À lembrança de DINIS GOMES,
que não esquece nesta casa.
ln illo tempore, ...
− sim, naquele tempo, a Vida era
calma, confiada e tranquila! − Hoje, tudo parece diferente;
e assim é, na realidade.
Ai de nós outros, − quando meninos e moços nos deslumbrávamos nas
quimeras doiradas dos sonhos e ilusões da
juventude, aspirando a sermos gente grada, − ai de nós!...
que não augurávamos a veracidade da cantiga popularizada:
«− É tão bom ser pequenino,
Ter pai, ter mãe, ter avós;»
Nunca um amigo mais velho, nem conselho paterno, nos
preveniu desta cruel realidade, pois, só tarde e irremediavelmente ultrapassadas as oportunidades, se comprova por
experiência feita, quanta verdade o Poeta popular substanciou nestes versos que muita gente há cantado!...
Bem sabemos da existência de certos próceres da cátedra de Orientação Profissional, que são acérrimos defensores
de se manter (e não perturbar), a conduta da ingenuidade
na época da juventude, visando à preocupação receosa de se
não antecipar, na criança, uma cerebração que a envelheça
precocemente.
Talvez estivesse certa a teoria,
− então, quando as mutações sociais se representavam mantidas em gráficos de linhas
ligeiramente osciladas, sem as bruscas evoluções psicológicas
que se observam actualmente.
Assoalhar o raizame destas causas, não vem para aqui.
Mas é tão notória a mudança, que até o Povo a exprime
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nascem com os olhos abertos, os crianços...»
Esta compreensão simplíssima rebate os catedráticos daquela ciência e
pena é que esteja errada na expressão anátomo-psicológica, pois é sabido
que o nosso aparelho visual só atinge desenvolvimento, capaz de ver,
muitos dias após o nascimento.
Sempre o drama da evolução,
− na lei fisiológica de: − a função fazer o órgão!
in illo tempore,
− a vida, aqui, nesta Costa Nova do Prado, era diversa, por tudo e por
todos, deste bulício e confusão actuais.
Ao acabarem-se as aulas e os exames, nas canículas de Junho e Julho, que
eram de facto ardentes, − arrumadas à pressa, numa maleta qualquer, as
farpelas mais velhas e usadas, − vá de entregar a reduzida bagagem à
vizinha pescadeira que a levasse p'rá Costa.
E, pela fresca da madrugada, quando se não adregava boleia nos carros do
João Catão ou do Parracho, abalava-se, pedibus calcantibus, tagarelando
na companhia do mulherio regatão.
Aligeirava-se o passo, e quase sempre se topava, à
Escola de Tiro, com os carros dos boeiros Pachacho e Manel
Bezerro, carreando a tralha de quem se juntava para com
ela fazer um carreto.
Mais adiante, dá-lhe na andança, era certo encontrar as
padeiras de Vale de Ílhavo, caminhando vagarosamente por
ajoujadas com as bolsas do pantrigo, − aqueles alvos pães de coroa a
bintacinco e trinta réis, os mais grados, tostados e saborosos como os
biscoitos da Costeira!
«Esprende aí, esprende aí!...» «Dende-me uma maõzinha a esta bonça que bai a cair!...»
Ajeitavam-se os carregos, (quando não poisava alguma
mais idosa e sobrecarregada), e vá de abalar naquele lusco-fusco,
maldizendo tagarelices em voz alta, quando não se cochichavam rumores de
haver cão danado na Mata, ou toirete tresmalhado da vacada do Sr.
imaginário...
Galreando todo o longo caminho, chegava-se à
Mota antes que o Sol fosse
nado, a tempo e horas de aproveitar o primeiro banho nas salsas ondas.
Se a barca do Serrano demorava, era mesmo ali, na casita da Ti Norta que
se comia uma sêmea de dez réis a fazer pé ao decilitro da bruxa, que era
bem boa e não deixaria esfriar a quentura daquela andança matinal.
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Trocava-se o meio niclo, pedia-se a moeda de cinco réis para a passagem,
e embrulhado e amarrado o troco na ponta do lenço, breve se ouviria:
«Larga!... La... ar... ar... ga!...» silabando, espa
cejadamente, o vozeirão e o eco do arrais da barca!
Quem não se lembra da voz do
Labareda, a ecoar como
búzio no silêncio da ante-manhã?
(Hei a contar uma história do
Labareda, eu).
