TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 11-13

RUAS SEM POESIA

Bissau, 25 /Junho / 63.

Subo sem pressas o cais encharcado. Tão encharcado como eu porque chove. Meus olhos prendem-se numa árvore que é novidade para mim pelo aspecto gigantesco: um enorme poilão com metros e metros de diâmetro no jardim em frente à fortaleza de S. José da Amura, de pedras enegrecidas, mas solene e arrogante sobre o Geba.

Aquela árvore tem uma história triste, sem poder mudá-la, não porque os pássaros deixaram de fazer ninhos e versos nos ramos que caíram, pesadamente atingidos por vendavais medonhos e pela velhice secular, mas, porque, verde e pujante, verde e insensível, impiedosa como os homens, assistiu à morte de criminosos e traidores. Hoje, já não é pelourinho. Mas, a coberto do seu tronco enorme, pelas noites cálidas duma mornidão em tudo, há romances de carne acesa, entregue à volúpia e frutos proibidos.

Corro a cidade toda.

Pago a cerveja e saio da cidade, pequena, de ruas estreitas, sem grande movimento e comércio, com um ligeiro ar europeu, e sigo para os arredores. Quero observar um pouco a vida indígena e entro a deambular no Copilão, de uma melancolia sórdida e ruas cheias de lixo enrodilhado às portas, ruas feitas de brita que se / 12 / cruzam constantemente e que as enxurradas cavam em barrancos enormes.

As casas, em geral, cobertas de colmo, são feitas de adobes de terra negra, tão frágeis que dão a impressão de caírem desfeitas no próximo tornado ou com um vento mais forte.

Nas ruas, tristes como elas, brincam torrentes de crianças, semi-nuas, em altos berros: correm, saltam, olham-me curiosas. Alegres como pássaros livres, sem saber se lhes falta pão ou justiça.

Um miúdo remirando-se com os seus grandes e melancólicos olhos e de ranho ao canto do nariz, adianta-se, dirige-se a mim que caminho devagar como quem quer inteirar-se de tudo para fazer uma reportagem longa e fiel para algum jornal (mas confesso que não foi este o motivo que me trouxe aos arredores), como quem quer solidarizar-se com aquelas ruas sem poesia.

O miúdo grita-me:

Branco, parte um peso comigo!

Não percebo as palavras, mas conjecturo que seja um pedido qualquer. Então, ensaio, a medo, como se tivesse medo de errar, uma frase em crioulo para lhe atirar à carita de fome, aos ouvidos sujos, quando me vieram ao pensamento aquelas palavras esquisitas para mim, inexperiente e novato no lidar com a gente negra. Há pouco, perdido numa rua qualquer, perguntei onde ficava o correio a um rapazito que beirava os treze anos e que olhava, descalço, para uma montra.

Mim cá ouve, nosso alfero... – me respondeu ele.

Lembro o significado e desfecho-lhe a frase, porque realmente não percebo o pedido:

Mim cá ouve…

Porém, ele continua a insistir, caminhando a meu lado. Passo-lhe uma das mãos pelo pescoço e sinto-lhe a pele igual à minha. E ele, mais seguro, sublinha as palavras com um olhar penetrante, profundo, e esfrega os dedos:

Branco, parte um peso comigo!

Então, compreendo.

Da rua que vem das costas do Copilão, do mato, aparece um rapagão, espadaúdo, trazendo sobre os ombros salientes, mas vergados ao peso, dois garrafões enfiados / 13 / numa vara, cheios de vinho de palma. Talvez seja para vender. E quantos irão andar ao murro ou às apalpadelas pelas esquinas, destilando o precioso líquido «que alegra o coração do homem», segundo o salmista?

Volto à esquerda, desço a cidade que anoitece. No Copilão, a noite, como de costume, vai ser de orgia intensa e frenética. Estranha concepção de moral. Por vezes, o dinheiro, – preço baixo da carne emprestada aos homens brancos ou de cor que julgam apagar tristezas e desgostos, chafurdando no prazer – reverte em favor da família. As filhas chegam a entregá-lo aos pais.

A gente foge das ruas e as arcadas dalguns prédios, onde trabalham, de manhã à noite, cheios de vagares, muitos alfaiates, ficam desertas de burburinho, mulheres e crianças. E as mesmas ruas começam a afogar-se em sombras e pedaços de luz. E a sombra do meu corpo vai toda a arrastar-se pelo asfalto, colando-me a ele e vejo-me mais pequeno ainda.

Vou todo voltado para os meus botões, quando uma voz me estremece:

Boa-noite, branco!

É uma velhinha que desaparece na esquina, distraída no fim do mundo, nos sonhos impossíveis de ter nas mãos, na eternidade.

Nas suas palavras olha-me como superior, um homem civilizado. Nos meus olhos olho-a com pena. E digo-lhe:

– Boa-noite!

Ela desaparece na crescente escuridão. E vejo nela todo o mistério da gente negra.

 

Os dois parágrafos, que colocámos fora do alinhamento, têm do lado esquerdo uma linha vertical a lápis.

 

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