TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 25-26

MISSÃO DE PAZ

25 / Outubro / 63.

O Issa é um homem abastado, com muitos rebanhos e manadas de gado. É alto e magro, mas duma vontade férrea, inteligente, compreensivo. O filho por três vezes lhe fora raptado para o mato. Aflige-se com a sorte dos que fugiram do sossego das tabancas para levarem uma vida de perigo e ódio.

Mamboncó havia sido pasto de chamas e destruída. Os bandidos não suportavam que os seus moradores trabalhassem para a tropa na capinagem das bermas das estradas. Os que não puderam fugir tiveram que os seguir, até que um dia o Issa os foi buscar ao mato.

– Olhe pessoal que se bem entregar – disse-me um moço que se divertia com um macaco num muro, debaixo duma árvore verde.

Eu acabara de encher alguns bidões da água que escorria das abas da barraca, quase em fios diluvianos, quebrados por um vento forte. O tornado começa sempre com um céu carrancudo, riscado por longas pontas de fogo em ziguezague e por um vento impetuoso que derruba árvores, quebra ramos, desfolha. O vento chega a ser tão violento em fúrias e bailados que, uma noite, um a cada canto, tivemos de segurar a barraca, dependurados, para ela não ir pelos ares. A barraca fica entre a escola e o muro, no pátio de recreio. E nessa noite / 26 / voltaram-me a contar a história do pelotão que, emboscado às oito horas da noite, quando regressava a Mansabá, teve de resistir a algumas horas de fogo, à violência dos relâmpagos que, por iluminarem, cegavam, e às bátegas que enchiam a estrada furiosamente e galgavam os corpos dos soldados deitados nas valetas, combatendo.

O poço do quartel secara e andava a ser refundado pelos prisioneiros. Por isso, era preciso aproveitar a água das chuvas para beber e lavar ao menos a cara.

Era verdade. Na rua, à entrada, com o Issa à frente, uma bicha desordenada de velhos, mulheres, crianças e rapazes. Nada traziam consigo senão a vontade de serem livres e os farrapos que enrolavam o corpo.

Entraram. Debaixo do telheiro, agora, pensavam num tecto e nalguns que não puderam vir e matavam a fome e a sede de muitos dias. Sentada na borda do patamar, uma mulher nova, de feições correctas, falou-me (o que eu não percebi...)

Mim cá ouve... – disse-lhe eu.

Mas, apontando-me e acariciando levemente os seios descobertos e o menino que tinha no regaço, soube que não tinha leite para amamentar o filho.

E todos nos olhavam de olhos contentes, brilhantes, arregalados. E um velho, de face enrugada, que tremia as mãos doentes sobre os joelhos, exclamava em voz cansada e roufenha:

– Mim cá cume arroz três dias…

E chorou quando lhe deram um pedaço de pão. Repartiu com um miúdo e devorou o restante, sofregamente, capaz de comer este mundo e o outro. Há três dias que não comia.

 

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