EM 943 governava a monarquia cristã de Leão o rei Ramiro II cuja autoridade se estendia até o Mondego.
Era Conde de Coimbra Exemeno Dias, filho da condessa Honeca, irmão de Mumadona, fundadora do
Mosteiro de Guimarães. À diocese presidia o Bispo D. Gundesindo.
A esse tempo eram ainda poucas as freguesias constituídas. A sua
formação é, na sua grande maioria, dos três séculos imediatos. Também
eram bem diferentes de hoje
os laços disciplinares na hierarquia eclesiástica. Só mais de
dois séculos depois a autoridade papal foi conhecida e obedecida no
ocidente peninsular. As duas freguesias da Moita e Anadia estavam longe,
muito longe no tempo. – Os seus territórios eram partes integrantes da
Vila de Arcus.
Já em vários escritos tenho prevenido o leitor de que
não há nenhuma correspondência entre as vilas daqueles
tempos distantes e as de hoje. Não eram povoados sedes
de alguma divisão administrativa, judicial ou eclesiástica, ou
casas de campo e recreio. Eram divisões agrárias, formas
de propriedade da terra, destinadas ao cultivo desta. Não
eram, em regra, seus donos os cultivadores que nelas viviam,
nem estes eram homens livres, mas servos pouco distanciados da
escravidão. As vilas eram dos senhores, das igrejas e mosteiros, do rei e dos bispos. Os homens livres, artífices, comerciantes, clérigos,
eram poucos, poucos ainda os cultivadores de vilas e proprietários delas
ou de alguma
fracção. As vilas eram divididas em casais, a cada um dos
quais eram atribuídos campos, leiras, montados, diversamente situados de acordo com as necessidades do cultivo.
E os casais iam crescendo em número e extensão à custa de novos
arroteios com o aumento da família, fazendo-se nas sucessões a divisão
de facto.
[Vol. XlX - N.º 75 - 1953]
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Perante o senhor ou senhores delas, porém, a vila mantinha-se
juridicamente integra: doavam-se, vendiam-se ou herdavam-se porções da
renda, mas não fracções de terra. A desagregação de facto e de direito,
já sensível nos meados do século X, fez-se sobretudo nos dois seguintes.
Frequentemente os senhores das vilas ou de alguma fracção construíam
pequenos templos para as suas necessidades espirituais e as dos seus vizinhos, os quais ficavam sendo
propriedade sua, de que podiam dispor livremente. E foram estes
templos a origem da maior parte das igrejas paroquiais de hoje.
Era grande a vila de Arcus. Nela
se compreendiam as terras de Anadia e Moita, porventura outras ainda. A sua
origem vem de além da História. Foi Castro, pré-romano
e ainda na Reconquista foi Civitas, isto é: monte fortificado para
protecção dos que viviam em suas proximidades.
A toponímia guardou-nos e levará pelos tempos fora a memória deste
facto. Monte-Crasto é ainda o nome do povoado que sobre ele se ergue.
Ora naquele ano de 943 um presbítero chamado Pedro,
por alcunha
Bahalul, vendeu a sua igreja de S. Cucufate, em Arcus, a outro
presbítero de nome Daniel. Era do vendedor a igreja, porque a tinha
construído, herdado ou comprado. Foi a venda feita por quarenta e cinco
soldos, mas com a condição do comprador, à sua morte, a deixar ao
Convento de Lorvão. (Port. Mon. Hist., pág. 30). Sendo grande a vila de
Arcus é necessário saber em que parte dela ficava a igreja de S.
Cucufate.
Não será muito difícil descobri-lo. Em 961 um tal Aldreto vendeu a Iquila
Iben Nazeron uma propriedade – Várzea – que tinha na margem do rio Arcus,
limitada, por um lado, pelo ribeiro que vinha de Ferrariolos e a
separava do Vilar de Calvos e por outro com a devesa de S. Cucujate.
Estas limitações habilitam-nos a situar a igreja de S. Cucufate no
actual lugar da Moita. (Loc. cit., pág. 54).
