A. S. de Sousa Baptista, Igreja da Moita e Cucufate, Vol. XIX, pp. 209-215.

A IGREJA DA MOITA

E SÃO CUCUFATE

EM 943 governava a monarquia cristã de Leão o rei Ramiro II cuja autoridade se estendia até o Mondego. Era Conde de Coimbra Exemeno Dias, filho da condessa Honeca, irmão de Mumadona, fundadora do Mosteiro de Guimarães. À diocese presidia o Bispo D. Gundesindo.

A esse tempo eram ainda poucas as freguesias constituídas. A sua formação é, na sua grande maioria, dos três séculos imediatos. Também eram bem diferentes de hoje os laços disciplinares na hierarquia eclesiástica. Só mais de dois séculos depois a autoridade papal foi conhecida e obedecida no ocidente peninsular. As duas freguesias da Moita e Anadia estavam longe, muito longe no tempo. – Os seus territórios eram partes integrantes da Vila de Arcus.

Já em vários escritos tenho prevenido o leitor de que não há nenhuma correspondência entre as vilas daqueles tempos distantes e as de hoje. Não eram povoados sedes de alguma divisão administrativa, judicial ou eclesiástica, ou casas de campo e recreio. Eram divisões agrárias, formas de propriedade da terra, destinadas ao cultivo desta. Não eram, em regra, seus donos os cultivadores que nelas viviam, nem estes eram homens livres, mas servos pouco distanciados da escravidão. As vilas eram dos senhores, das igrejas e mosteiros, do rei e dos bispos. Os homens livres, artífices, comerciantes, clérigos, eram poucos, poucos ainda os cultivadores de vilas e proprietários delas ou de alguma fracção. As vilas eram divididas em casais, a cada um dos quais eram atribuídos campos, leiras, montados, diversamente situados de acordo com as necessidades do cultivo. E os casais iam crescendo em número e extensão à custa de novos arroteios com o aumento da família, fazendo-se nas sucessões a divisão de facto. [Vol. XlX - N.º 75 - 1953] / 210 /

Perante o senhor ou senhores delas, porém, a vila mantinha-se juridicamente integra: doavam-se, vendiam-se ou herdavam-se porções da renda, mas não fracções de terra. A desagregação de facto e de direito, já sensível nos meados do século X, fez-se sobretudo nos dois seguintes.

Frequentemente os senhores das vilas ou de alguma fracção construíam pequenos templos para as suas necessidades espirituais e as dos seus vizinhos, os quais ficavam sendo propriedade sua, de que podiam dispor livremente. E foram estes templos a origem da maior parte das igrejas paroquiais de hoje.

Era grande a vila de Arcus. Nela se compreendiam as terras de Anadia e Moita, porventura outras ainda. A sua origem vem de além da História. Foi Castro, pré-romano e ainda na Reconquista foi Civitas, isto é: monte fortificado para protecção dos que viviam em suas proximidades. A toponímia guardou-nos e levará pelos tempos fora a memória deste facto. Monte-Crasto é ainda o nome do povoado que sobre ele se ergue.

Ora naquele ano de 943 um presbítero chamado Pedro, por alcunha Bahalul, vendeu a sua igreja de S. Cucufate, em Arcus, a outro presbítero de nome Daniel. Era do vendedor a igreja, porque a tinha construído, herdado ou comprado. Foi a venda feita por quarenta e cinco soldos, mas com a condição do comprador, à sua morte, a deixar ao Convento de Lorvão. (Port. Mon. Hist., pág. 30). Sendo grande a vila de Arcus é necessário saber em que parte dela ficava a igreja de S. Cucufate.

Não será muito difícil descobri-lo. Em 961 um tal Aldreto vendeu a Iquila Iben Nazeron uma propriedade – Várzea – que tinha na margem do rio Arcus, limitada, por um lado, pelo ribeiro que vinha de Ferrariolos e a separava do Vilar de Calvos e por outro com a devesa de S. Cucujate. Estas limitações habilitam-nos a situar a igreja de S. Cucufate no actual lugar da Moita. (Loc. cit., pág. 54).

