Mansabá, Outubro / 63.
Aquele caminho já estava marcado a sangue e havia de ser para nós um
calcanhar de Aquiles. Os bandidos fizeram dele um estendal de árvores
caídas, atravessadas, de troncos bem criados, que, cortados, começámos a
a retirar, uma certa manhã. E, quando tudo se preparava para retirar a
décima terceira, viu-se, longe, um negro, atravessar o caminho, de arma
ao ombro. Estava ali uma cilada. Deitámo-nos por terra e, de arma na
cara, esperávamos a ver de que lado choveria. Mas aquilo estava a
demorar. À frente, então, soou uma voz que desafiava:
– Bandidos! Comecem lá com
essa merda…
E começou mesmo.
Atrás dum tronco, o cento e
dezassete arremessava granadas de mão que desventravam a terra e o
morteiro caía-lhes em cima. foi obra de vinte minutos.
Depois, as coisas continuaram na mesma com poucas variantes. Eles punham
de novo, noite dentro, as árvores que nós tirávamos até ao meio-dia e
derrubavam ainda mais. O estendal começou a tornar-se verde e seco.
E assim andámos a fazer este
jogo, até que resolvemos nós derrubar todas as árvores à beira do
caminho. Mas
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nem assim nos deixaram em paz muito tempo, fazendo rebentar debaixo das
viaturas dois fornilhos e, emboscados, carregaram.
Dum pulo, todos por terra e
a dispararmos.
Daí a pouco, uma voz dorida
e arrastada, se ergueu:
– Não faço mais fogo... não
posso mais, que estou a arrefecer…
E pôs a arma sob o corpo sem
forças, cruzando os braços sobre a companheira fiel e deixou cair a
cabeça sobre as mãos. Os outros estavam ali e ali ninguém chegaria.
Era o Teodomiro que tinha
sido ferido gravemente pelos estilhaços da explosão. Perto, outros
feridos faziam ainda fogo.
O Teodomiro era sinónimo de
boa disposição. Sempre contava anedotas e as aventuras amorosas que
tinha lá pela terra. E tinha todos os requisitos para ser meu
guarda-costas: boa pontaria, calma e astúcia. Gostava imenso de música e
tocava num pífaro, que fizera de cana, as mais bonitas canções. E,
agora, estava ali a contorcer-se. A coxa, cheia de sangue, esfarrapada,
parecia que tinha sido abocanhada pelos dentes dum leão. Misturados com
a terra, no fundo do poço, uns restos de carne e nada mais.
Chamei o enfermeiro.
O Gonçalves, rastejando
debaixo do fogo, aproximou-se e deu-lhe uma pancada nas costas:
– Então, onde foste ferido?
Ele estendeu o braço e pôs a
mão sobre a coxa:
– Foi aqui.
Os dedos trouxeram muito
sangue:
– É grave?
– Não!
E abriu a bolsa. Tirou
desinfectantes, ligaduras:
– Volta-te ao contrário, com
jeito!
Pensou-o. E, quase no fim,
disse-lhe para o animar:
– Eu sei que uma enfermeira
nova fazia melhor o serviço. Tinha umas mãos mais macias... Conheceste
alguma?
– Não!
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O Gonçalves abeirou-se dos
outros feridos. Continuavam a fazer fogo.
E o Teodomiro dizia-me:
– Isto não é nada. Quem vai
à guerra dá e leva…
Depois, na sua cama de
enfermo, nunca se deixou vencer pelo desânimo e pelas lágrimas. Cantava
e o pífaro era o companheiro favorito das horas vazias, cheias de
solidão.
Nunca se sabe onde o inimigo se
esconde. Emboscada: nuvens de pó, violência de fogo e sangue.
E ainda dizia:
– Isto não é nada…
E passava levemente os dedos
pelo bigode bismarquiano de que ele se podia orgulhar.
Um dia, a emboscada parecia ter terminado. Um longo silêncio
esfrangalhava os nervos.
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Mas,
quando o alferes Correia soergueu um pouco o corpo para ver o que se
passava, uma rajada fê-lo cair. Recomeçava o tiroteio.
Uma bala batera-lhe na
coronha da G3 e fez-lhe saltar um pedaço de madeira.
(1) Outra
trespassou-lhe o antebraço à superfície e foi-se alojar, amachucada, no
peito, sobre o coração, o que lhe valeu a vida. E avisava para o lado:
– Lima, estou ferido…
Do outro lado, junto ao
unimog, o aIferes Brasil apalpava a cabeça. Uma granada caíra-lhe sobre
o capacete. Furou-o. Gemia.
E os bandidos, foitos,
gritavam:
– Branco, ir buscar mais
tropa... Hoje, morrer aqui tudo.
Dali ninguém arredou pé. A
coragem redobrou, embora fôssemos poucos. Aquelas palavras tinham de ser
vingadas. Munições não faltavam. Cerraram-se os dentes. Carregou-se
furiosamente. Aqueles cachorros não haviam de levá-la a melhor.
No mato soltaram-se gemidos
na aragem quente e miolos saltaram. E gritos de desespero misturaram-se
com vozes e sangue. Berravam-nos de raiva:
– Cabrões!
E começaram a disparar.
Poucos dias depois de termos
começado a capinagem, encontrou-se um papelão sujo, suspeito, colado com
um escarro a um tronco de bissilão caído sobre o caminho. Ali havia
coisa. Arranquei-o. Olhei-o. Estava escrito: «obrigrado, capitão, por
fazer capinagem. Assim nossa basooka correr mais bem...»
Deu-me vontade não sei de
quê. Mas deixando-o cair das mãos, desfi-lo com a ponta da bota e
cuspi-lhe, cheio de asco.
Mas não desistimos.
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(1)
– O censor
assinalou correctamente esta frase e com razão. Isto seria impossível,
porque as coronhas da G3 não são de madeira.
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