TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 18-20

RAÍZES NOS PÉS

Quarta-feira, 21 / Agosto / 63.

O caminho era por ali. Chovia.

O braço do rio estava em lama e cortámos ramos no tarrafo para fazer uma passadeira. A ponte apodrecera aos passos, ao tempo, e caíra.

Quando a maré subiu surpreendeu-nos junto à foz do Impernal e lama e água marcaram-nos o nível por cima dos joelhos e os pés pareciam agarrar raízes, sorvidos, ora um, ora outro.

Nunca mais era terra sem Iodo.

De vez em quando, gritos da outra margem sacudiam-nos, punham-no de sobreaviso, aguçavam-nos o ouvido.

Mas a manhã desse dia quente havia de trazer-nos mais lama e havia de nos encher de água quando tivemos de atravessar a imensa bolanha de armas no ar.

A água subia a cintura. Subia. E os que fumavam tiravam os maços de tabaco dos bolsos e metiam-nos entre as fitas e o aço dos capacetes que ardiam sobre a fronte.

Pelo rio acima navegava uma canoa. Os remos, firmes nas mãos robustas dos dois negros, fendiam a água com violência e já se perdiam de vista na mancha verde da paisagem da curva onde levantavam voo sobre o arvoredo nuvens de maçaricos, numa algazarra de pios estridentes. / 19 /

A marcha era vagarosa como o andar dos caranguejos. Pequeninas ondas iam e vinham, batiam-me nos ombros e cheirou-me a sargaços. Aqui, uma corrente forte quis levar-nos os pés, mas, bem fincados, não foram. Ali, de vez em quando, um peixe-voador, listrado de prata, saltava e caía, espadanando a água.

– Que rica hora de pesca! Era só lançar o anzol... O Baltazar, que passava o morteiro para o ombro direito, respondeu-me:

– O pior era se vinha algum crocodilo, esquecido de que uma bala pode ser fatal.

E entabulámos um fio de conversa:

– Já pescaste alguma vez?

– Sim, pesquei…

Não o achei muito convencido do que dizia:

– O que é que tu pescaste? Talvez alguma moça...

– E não acha que as mulheres merecem um bom anzol e uma boa isca?

– Com certeza... E amaste alguma?

– Amei.

– E que tal?

– Se visse. Um braçado de mulher…

E repisava como num desabafo:

– Um braçado de mulher…

– E ainda a amas?

– Não! Depressa me esqueceu.

– Então, é porque não foste bom pescador!

– Sim!

– Já deves ter ouvido dizer que a mulher é sempre capaz de roer a corda.

E ele lembrava:

– Aquilo era um braçado de mulher.

A maré continuava a subir. Ir para a frente ou ficar ali à espera que a maré baixasse? Poucos sabiam nadar. Mas surgiam ideias O Simões dizia:

– Com uma jangada de bidões íamos de vento em popa!

Porém o Peixeiro despiu-se e entregou as botas e a arma a um e pôs a farda ao ombros de outro. E, pondo-se de pé, depois de mergulhar, clamou: / 20 /

– Co'os diabos! Em meia hora eu com outro ponho-vos na margem. Basta só pegar pelo cu das calças! – E exemplificava.

Eu concordei:

– Vamos, então, a isso…

A distância líquida à nossa frente devia andar por uns quinze metros.

– Foi então que alguns homens de raça Papel, que andavam por ali perto em busca de alguém que se afogara, por ali, na véspera, nos vieram com uma canoa muito velha, tão velha que metia água, e, em duas ou três viagens curtas, nos puseram do outro lado, em terra firme. E, nus e envergonhados, escondiam o sexo, metidos na água, ou com as mãos, como se nós não fôssemos todos iguais.

Agradeci. Pedi cigarros e dei-lhos assim como umas moedas que trazia no bolso. Eles sorriram e apontaram-me o caminho à esquerda...

 

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