«Falta a Bôta e a Ti-Torrôa. Bem ao Ferreiro,
esprende aí!»
E esperavam, numa camaradagem de concorrência,
daquele tempo, desajudando-se mutuamente!
Arrumadas as cestas das bolsas do pão nos paneiros da
proa, o mulherio na ré, era logo desfeito o nó da borda que
amarrava a embarcação à grossa estaca; e fazendo guinar com
fortes varadas a bica para a Costa, caçada ou folgada a escota
(conforme o vento), ferrada a prumo a pá da borda, o velho
saleiro começava a viajata com o mulherio acocorado nos paneiros, à
revessa, maldizendo a calmaria e a sorna dos
barqueiros que se não despachavam a pegar nas varas...
− «Sendas uns instupentos madrações!
− e que bós sendas umas...», ouvia-se constantemente!...
E isto era mimo de palavreado, pois quando calhava o
Sol começar a erguer-se e a barca ainda a meio da Ria, o alarido
gesticulado não raro desandava em insulto ameaçador:
−«É, coriscos! parcendas mais pôdras qás burras
do
Zécagéno...»
Aquele Sol, aos nossos olhos de garotio azougado, tinha
outra luz, como a Ria e o Mar outras cores; e a carícia
mágica destas águas, − o seu afago velutíneo, − ainda hoje
relembra!
Se relembra! Até faz boiar na memória seres e coisas
adormecidas no pélago das saudades!
Não estamos a ver, quarenta e tal anos volvidos, o
panorama geo-humano destas lembranças tão queridas?
Aqui vem o banheiro «Ti-Zé-Pio...»
Está na mesma, ante os meus olhos. É ele mesmo, baixo
e grosso como um marco de pedra romano, estacado na borda!
Olha a sua carranca de carquilhas, tisnada da salitragem marinha, a
furar, perscrutadora, do sueste e camisola impermeabilizados com tinta verde salsa?!!!
Grande banheiro era ele, ruinzão e destemido, sobressaindo dos outros, com tábua do peito grossa de parede
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mestra, braços gingando como remos pandos, manápula agigantada, pernas de mastaréu com gémeos batatudos, a
articularem-se em pés largos e tamanhões que dir-se-iam de
chumbo − pois a maresia, em seu refluxo, não lhos arredava da areia onde
os fincava!
«O Ti-Zé-Pio!!!...»
− «Se mo ensinar a nadar dou-lhe meia libra em oiro,
− prometera a minha Mãe.»
E deu mesmo, porque me ensinou, empregando o seu
reportório educativo que nunca falhava, começando pelos
mergulhos à espanhola para se perder o medo.
− Cá vai um, cá vai um à espanhola!... e segurar-nos
pelos fundilhos, erguer-nos a toda a altura dos braços
enquanto misturava «crelesons com patrenobes» e arremeçar-nos a jeito
de se cair na água como um sapo... era um regalinho − !
− Tal está a auga, Ti-Zé?
− É caudo; tá morna. Brinque à bontade...
E lá patinhávamos, brincalhando no quérulo baloiço das
ondas roleiras, sob as vistas e ordens do banheiro atento a tudo e
todos, que nos comandava, sabedor:
− Chega abaixo àquela,... à outra,... à de trás!
Força, sem medo, margulhões!. ...
− O «Ti-Zé-Pio!» Que de saudades a sua lembrança
desnovela!... A caterva do garotio da nossa idade fazia roda no mar e
cantarolava num guincho alviçareiro, como as gaivinas:
− «Ó minha costureirinha,
Caixeira dos meus segredos;
Deixa a agulha, vem comigo,
Não queiras picar teus dedos...»
Queixos trementes por demorada estadia na água, o
mergulhar, brincar, cantar e dançar nunca mais acabaria, se
o banheiro atento não começasse a objurgar da borda:
«− Cá pra fora, cá pra fora que bem acolá um
augueiro!
É, safardanas! − rua daí, rua daí,
− seus alforrecas dum raio!
Oibindas, − ou bô lá
eu!..»
Dito e feito: − vê-lo enfiar pelo mar dentro e à braçada
como quem arrebanha pescaria em saco roto, com aquelas
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manápulas de pás da borda cachaçando nos mais próximos, − era uma
limpeza no cumprimento da ameaça!