Esta região estava, como disse, em poder dos cristãos e era do condado
de Coimbra. O Conde Exemeno morreu neste ano. Sucedeu-lhe o célebre
Conde Gonçalo Moniz, o que alguns anos depois envenenou em Lorvão o rei
Sancho,
o Gordo. As campanhas de Almansor, que se estenderam
por todo o último quartel do século X, produziram profundas
modificações nesta situação. Coimbra caiu em 987 e, como consequência,
o domínio árabe alargou-se de novo até ao Douro. O traidor Froila
Gonçalves, filho do Conde Gonçalo Moniz, levantou-se contra o seu rei
Bermudo III e juntou-se a Almansor, que lhe deu o governo do
Condado, que era de seu pai, com, centro em Montemor-o-Velho. Froila
Gonçalves governou até 1014 ou 1015, quando Afonso V levou
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a reconquista até às margens do Mondego. Deve ter sido sob o governo de
Froila Gonçalves que os monges de Lorvão criaram o mosteiro da
Vacariça, de iniciativa própria ou, o que é plausível, a instâncias de Froila, que foi seu grande protector e benfeitor.
Apesar das vitórias de Afonso
V, a linha divisória entre mouros e cristãos não pôde manter-se em Montemor, pois logo recuou
para as margens do Cértima.
Coimbra, Viseu e Lamego ficaram ainda por muitos anos sob
o Islão. A
Vacariça deve ter ficado na linha divisória, de um ou outro lado.
Seguindo a política tradicional de Lorvão, conseguiu atravessar
incólume os quarenta anos de correrias devastadoras de mouros e cristãos, servindo a uns e
outros.
Quando em 1064 o Imperador
Fernando conquistou Coimbra, apressaram-se
os monges da Vacariça em apresentar à sua confirmação o inventário de
suas propriedades. Entre elas lá estava a igreja de S. Cucufate Cum Adiccionibus Suis. (Loc.
cit., pág. 277).
Na igreja da Moita, sobre a porta lateral direita, lê-se esta inscrição:
ln nomine Sancte Trinitatis edificatũ est. hoc
templũ ad honore Sancti Cucufati Martiris. E. MCCXXXIlI – Em nome da Santíssima Trindade foi edificado
este templo
em honra de S. Cucufate – Mártir – Era 1233. Quer dizer que naquele ano
do Senhor de 1195 foi reconstruída a velha igreja de S. Cucufate e
dedicada ainda ao mesmo santo. É de notar que a inscrição já lhe não
chama igreja, mas templo. Explica-se isto, a meu ver, pela limitação
que a palavra igreja sofreu com a formação das freguesias, que já agora
eram numerosas. Tendo servido nos séculos anteriores para designar
qualquer templo, foi com o correr do tempo restringido para só nomear
as que eram sede de freguesia ou que serviam ao culto geral desta.
Naquele ano a Moita não era ainda freguesia, nem a era Anadia. A
inquirição de Afonso II em 1220 não as mencionou, mas referiu as suas
terras a Famalicão, que seria a sede.
Não diz a inscrição quem reedificou
o templo, mas é de crer que fosse o bispo de Coimbra ou algum presbítero por sua
ordem, porque a esse
tempo era pertença dele, por lhe ter sido doada, com todo o mosteiro
da Vacariça, por D. Raimundo. em 1094.
Cucufate era africano. Filho de família rica, fora
mandado aos estudos
em Cesarea. Cristão, fugiu à grande perseguição dos Imperadores
Deocleciano e Maximiano, refugiando-se em Barcelona. Descoberto aqui,
foi preso e martirizado com grande número de seus companheiros. Conta o
Hagialógio a
perseverança do Santo e o castigo que sofreram os
verdugos no acto do martírio. Ao fim, decapitaram-no.
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Foi isto no ano 303, logo no inicio da perseguição, que
durou até 311. Mais de quinhentos anos depois, em 835,
foi a cabeça do Santo transferida para a igreja de S. Dinis
em França, a fazer companhia e a purificar as almas dos reis ali
sepultados.
Com a invasão árabe, em 711, os bispos que escaparam foram refugiar-se
no norte da Galiza. Para lá foram os do Porto, Braga, Coimbra, Viseu e
Lamego. Ali se sucediam e de lá governavam espiritualmente as suas
dioceses, se
algum governo lhes era possível. Braga acabou por ser
governada pelo bispo de Lugo. Só em 1070 teve bispo privativo, Pedro, ao qual sucedeu S. Geraldo.
Na reconquista e repovoamento ordenado por Afonso III
a partir de 866, Braga destruída e quase abandonada, foi
repovoada e reconstruídas algumas das suas freguesias, entre elas as de
S. Frutuoso e S. Victor. Afonso III fez doação destas freguesias a S.
Tiago de Compostela, além de outras terras.
Em 1102 era bispo de S. Tiago o célebre Diogo Gelmires.