Esta região estava, como disse, em poder dos cristãos e era do condado de Coimbra. O Conde Exemeno morreu neste ano. Sucedeu-lhe o célebre Conde Gonçalo Moniz, o que alguns anos depois envenenou em Lorvão o rei Sancho, o Gordo. As campanhas de Almansor, que se estenderam por todo o último quartel do século X, produziram profundas modificações nesta situação. Coimbra caiu em 987 e, como consequência, o domínio árabe alargou-se de novo até ao Douro. O traidor Froila Gonçalves, filho do Conde Gonçalo Moniz, levantou-se contra o seu rei Bermudo III e juntou-se a Almansor, que lhe deu o governo do Condado, que era de seu pai, com, centro em Montemor-o-Velho. Froila Gonçalves governou até 1014 ou 1015, quando Afonso V levou / 211 / a reconquista até às margens do Mondego. Deve ter sido sob o governo de Froila Gonçalves que os monges de Lorvão criaram o mosteiro da Vacariça, de iniciativa própria ou, o que é plausível, a instâncias de Froila, que foi seu grande protector e benfeitor.

Apesar das vitórias de Afonso V, a linha divisória entre mouros e cristãos não pôde manter-se em Montemor, pois logo recuou para as margens do Cértima.

Coimbra, Viseu e Lamego ficaram ainda por muitos anos sob o Islão. A Vacariça deve ter ficado na linha divisória, de um ou outro lado. Seguindo a política tradicional de Lorvão, conseguiu atravessar incólume os quarenta anos de correrias devastadoras de mouros e cristãos, servindo a uns e outros.

Quando em 1064 o Imperador Fernando conquistou Coimbra, apressaram-se os monges da Vacariça em apresentar à sua confirmação o inventário de suas propriedades. Entre elas lá estava a igreja de S. Cucufate Cum Adiccionibus Suis. (Loc. cit., pág. 277).

Na igreja da Moita, sobre a porta lateral direita, lê-se esta inscrição: ln nomine Sancte Trinitatis edificatũ est. hoc templũ ad honore Sancti Cucufati Martiris. E. MCCXXXIlI – Em nome da Santíssima Trindade foi edificado este templo em honra de S. Cucufate – Mártir – Era 1233. Quer dizer que naquele ano do Senhor de 1195 foi reconstruída a velha igreja de S. Cucufate e dedicada ainda ao mesmo santo. É de notar que a inscrição já lhe não chama igreja, mas templo. Explica-se isto, a meu ver, pela limitação que a palavra igreja sofreu com a formação das freguesias, que já agora eram numerosas. Tendo servido nos séculos anteriores para designar qualquer templo, foi com o correr do tempo restringido para só nomear as que eram sede de freguesia ou que serviam ao culto geral desta. Naquele ano a Moita não era ainda freguesia, nem a era Anadia. A inquirição de Afonso II em 1220 não as mencionou, mas referiu as suas terras a Famalicão, que seria a sede.

Não diz a inscrição quem reedificou o templo, mas é de crer que fosse o bispo de Coimbra ou algum presbítero por sua ordem, porque a esse tempo era pertença dele, por lhe ter sido doada, com todo o mosteiro da Vacariça, por D. Raimundo. em 1094.

Cucufate era africano. Filho de família rica, fora mandado aos estudos em Cesarea. Cristão, fugiu à grande perseguição dos Imperadores Deocleciano e Maximiano, refugiando-se em Barcelona. Descoberto aqui, foi preso e martirizado com grande número de seus companheiros. Conta o Hagialógio a perseverança do Santo e o castigo que sofreram os verdugos no acto do martírio. Ao fim, decapitaram-no. / 212 / Foi isto no ano 303, logo no inicio da perseguição, que durou até 311. Mais de quinhentos anos depois, em 835, foi a cabeça do Santo transferida para a igreja de S. Dinis em França, a fazer companhia e a purificar as almas dos reis ali sepultados.

Com a invasão árabe, em 711, os bispos que escaparam foram refugiar-se no norte da Galiza. Para lá foram os do Porto, Braga, Coimbra, Viseu e Lamego. Ali se sucediam e de lá governavam espiritualmente as suas dioceses, se algum governo lhes era possível. Braga acabou por ser governada pelo bispo de Lugo. Só em 1070 teve bispo privativo, Pedro, ao qual sucedeu S. Geraldo.

Na reconquista e repovoamento ordenado por Afonso III a partir de 866, Braga destruída e quase abandonada, foi repovoada e reconstruídas algumas das suas freguesias, entre elas as de S. Frutuoso e S. Victor. Afonso III fez doação destas freguesias a S. Tiago de Compostela, além de outras terras.

