfama, uma satisfação a cheirar a vitória
retumbante. Iam e vinham. Outros carregavam inúmeros burros, burros da
tabanca de Cai, com toda aquela abundância, nunca vista em seus
dias e, muito menos, nas casas de mato.
O cabo-verdeano, depois de
se enfurecer com um dos do grupo que já esgotava uma garrafa, a bater
com uma das mãos na barriga e a arrotar, mandou seguir a caravana.
O prisioneiro ia à frente e
os terroristas troçavam dele, davam-lhe pontapés sem escolher onde. Ele
tremia todo e temia ser aquele o seu último dia. Suava em bica.
Entretanto, na estrada
começou a distinguir-se o ronronar das viaturas. O barulho era já
suficientemente conhecido. Eles apressaram o passo. Era a tropa que fora
alertada pelo ajudante do chauffeur. E, além disso, o golpe fora
mal feito, disse o chefe. Não haviam de ter deixado fugir o outro.
Nasceu-lhe um pouco de
esperança. Talvez fossem persegui-los.
Quando a tropa chegou ao
local do assalto, a camioneta acabava de arder. O sol declinava e a
caravana chegava a Cai. Ele, porém, foi levado para Morés. Prenderam-no
a um tronco de palmeira, de pés e mãos amarradas, numa parada ampla,
rodeada de imensas casas
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de mato, feitas de arbustos e palmas entrelaçadas e camufladas com
lianas e ramos verdes que são substituídos logo que secam. É por causa
da aviação. Havia alguns mosquiteiros.
Aí o tal verdeano fez-lhe
inúmeras perguntas: quando passava tropa para os lados de Mansabá; se
sabia de alguma operação em vista.
A tudo ele dizia que não
sabia, acompanhando e sublinhando as palavras com um prolongado encolher
de ombros. O verdeano e o que estava de guarda davam-lhe pontapés na
barriga e murros nos olhos, no rosto. Ele choramingava e os lábios,
partidos, escorriam sangue. Cuspia. Olhava o chão.
Depois, o que ele julgava
chefe moderou mais a voz e dizia-lhe que a partir daquele hora, ele
seria um deles a lutar para que este chão não fosse mais dos brancos,
porque era dos africanos. Depois de tomado, as casas dos brancos seriam
para os que combatiam pela causa do PAIGC... Ele iria ficar preso mais
três dias. Depois soltá-lo-iam e ensinar-lhe-iam a trabalhar com armas.
Poderia mesmo vir a ser chefe. Se ele recusasse, seria morto ali mesmo
com dois tiros na cabeça.
De repente, um ruído
longínquo prendeu-lhe a atenção. Calou-se. Teve um momento de espanto e
mandou dispersar a todos. Só ficava o sentinela.
A aviação bombardeava Cai.
Sabia-se que ali eles costumavam guardar as provisões e, naturalmente,
teria sido ali que os burros deixaram as cargas dos víveres. Todos
fugiram apavorados, estendendo-se junto dos troncos das árvores mais
grossas. A fuzilaria explodiu e o sentinela, anichado, a tremer,
resmungava:
– «Se morrer gente, tu
morrer também...»
O prisioneiro, sentia um
furor a trespassar-lhe os ossos. Se viessem ali bombardear, talvez, ele,
no meio da confusão geral e do pavor, desfizesse os nós da corda e
fugisse. Bela vingança! E emaranhava-se nestes pensamentos.
Entretanto, caiu a noite e a
sombra do seu carrasco projectava-se agressiva. Nem uma gota de água,
aqueles bandidos. Nem uma mão-cheia de arroz. Era tudo mentira e pela
mentira conseguiam levar muitos. E, a pensar numa oportunidade qualquer,
adormeceu. Estava cansado.
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No dia seguinte, o sentinela
e ele entabularam conversa. O sentinela contava valentias, mas nas suas
frases deixava transparecer os perigos que todos corriam, porque a
tropa, astuciosa, não lhes perdoava nada... Além disso, ultimamente,
passavam fome, privações. Cultivavam pouco, porque estavam sempre
inseguros e o pouco que cultivavam era destruído pela tropa. Sim, nem de
noite estavam seguros, nem dormiam tranquilos, porque a artilharia,
quando menos se esperava, lhes batia as casas de mato com fogo cerrado.