S. Geraldo em Braga lutava para recuperar para a sua cidade os seus
direitos antigos de Sé Metropolitana, de que eram sufragâneos todos os
bispados da Galiza. Por sua vez,
Diogo Gelmires tinha a ambição de fazer metropolitana a sé
de S. Tiago. O sentimento nacionalista português, já na plenitude da sua
formação mais que secular, liberto dos laços
étnicos, linguísticos e históricos que o prendiam à Galiza,
poderia consentir que os bispados da Galiza fossem sufragados por S. Tiago, mas não os de aquém Minho. Por sua
vez Diogo Gelmires, que por trás da ambição religiosa escondia a ambição
política de independência para a Galiza, reclamava em Roma para a sua diocese os direitos de Braga ou
os de Mérida, ainda em poder dos mouros.
A luta foi longa e dura. Fui o último capítulo de evolução lenta que poucos anos depois dava a independência
a Portugal e ligava para sempre a Galiza à Espanha.
S. Geraldo tinha por Diogo Gelmires uma grande admiração. Ainda lhe não conhecia as intenções. Quando certo
dia do fim desse ano de 1102 o bispo Diogo GeImires mandou dizer a S.
Geraldo que estava às portas de Braga com
grande comitiva para o visitar, o Santo arcebispo, ingénuo
e bom, cheio de contentamento pela agradável surpresa, convocou clero,
nobreza e povo e foi ao encontro do compostelano, que conduziu
processionalmente até os seus próprios
aposentos, onde, alegre e generosamente o hospedou. Gelmires logo no dia imediato começou a visita às suas freguesias. Rezou
missa em S. Vítor de manhã e depois que todos os fiéis tinham saído,
examinou altares, imagens, paramentos,
tudo quanto na igreja tinha valor. E subiu-lhe então à cabeça
/
213 / uma
ideia genial: levar para Santiago as relíquias que ali se guardavam com
grande veneração. Ouvido o seu fiel amigo e cónego Hugo, este logo
respondeu: – «é uma inspiração divina – não se trata de um roubo, mas
de um pio latrocinio». – E logo deitaram mãos à obra. Cavando junto do
altar, dali arrancaram duas caixas de prata com as relíquias do Senhor e
de Santos. No dia seguinte, missa em Santa Susana. Junto ao túmulo desta
estavam os dos mártires Cucufate e Silvestre, que foram igualmente
levantados; ao terceiro dia, após a missa em S. Frutuoso, coube a sorte
a este santo, fundador do templo em que jazia. O segredo não fora
violado. Hugo pôde transportar de noite, para Tui, aquelas relíquias
sagradas, que eram a glória de Braga e pedra básica da fé do seu povo.
Quando o arcebispo Geraldo descobriu a velhacada, era tarde; ia longe
Gelmires com o precioso latrocínio. Foi grande a indignação, mas vã,
porque o papa Pascoal II resolveu e determinou que ficassem em
Compostela as relíquias, mas perdesse Gelmires o governo
espiritual das duas freguesias de S. Vítor e S. Frutuoso a favor de
Geraldo.
Ora como é que veio para Braga o corpo de S. Cucufate
martirizado 694 anos antes em Barcelona?
A História compostelana não diz que se tratava de pequenas relíquias do Santo, mas do seu corpo em rude túmulo.
Tem o caso mais simples explicação do que parece.
É que o S. Cucufate
de Braga não era o mesmo S. Cucufate de Barcelona. O de Braga era irmão
de S. Torquato, e dos dois se honra Braga de ter sido berço de
nascimento e martírio. E foi o corpo deste S. Cucufate que o bispo
Gelmires levou de Braga para Compostela. Não fala o Hagiológio deste
santo, mas só do de Barcelona. Não o esqueceu entretanto a História
Eclesiástica de Braga, em cujos anais o Santo tem carrilho, como diz a
Beneditina Lusitana – (Trat. lI,
Parte III, pág. 446).
Também no Alentejo, perto de Beja, na Vila de Frades, houve antigamente
um convento, cujas ruínas ainda no século XVII mostravam, na sua
extensão e grandeza, ter sido sumptuoso e rico. Se era dedicado ao
mártir de Barcelona ou de Braga, não é possível sabê-lo.
Disse que Afonso III dera a S. Tiago, no fim do século IX,
as duas freguesias de Braga. O mesmo rei, na mesma época,
após a reconquista de Coimbra em 877 pelo Conde Hermenegildo, cuidou do
repovoamento dentre Douro e Mondego e também então doou a Santiago as
terras ali situadas: S. Martinho, S. Lourenço e Travassô. É natural que
a Igreja Compostelana confiasse à mesma ou mesmas pessoas a
administração espiritual e temporal das freguesias de Braga e destas
terras, dentre Vouga e Mondego, criando entre elas relações através
/
214 / das
quais o culto de S. Cucufate irradiou de Braga para a Bairrada.