O banho, naquele tempo, era dado em maré propícia e a praia mudada
consoante as oportunidades de segurança por declive, profundidade e
correntes. Quantas vezes às 3 e 4 da manhã, alertava a voz trovejante do
«Ti-Zé-Pio»:
− Ê pró bâ... â... â...
â... nho! Lá pró su... u... uu,
rés à Landrona!...
Erguer da enxerga fofa da palha de trigo, nova; enfiar a andaina puída e
esfregar o remelaço nocturno (quem lavaria a cara nesse tempo, quem?) para abalar através da lomba que era o
caminho mais perto, seria um ar. E, galgadas as dunas, varar na barraca,
vestir uma daquelas camisolas às riscas que custavam no tendeiro nove
vinténs, escolher do monte qualquer dos calções de que não se sabia o
dono, para abalar correndo a enfiar nas ondas, tantas e tantas, à espera
que o Sol nascesse e olimpicamente doirasse a água e os nossos corpitos
ágeis e franzinos... oh!... − o que não daríamos hoje para se repetir a
proeza, − se possível fosse
recuar o espaço de tempo desta agradável lembrança!...
O banho, aqueles banhos!
Se o oceano picava sob raminho de vento norte, era
sabido que o «Ti-Zé-Pio» só nos deixava entrar no mar à sua mão. Juntava
meia dúzia, três à direita e outros à canhota e a pé firme ali se
esperava a onda propícia para todos mergulharmos, quando ele cantava:
«É... é... é... agora, agora mesmo, pró fundo!
Fora, que no está pra treato, hoje».
Quando algum das estremas apanhava a sua solha, era
alvo de forte surriada dos matolos espectadores. − Olha aquele a comer
areia!... Olha, olha! riam alegremente!
Duma vez,... − mas fica para contar doutra vez....
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Engraçava comigo, o «Ti-Zé-Pio». Quando às tardes
costumava vir sentar-se no banco de ripas da Ti Ana Malaca à espera que
lhe alugassem a bateira baptizada de Portugal Velho, ou na expectativa
de ordas dos freguesas, pois o
banheiro cobrando apenas um vintém por cada banho ainda
tinha o encargo de rachar a lenha aos seus banhistas, − se calhava eu
passar com naco de cortiça achada arrolada na borda, logo me chamava
para com ela, mesmo ali, me talhar um barquinho.
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Vejo-a agora e tenho-a em frente dos olhos, àquela grande
navalha marca A. O. T., que tanto cobiçava e vejo a perícia com que o Ti-Zé-Pio começava a almejada brincadeira, mirando e remirando,
vagarosamente, a panda encharcada!
− Bai achar um caco de
telha pra fazer gume, queste
birou; − bai, anda...
Contava-me a sua história as mais das vezes, a relembrar os seus tempos
de embarcadiço, imprimindo uma grande ternura à falação:
«− Era poico maior ca ti quando fui numa
embiada c'o teu abô pró Tejo;
ganhei nessa biage um quartinho e comi dêlas...»
Cotava-se na roda dos meus tios mais velhos, tratava-os por parentes,
reproduzia-me alguns dos celebrados episódios políticos dos meus avós do
lado dos Boticos, e duma vez
sai-se-me com esta:
− «É menino: pra que estudas? (e aqui a navalha parou
seu ranger no corte da cortiça).
− Quero ser engenheiro, teria eu respondido.
− «Sabas? − Tu tens a modo carinha de padre. Bai pra
padre comó teu tio Sr. padre Ze-Queindo, que bais bem.»...
− Se me fizer um barco de mar, grande, com homens,
remos, calimas e tudo... pode ser, Ti-Zé.
Alguns dias passados, mandou-me ao palheiro, que era o
Crié da Malaca, pela mulher, Ti Joaninha Quintelas, um lindo barco do
mar que guardei carinhosamente até há pouco tempo...
Que alegria juvenil, ao vê-lo empinar-se às marolas, amarrado com um fio
de palombar! O meu barquinho do mar, − eh nónó!... eh nónó!... o meu
barquinho... os meus nove anos!...
Boiaram-me estas saudades na alma e o desconsolado
sorriso da promessa não cumprida. O barco veio:
− Mas todos sabem que não segui o conselho amigo do banheiro Ti-Zé-Pio!!!...
apesar de ele saber que eu tinha
a modos... carinha de ser padre!!!....
Costa Nova, Agosto de 1952.
VAZ CRAVEIRO |