Tinham sempre no contacto com a tropa muitos mortos e feridos. Os
feridos atravessavam o rio Cacheu em canoas e eram transportados para o
Senegal e República da Guiné. E muitos morriam pelo caminho.
O chauffeur
mostrava-se interessado, esboçava mesmo, de vez em quando, um sorriso
forçado. Mas o certo é que tudo lhe estava a entrar por um ouvido e a
sair pelo outro. Preocupava-se com outra coisa mais importante. Ruminava
lá por dentro.
E, por volta do meio-dia,
voltou à carga o verdeano que lhe disse que as forças de Amílcar Cabral
liquidavam muitos brancos e muitas outras coisas mais. Depois,
perguntou-lhe se ele queria ser um deles, combater o branco. Ele disse
que sim (interessava-lhe mudar de táctica...) e mostrou-se satisfeito,
quando lhe prometeu uma arma. Talvez, fosse a sua sorte. Assim, seria
mais fácil libertar-se. Depois, apresentar-se-ia à tropa. Isto pensava
ele para consigo e para a sua camisa verde, já toda às tiras.
A noite de sábado surgiu
ruidosa em Morés. O luar esgueirava-se entre a folhagem e a lua era uma
moeda de ouro pegada ao azul.
O prisioneiro estava de
cabeça caída sobre os pés estendidos e de espírito amachucado. Ainda não
metera nada no estômago e a noite doía-lhe como pedradas nos ombros. O
sentinela conversava, contava-lhe muitas coisas. Há meses que andava no
mato e já vira muita desgraça. Dava mesmo a perceber o cansaço. Porém,
ele fazia ouvidos de mercador.
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Os bandidos acenderam uma
enorme fogueira que lambia, ameaçadora, as árvores, o luar. E um tambor
anunciava batuque, orgia. Vieram bajudas das tabancas
próximas. A parada regorgitava de gente e de garrafas de whisky e
brandy.
E não tardou a começar o
batuque. Danças escabrioladas. Os seios das bajudas saltavam,
negros e luzidios, contra a luz avermelhada e o céu sereno. As palmas
das mãos estouravam em ritmo e os pés redopiavam o coração da terra. E
as garrafas andavam de mão em mão, estilhaçavam-se contra as árvores.
A noite ia alta. E o
chauffeur não conseguia conciliar o sono, tomado pela angústia dos
seus pensamentos. Lembrava-se da mulher e dos filhos e mordia os lábios
partidos. Ardiam-lhe de febre. Além disso, o rosto doía-lhe, estava
disforme.
Entretanto, outro sentinela
veio render o primeiro. Ao chegar junto dele, trincou-lhe as orelhas,
puxou-lhas até ele se erguer, gemendo, calcou-lhe os pés. Dizia coisas
sem nexo. Estava embriagado. Ria-se sozinho.
O batuque perdia o calor
inicial e havia orgia já por todo o lado.
Por fim, vacilante, o
sentinela encostou-se à árvore. Adormeceu. E ele pensava atormentado.
Talvez se libertasse essa noite. Tinham ido todos ou quase e os que por
ali gozavam volúpias não se importavam com ele. Deixou-o entrar num sono
profundo, olhou em volta. A fogueira definhava e a lua descia no azul
crivado de estrelas. Olhou os pés, as mãos amarradas. E começou a sua
aventura.
Com os dedos desceu os nós
da corda que o amarrava. Meia hora de trabalho meticuloso e de
expectativa. A respiração era ofegante. Cada vez tremia mais. Depois, o
resto foi fácil. Remirou cuidadosamente o seu carrasco que dormia, a
ressonar, babando-se. Ergueu-se com jeito, deu passos curtos, mal
pousando as plantas dos pés. Voltou a cabeça. Ele continuava longe. E
continuou os primeiros passos. Todo ele tremia. Vergavam-lhe as pernas,
mordia os lábios de medo. Entrou no escuro. Parou. Olhou. Já não via
ninguém. Ouvia apenas gemidos. A fogueira extinguia-se.
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Nota - No começo deste
capítulo a seguinte observação do censor: «Não vejo nada especial, o
final é claro e bom.»
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