Hipótese, que facilmente se aceita, à falta de melhores elementos
de verdade.
E se foi por influência de S. Tiago que o culto de S. Cucufate
chegou ao templo em sua honra edificado na antiga vila de Arcus,
natural é que também no mesmo templo se guardasse e venerasse a imagem
do Apóstolo, tanto mais que a Igreja festeja este e S. Cucufate no mesmo
dia, a 25 de Julho.
Quando mais tarde, já em pleno século
XV, se constituiu a freguesia da
Moita e reconstruiu o templo para esse fim, já a festa de S. Tiago teria
deixado no esquecimento a do mártir S. Cucufate e daí a mudança do
padroeiro, que passou a ser S. Tiago da Moita.
Coincidência curiosa é a de que nos dá conhecimento
MANUEL SEVERIM, na memória que escreveu sobre a visita que fez às
ruínas do Mosteiro de S. Cucufate em Vila de Frades. «Poucos dias há –
diz ele – que em uma jornada que fiz, rodeei algumas léguas, por ver as
ruínas do Mosteiro de S. Cucufate e é muito maior coisa do que me tinham
dito, porque não são ruínas subterrâneas, mas fábricas tão levantadas
como as maiores romanas, vêem-se nelas varandas, torres, salas, e arcos
tão altos, como as das maiores naves, e por baixo há outras tantas
casas, com abóbadas de argamassa antiga. A imagem do Santo, levaram para
a Igreja matriz de Vila de Frades, e em seu lugar puseram uma de S.
Tiago também de vulto a cavalo...» (Ben. Lusit., pág. cit.). Quer dizer;
também lá no mosteiro de Vila de Frades a imagem de S. Cucufate foi
substituída pela de S. Tiago. Pelas mesmas razões que determinaram a
mudança na Igreja da Moita? Não sei.
Atribuo a criação da
freguesia da Moita ao século XV, mas não faço uma afirmação categórica. Esta dependerá de outro estudo. Não é forte a
razão em que agora me apoio, mas vale a pena apresentá-la porque também
é circunstância que não deve ficar esquecida na história da igreja da
Moita.
Há numa parede da sacristia uma inscrição lapidar na qual se impõem aos
párocos da freguesia obrigações de missas, por alma de um pároco que
dotou a igreja de passais e pelas dos fundadores da capela de S.
Gregório. Esta inscrição foi lavrada depois da fundação da capela; muito verosimilmente logo após
a morte dos seus fundadores e não muito depois da morte do pároco que
lhe deu ou ampliou os passais. A parte inferior do retábulo de S.
Gregório é do fim do do século XV ou princípio do século XVI. De
igual data serão as pedras lavradas que formam o frontal do altar.
Pelas inquirições de Afonso lI, de 1220, como disse, e ainda pelas de D.
Dinis de 1282, a freguesia ainda não existia. Aquela
/ 215 /
lembrança da obrigação de missas por alma dos fundadores da capela de S.
Gregório, que certamente viveram na segunda metade do século XV, e pela
alma do doador dos passais, que deve ser pouco anterior àqueles,
autorizam a reposição da criação da freguesia nesta época, com nova
reforma e ampliação do templo.
Há ainda uma outra inscrição na capela do Cristo Crucificado, também
lateral esquerda, que diz: «O L.do M.el de Almeyda
prior que foy desta
Igreja Commissario do St.º
Off.º, Arcipreste e Visitador neste bispado, e O P.e Mateus,
cura que foy nesta Igreja, mandaram edificar esta capella, em honra,
louvor e glória, desta devotissima e prodigiosa imagem de J.
H. Crucificado com obrigação de missa quotidiana e festa a 3 de Maio e estam nela sepultados. Anno D. 1719». Eram irmãos os dois padres. O
Manuel morreu a 1 de Janeiro daquele ano. Já se não percebe a data do
falecimento do Mateus. O altar é rico de barroco da época. E como é
igual à parte superior do altar de S. Gregório, julgo que foram estes
dois padres que truncaram este para ali poderem pôr a imagem de S.
Gregório, mais alta que a anterior.
Há na torre um sino anterior ao século XIX. Diz a tradição, certamente
verdadeira, que foi enterrado, para assim escapar à rapina das invasões
francesas.
A Moita é terra rica e boa, que ainda agora recebe a
graça de ter um bom pároco: o Padre Reis, a quem sou
grato pela gentileza com que me recebeu.
AUGUSTO SOARES DE SOUSA
BAPTISTA |