TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 14-17

BAPTISMO DE FOGO

Apeámos.

A noite nos trouxera ali por caminhos desconhecidos, novos para nós. E quem entra pela primeira vez na selva sente um mundo diferente, terrível, negro. São cantos de aves medonhas como agouros. São ruídos trazidos no vento por entre o capim. São gritos de macacos, gritos selvagens que nos bolem com os nervos tensos. Por isso, os olhos de cada um são faróis porque o coração bate e treme todo à flor da pele como se quisesse libertar.

Eu lembrava a todos num «passe-palavra»:

– «Olhos no capim, olhos no arvoredo...»

Por ali a caça era grossa, mas espantou-se quando lhe cheirou a pólvora. Os passos, mal impressos na relva, fundos na lama, e as coisas abandonadas no seu rasto, diziam que a fuga fora apressada. Quem não fugiu foi uma velhinha de faces corridas em sulcos pela vida e seios caídos desnudadamente sobre a barriga encarquilhada. Sentada dentro dum tufo de bananeiras, atrás da tabanca, a chorar, estava ali, de olhos baixos, como se alguém a tivesse condenado. Mas não. Ninguém a condenou. Tive um momento de espanto, mas não lhe perguntei nada, nada lhe disse. Compreendi-a. junto, tinha uma cesta gasta e sebenta, cheia de trapos, e os olhos, húmidos, estavam-lhe todos naquele nada para mim, naquele tudo para ela. / 15 /

Mansodé, 11 / Agosto / 63.

O dia era brasas e o suor escorria, pegava-se à alma, à farda. feito o cerco àquele pedaço de mata fechada, veio a hora do nosso baptismo de fogo. A caça tentou romper o cerco. Começou uma chuva de balas.

Atrás dum tronco de bissilão, o Teodomiro e eu, de armas apontadas, prontas a dispararem na primeira oportunidade, se algum camafeu tentasse escapar-se pelo nosso lado, conversávamos baixinho. Ele dizia:

– Olhe! Para começar a guerra já não foi nada mau. Já virei um de borco.

– Bravo! Conserva sempre a pontaria e a calma. Olhei para ele. Vi que estava nervoso.

– Que tens?

– Tremem-me as mãos, o corpo todo.

Os T6 bombardeavam.

– Descansa, que não mataste nenhum inocente. Quem vive em casa de mato tem o rótulo... Não sejas idiota! Um soldado não deve ter um coração de pedra. Mas também não deve ser um medricas.

– Eu sei. Mas matar custa-nos sempre.

– Isso custa. Mas nós matamos para não morrermos...

O medo encolhia-nos os ossos e punha-nos os cabelos eriçados. É difícil de suster o medo quando se sabe que há perigos e quem o não tiver não é homem, mas um doido. Cada bala é um perigo que, num segundo, passa ou trespassa. E pode matar mesmo. Quem anda na guerra brinca todos os dias com a morte.

O fogo parecia redobrar. Ouvi um berro:

– Fujam! Fujam que aí vêm eles! Fujam!

Olhei. O Américo, que gritara, tinha desaparecido para trás. E cada qual teve a sua reacção natural. Uns meteram a cabeça no chão e ficaram quietos como um coelho. Outros, de arma na cara, faziam pontaria. E não faltou até quem estivesse a ver milhares de bandidos, imaginariamente…

– Que horas são?

Não há horas mais longas do que aquelas que trazem os nossos males de cada dia.

O sol torrava. Havia fogo no gatilho. / 16 /

Abri o bornal que pesava como chumbo. Puxei dum concreto de fruta e devorei-o nas calmas. A boca ardia-me como se tivesse engolido lâminas de fogo e os cantis não tinham uma pinga. E nós colhíamos ervas para mastigar. E, às vezes, um ou outro fazia caretas.

A guerra foi difícil. O Zezinho desmaiara e perdera mesmo as botas, quando era transportado.

Chegámos a uma tabanca. Preso a uma cana esguia, no cimo, tremulava um farrapo que, entre a sujidade e os buracos, tinha uma cor esbranquiçada.

Mas a água daquela cântara tosca, feita um dia pelas suas próprias mãos, dum barro quase escuro, fora uma fonte e uma bênção. Bebi duas ou três goladas, mas apetecia-me bebê-la toda para sentir frescura por todo o corpo ensopado. Depois, estendi o corpo pesado à sombra da sebe, que se estendia em volta da tabanca, feita de palmas secas, entrelaçadas. E, de arma ao lado, nem sequer pensei que a vida, umas vezes, corre atrás de nós com pedras na mão, como se fôssemos algum cão, e nos escorraça da sua porta florida, sem dó nem piedade, para, outras vezes, nos dar rosas na mão esquerda.

Um velho, que andaria aí por 50 chuvas, a tremer, nos matou a sede. Ali, ele e mais ninguém. E os filhos por que caminhos escuros andariam, onde nos esperariam eles àquela hora?

Quando o Américo, escarrando poeira, meteu a cântara à boca, do lado ouviram-se comentários e troças.

Diziam-lhe:

– Olha a Amélia, não tem vergonha!

– Não vales um caracol!

E repetiam as palavras que ele, pouco tempo antes, na luta, lançara ao vento, quando alguns invólucros do colega da esquerda lhe bateram no capacete:

«Ah, bandidos, que já me mataram... Já fiz nas calças...»

E riam.

Mas o Américo, calmamente, tragou mais dois ou três goles e, entregando a cântara a outro, disse, senhor de si e com ares de quem os iria vencer e convencer pelo bom humor:

– Quem fez este já não faz outro…

O Américo é um daqueles tipos fanfarrões que têm os / 17 / seus heróis destemidos, audaciosos. Ele mesmo é um herói de trazer por casa. É capaz de matar manga deles e até persegui-los. Mas isto tudo, quando está longe dos apertos. Por isso os companheiros lhe chamam o Garganta.

– Tu fazes mas é uma pouca…

Partimos. O inimigo esperava-nos mais longe.

Passados oito dias, a tabanca era cinzas. O farrapo branco, sinal de paz, que fora ali posto pelo medo, era uma mentira naquele coio de bandidos e poderia ter sido uma cilada.

Desde então, aprendi a andar no mato de pé atrás, porque a gente nunca sabe bem o terreno que pisa nem a água que bebe…

 

Além dos sublinhados, o parágrafo fora do alinhamento tem do lado direito uma linha vertical a lápis.

 

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