Em 1102 era bispo de S. Tiago o célebre Diogo Gelmires. S. Geraldo em Braga lutava para recuperar para a sua cidade os seus direitos antigos de Sé Metropolitana, de que eram sufragâneos todos os bispados da Galiza. Por sua vez, Diogo Gelmires tinha a ambição de fazer metropolitana a sé de S. Tiago. O sentimento nacionalista português, já na plenitude da sua formação mais que secular, liberto dos laços étnicos, linguísticos e históricos que o prendiam à Galiza, poderia consentir que os bispados da Galiza fossem sufragados por S. Tiago, mas não os de aquém Minho. Por sua vez Diogo Gelmires, que por trás da ambição religiosa escondia a ambição política de independência para a Galiza, reclamava em Roma para a sua diocese os direitos de Braga ou os de Mérida, ainda em poder dos mouros.

A luta foi longa e dura. Fui o último capítulo de evolução lenta que poucos anos depois dava a independência a Portugal e ligava para sempre a Galiza à Espanha.

S. Geraldo tinha por Diogo Gelmires uma grande admiração. Ainda lhe não conhecia as intenções. Quando certo dia do fim desse ano de 1102 o bispo Diogo GeImires mandou dizer a S. Geraldo que estava às portas de Braga com grande comitiva para o visitar, o Santo arcebispo, ingénuo e bom, cheio de contentamento pela agradável surpresa, convocou clero, nobreza e povo e foi ao encontro do compostelano, que conduziu processionalmente até os seus próprios aposentos, onde, alegre e generosamente o hospedou. Gelmires logo no dia imediato começou a visita às suas freguesias. Rezou missa em S. Vítor de manhã e depois que todos os fiéis tinham saído, examinou altares, imagens, paramentos, tudo quanto na igreja tinha valor. E subiu-lhe então à cabeça / 213 / uma ideia genial: levar para Santiago as relíquias que ali se guardavam com grande veneração. Ouvido o seu fiel amigo e cónego Hugo, este logo respondeu: – «é uma inspiração divina – não se trata de um roubo, mas de um pio latrocinio». – E logo deitaram mãos à obra. Cavando junto do altar, dali arrancaram duas caixas de prata com as relíquias do Senhor e de Santos. No dia seguinte, missa em Santa Susana. Junto ao túmulo desta estavam os dos mártires Cucufate e Silvestre, que foram igualmente levantados; ao terceiro dia, após a missa em S. Frutuoso, coube a sorte a este santo, fundador do templo em que jazia. O segredo não fora violado. Hugo pôde transportar de noite, para Tui, aquelas relíquias sagradas, que eram a glória de Braga e pedra básica da fé do seu povo. Quando o arcebispo Geraldo descobriu a velhacada, era tarde; ia longe Gelmires com o precioso latrocínio. Foi grande a indignação, mas vã, porque o papa Pascoal II resolveu e determinou que ficassem em Compostela as relíquias, mas perdesse Gelmires o governo espiritual das duas freguesias de S. Vítor e S. Frutuoso a favor de Geraldo.

Ora como é que veio para Braga o corpo de S. Cucufate martirizado 694 anos antes em Barcelona?

A História compostelana não diz que se tratava de pequenas relíquias do Santo, mas do seu corpo em rude túmulo.

Tem o caso mais simples explicação do que parece. É que o S. Cucufate de Braga não era o mesmo S. Cucufate de Barcelona. O de Braga era irmão de S. Torquato, e dos dois se honra Braga de ter sido berço de nascimento e martírio. E foi o corpo deste S. Cucufate que o bispo Gelmires levou de Braga para Compostela. Não fala o Hagiológio deste santo, mas só do de Barcelona. Não o esqueceu entretanto a História Eclesiástica de Braga, em cujos anais o Santo tem carrilho, como diz a Beneditina Lusitana – (Trat. lI, Parte III, pág. 446).

Também no Alentejo, perto de Beja, na Vila de Frades, houve antigamente um convento, cujas ruínas ainda no século XVII mostravam, na sua extensão e grandeza, ter sido sumptuoso e rico. Se era dedicado ao mártir de Barcelona ou de Braga, não é possível sabê-lo.

Disse que Afonso III dera a S. Tiago, no fim do século IX, as duas freguesias de Braga. O mesmo rei, na mesma época, após a reconquista de Coimbra em 877 pelo Conde Hermenegildo, cuidou do repovoamento dentre Douro e Mondego e também então doou a Santiago as terras ali situadas: S. Martinho, S. Lourenço e Travassô. É natural que a Igreja Compostelana confiasse à mesma ou mesmas pessoas a administração espiritual e temporal das freguesias de Braga e destas terras, dentre Vouga e Mondego, criando entre elas relações através / 214 / das quais o culto de S. Cucufate irradiou de Braga para a Bairrada. Hipótese, que facilmente se aceita, à falta de melhores elementos de verdade.

