Apeámos.
A noite nos trouxera ali por
caminhos desconhecidos, novos para nós. E quem entra pela primeira vez
na selva sente um mundo diferente, terrível, negro. São cantos de aves
medonhas como agouros. São ruídos trazidos no vento por entre o capim.
São gritos de macacos, gritos selvagens que nos bolem com os nervos
tensos. Por isso, os olhos de cada um são faróis porque o coração bate e
treme todo à flor da pele como se quisesse libertar.
Eu lembrava a todos num «passe-palavra»:
– «Olhos no capim, olhos no
arvoredo...»
Por ali a caça era grossa,
mas espantou-se quando lhe cheirou a pólvora. Os passos, mal impressos
na relva, fundos na lama, e as coisas abandonadas no seu rasto, diziam
que a fuga fora apressada. Quem não fugiu foi uma velhinha de faces
corridas em sulcos pela vida e seios caídos desnudadamente sobre a
barriga encarquilhada. Sentada dentro dum tufo de bananeiras, atrás da
tabanca, a chorar, estava ali, de olhos baixos, como se alguém a
tivesse condenado. Mas não. Ninguém a condenou. Tive um momento de
espanto, mas não lhe perguntei nada, nada lhe disse. Compreendi-a.
junto, tinha uma cesta gasta e sebenta, cheia de trapos, e os olhos,
húmidos, estavam-lhe todos naquele nada para mim, naquele tudo para ela.
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Mansodé, 11 / Agosto / 63.
O dia era brasas e o suor
escorria, pegava-se à alma, à farda. feito o cerco àquele pedaço de mata
fechada, veio a hora do nosso baptismo de fogo. A caça tentou romper o
cerco. Começou uma chuva de balas.
Atrás dum tronco de bissilão,
o Teodomiro e eu, de armas apontadas, prontas a dispararem na primeira
oportunidade, se algum camafeu tentasse escapar-se pelo nosso lado,
conversávamos baixinho. Ele dizia:
– Olhe! Para começar a
guerra já não foi nada mau. Já virei um de borco.
– Bravo! Conserva sempre a
pontaria e a calma. Olhei para ele. Vi que estava nervoso.
– Que tens?
– Tremem-me as mãos, o corpo
todo.
Os T6 bombardeavam.
– Descansa, que não mataste
nenhum inocente. Quem vive em casa de mato tem o rótulo... Não sejas
idiota! Um soldado não deve ter um coração de pedra. Mas também não deve
ser um medricas.
– Eu sei. Mas matar
custa-nos sempre.
– Isso custa. Mas nós
matamos para não morrermos...
O medo encolhia-nos os ossos
e punha-nos os cabelos eriçados. É difícil de suster o medo quando se
sabe que há perigos e quem o não tiver não é homem, mas um doido. Cada
bala é um perigo que, num segundo, passa ou trespassa. E pode matar
mesmo. Quem anda na guerra brinca todos os dias com a morte.
O fogo parecia redobrar.
Ouvi um berro:
– Fujam! Fujam que aí vêm
eles! Fujam!
Olhei. O Américo, que
gritara, tinha desaparecido para trás. E cada qual teve a sua reacção
natural. Uns meteram a cabeça no chão e ficaram quietos como um coelho.
Outros, de arma na cara, faziam pontaria. E não faltou até quem
estivesse a ver milhares de bandidos, imaginariamente…
– Que horas são?
Não há horas mais longas do
que aquelas que trazem os nossos males de cada dia.
O sol torrava. Havia fogo no
gatilho.
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Abri o bornal que pesava
como chumbo. Puxei dum concreto de fruta e devorei-o nas calmas. A boca
ardia-me como se tivesse engolido lâminas de fogo e os cantis não tinham
uma pinga. E nós colhíamos ervas para mastigar. E, às vezes, um ou outro
fazia caretas.
A guerra foi difícil. O
Zezinho desmaiara e perdera mesmo as botas, quando era transportado.
Chegámos a uma tabanca.
Preso a uma cana esguia, no cimo, tremulava um farrapo que, entre a
sujidade e os buracos, tinha uma cor esbranquiçada.
Mas a água daquela cântara
tosca, feita um dia pelas suas próprias mãos, dum barro quase escuro,
fora uma fonte e uma bênção. Bebi duas ou três goladas, mas apetecia-me
bebê-la toda para sentir frescura por todo o corpo ensopado. Depois,
estendi o corpo pesado à sombra da sebe, que se estendia em volta da
tabanca, feita de palmas secas, entrelaçadas. E, de arma ao lado,
nem sequer pensei que a vida, umas vezes, corre atrás de nós com pedras
na mão, como se fôssemos algum cão, e nos escorraça da sua porta
florida, sem dó nem piedade, para, outras vezes, nos dar rosas na mão
esquerda.
Um velho, que andaria aí por
50 chuvas, a tremer, nos matou a sede. Ali, ele e mais ninguém. E os
filhos por que caminhos escuros andariam, onde nos esperariam eles
àquela hora?
Quando o Américo, escarrando
poeira, meteu a cântara à boca, do lado ouviram-se comentários e
troças.
Diziam-lhe:
– Olha a Amélia, não tem
vergonha!
– Não vales um caracol!
E repetiam as palavras que
ele, pouco tempo antes, na luta, lançara ao vento, quando alguns
invólucros do colega da esquerda lhe bateram no capacete:
«Ah, bandidos, que já me
mataram... Já fiz nas calças...»
E riam.
Mas o Américo, calmamente,
tragou mais dois ou três goles e, entregando a cântara a outro, disse,
senhor de si e com ares de quem os iria vencer e convencer pelo bom
humor:
– Quem fez este já não faz
outro…
O Américo é um daqueles
tipos fanfarrões que têm os
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seus heróis destemidos, audaciosos. Ele mesmo é um herói de trazer por
casa. É capaz de matar manga deles e até persegui-los. Mas isto tudo,
quando está longe dos apertos. Por isso os companheiros lhe chamam o
Garganta.
– Tu fazes mas é uma pouca…
Partimos. O inimigo
esperava-nos mais longe.
Passados oito dias, a
tabanca era cinzas. O farrapo branco, sinal de paz, que fora ali
posto pelo medo, era uma mentira naquele coio de bandidos e poderia ter
sido uma cilada.
Desde então, aprendi a andar
no mato de pé atrás, porque a gente nunca sabe bem o terreno que pisa
nem a água que bebe…
Além dos sublinhados, o parágrafo fora do alinhamento tem do lado
direito uma linha vertical a
lápis.
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