E se foi por influência de S. Tiago que o culto de S. Cucufate chegou ao templo em sua honra edificado na antiga vila de Arcus, natural é que também no mesmo templo se guardasse e venerasse a imagem do Apóstolo, tanto mais que a Igreja festeja este e S. Cucufate no mesmo dia, a 25 de Julho.

Quando mais tarde, já em pleno século XV, se constituiu a freguesia da Moita e reconstruiu o templo para esse fim, já a festa de S. Tiago teria deixado no esquecimento a do mártir S. Cucufate e daí a mudança do padroeiro, que passou a ser S. Tiago da Moita.

Coincidência curiosa é a de que nos dá conhecimento MANUEL SEVERIM, na memória que escreveu sobre a visita que fez às ruínas do Mosteiro de S. Cucufate em Vila de Frades. «Poucos dias há – diz ele – que em uma jornada que fiz, rodeei algumas léguas, por ver as ruínas do Mosteiro de S. Cucufate e é muito maior coisa do que me tinham dito, porque não são ruínas subterrâneas, mas fábricas tão levantadas como as maiores romanas, vêem-se nelas varandas, torres, salas, e arcos tão altos, como as das maiores naves, e por baixo há outras tantas casas, com abóbadas de argamassa antiga. A imagem do Santo, levaram para a Igreja matriz de Vila de Frades, e em seu lugar puseram uma de S. Tiago também de vulto a cavalo...» (Ben. Lusit., pág. cit.). Quer dizer; também lá no mosteiro de Vila de Frades a imagem de S. Cucufate foi substituída pela de S. Tiago. Pelas mesmas razões que determinaram a mudança na Igreja da Moita? Não sei.

Atribuo a criação da freguesia da Moita ao século XV, mas não faço uma afirmação categórica. Esta dependerá de outro estudo. Não é forte a razão em que agora me apoio, mas vale a pena apresentá-la porque também é circunstância que não deve ficar esquecida na história da igreja da Moita.

Há numa parede da sacristia uma inscrição lapidar na qual se impõem aos párocos da freguesia obrigações de missas, por alma de um pároco que dotou a igreja de passais e pelas dos fundadores da capela de S. Gregório. Esta inscrição foi lavrada depois da fundação da capela; muito verosimilmente logo após a morte dos seus fundadores e não muito depois da morte do pároco que lhe deu ou ampliou os passais. A parte inferior do retábulo de S. Gregório é do fim do do século XV ou princípio do século XVI. De igual data serão as pedras lavradas que formam o frontal do altar. Pelas inquirições de Afonso lI, de 1220, como disse, e ainda pelas de D. Dinis de 1282, a freguesia ainda não existia. Aquela / 215 / lembrança da obrigação de missas por alma dos fundadores da capela de S. Gregório, que certamente viveram na segunda metade do século XV, e pela alma do doador dos passais, que deve ser pouco anterior àqueles, autorizam a reposição da criação da freguesia nesta época, com nova reforma e ampliação do templo.

Há ainda uma outra inscrição na capela do Cristo Crucificado, também lateral esquerda, que diz: «O L.do M.el de Almeyda prior que foy desta Igreja Commissario do St.º Off.º, Arcipreste e Visitador neste bispado, e O P.e Mateus, cura que foy nesta Igreja, mandaram edificar esta capella, em honra, louvor e glória, desta devotissima e prodigiosa imagem de J. H. Crucificado com obrigação de missa quotidiana e festa a 3 de Maio e estam nela sepultados. Anno D. 1719». Eram irmãos os dois padres. O Manuel morreu a 1 de Janeiro daquele ano. Já se não percebe a data do falecimento do Mateus. O altar é rico de barroco da época. E como é igual à parte superior do altar de S. Gregório, julgo que foram estes dois padres que truncaram este para ali poderem pôr a imagem de S. Gregório, mais alta que a anterior.

Há na torre um sino anterior ao século XIX. Diz a tradição, certamente verdadeira, que foi enterrado, para assim escapar à rapina das invasões francesas.

A Moita é terra rica e boa, que ainda agora recebe a graça de ter um bom pároco: o Padre Reis, a quem sou grato pela gentileza com que me recebeu.

AUGUSTO SOARES DE SOUSA BAPTISTA

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