Vaz Craveiro, Novelando saudade - O Ti Zé do Pio, Vol. XIX, pp. 68-73.

NOVELANDO SAUDADE

O «TI ZÉ PIO»

À lembrança de DINIS GOMES,
que não esquece nesta casa.

ln illo tempore, ...

                            − sim, naquele tempo, a Vida era calma, confiada e tranquila! − Hoje, tudo parece diferente; e assim é, na realidade.

Ai de nós outros, − quando meninos e moços nos deslumbrávamos nas quimeras doiradas dos sonhos e ilusões da juventude, aspirando a sermos gente grada, − ai de nós!... que não augurávamos a veracidade da cantiga popularizada:

«− É tão bom ser pequenino,
Ter pai, ter mãe, ter avós;»

Nunca um amigo mais velho, nem conselho paterno, nos preveniu desta cruel realidade, pois, só tarde e irremediavelmente ultrapassadas as oportunidades, se comprova por experiência feita, quanta verdade o Poeta popular substanciou nestes versos que muita gente há cantado!...

Bem sabemos da existência de certos próceres da cátedra de Orientação Profissional, que são acérrimos defensores de se manter (e não perturbar), a conduta da ingenuidade na época da juventude, visando à preocupação receosa de se não antecipar, na criança, uma cerebração que a envelheça precocemente.

Talvez estivesse certa a teoria, − então, quando as mutações sociais se representavam mantidas em gráficos de linhas ligeiramente osciladas, sem as bruscas evoluções psicológicas que se observam actualmente.

Assoalhar o raizame destas causas, não vem para aqui. Mas é tão notória a mudança, que até o Povo a exprime / 69 / dizendo, amiúde: «já nascem com os olhos abertos, os crianços...» Esta compreensão simplíssima rebate os catedráticos daquela ciência e pena é que esteja errada na expressão anátomo-psicológica, pois é sabido que o nosso aparelho visual só atinge desenvolvimento, capaz de ver, muitos dias após o nascimento.

Sempre o drama da evolução, − na lei fisiológica de: − a função fazer o órgão!

in illo tempore,

                      − a vida, aqui, nesta Costa Nova do Prado, era diversa, por tudo e por todos, deste bulício e confusão actuais.

Ao acabarem-se as aulas e os exames, nas canículas de Junho e Julho, que eram de facto ardentes, − arrumadas à pressa, numa maleta qualquer, as farpelas mais velhas e usadas, − vá de entregar a reduzida bagagem à vizinha pescadeira que a levasse p'rá Costa.

E, pela fresca da madrugada, quando se não adregava boleia nos carros do João Catão ou do Parracho, abalava-se, pedibus calcantibus, tagarelando na companhia do mulherio regatão.

Aligeirava-se o passo, e quase sempre se topava, à Escola de Tiro, com os carros dos boeiros Pachacho e Manel Bezerro, carreando a tralha de quem se juntava para com ela fazer um carreto.

Mais adiante, dá-lhe na andança, era certo encontrar as padeiras de Vale de Ílhavo, caminhando vagarosamente por ajoujadas com as bolsas do pantrigo, − aqueles alvos pães de coroa a bintacinco e trinta réis, os mais grados, tostados e saborosos como os biscoitos da Costeira!

«Esprende aí, esprende aí!...» «Dende-me uma maõzinha a esta bonça que bai a cair!...»

Ajeitavam-se os carregos, (quando não poisava alguma mais idosa e sobrecarregada), e vá de abalar naquele lusco-fusco, maldizendo tagarelices em voz alta, quando não se cochichavam rumores de haver cão danado na Mata, ou toirete tresmalhado da vacada do Sr. imaginário...

Galreando todo o longo caminho, chegava-se à Mota antes que o Sol fosse nado, a tempo e horas de aproveitar o primeiro banho nas salsas ondas.

Se a barca do Serrano demorava, era mesmo ali, na casita da Ti Norta que se comia uma sêmea de dez réis a fazer pé ao decilitro da bruxa, que era bem boa e não deixaria esfriar a quentura daquela andança matinal. / 70 /

Trocava-se o meio niclo, pedia-se a moeda de cinco réis para a passagem, e embrulhado e amarrado o troco na ponta do lenço, breve se ouviria:

«Larga!... La... ar... ar... ga!...» silabando, espa cejadamente, o vozeirão e o eco do arrais da barca!

Quem não se lembra da voz do Labareda, a ecoar como búzio no silêncio da ante-manhã?

(Hei a contar uma história do Labareda, eu).

«Falta a Bôta e a Ti-Torrôa. Bem ao Ferreiro, esprende aí!»

E esperavam, numa camaradagem de concorrência, daquele tempo, desajudando-se mutuamente!

Arrumadas as cestas das bolsas do pão nos paneiros da proa, o mulherio na ré, era logo desfeito o nó da borda que amarrava a embarcação à grossa estaca; e fazendo guinar com fortes varadas a bica para a Costa, caçada ou folgada a escota (conforme o vento), ferrada a prumo a pá da borda, o velho saleiro começava a viajata com o mulherio acocorado nos paneiros, à revessa, maldizendo a calmaria e a sorna dos barqueiros que se não despachavam a pegar nas varas...

− «Sendas uns instupentos madrações! − e que bós sendas umas...», ouvia-se constantemente!...

E isto era mimo de palavreado, pois quando calhava o Sol começar a erguer-se e a barca ainda a meio da Ria, o alarido gesticulado não raro desandava em insulto ameaçador:

−«É, coriscos! parcendas mais pôdras qás burras do Zécagéno...»

Aquele Sol, aos nossos olhos de garotio azougado, tinha outra luz, como a Ria e o Mar outras cores; e a carícia mágica destas águas, − o seu afago velutíneo, − ainda hoje relembra!

Se relembra! Até faz boiar na memória seres e coisas adormecidas no pélago das saudades!

Não estamos a ver, quarenta e tal anos volvidos, o panorama geo-humano destas lembranças tão queridas?

Aqui vem o banheiro «Ti-Zé-Pio...»

Está na mesma, ante os meus olhos. É ele mesmo, baixo e grosso como um marco de pedra romano, estacado na borda!

Olha a sua carranca de carquilhas, tisnada da salitragem marinha, a furar, perscrutadora, do sueste e camisola impermeabilizados com tinta verde salsa?!!!

Grande banheiro era ele, ruinzão e destemido, sobressaindo dos outros, com tábua do peito grossa de parede / 71 / mestra, braços gingando como remos pandos, manápula agigantada, pernas de mastaréu com gémeos batatudos, a articularem-se em pés largos e tamanhões que dir-se-iam de chumbo − pois a maresia, em seu refluxo, não lhos arredava da areia onde os fincava!

«O Ti-Zé-Pio!!!...»

− «Se mo ensinar a nadar dou-lhe meia libra em oiro, − prometera a minha Mãe.»

E deu mesmo, porque me ensinou, empregando o seu reportório educativo que nunca falhava, começando pelos mergulhos à espanhola para se perder o medo.

− Cá vai um, cá vai um à espanhola!... e segurar-nos pelos fundilhos, erguer-nos a toda a altura dos braços enquanto misturava «crelesons com patrenobes» e arremeçar-nos a jeito de se cair na água como um sapo... era um regalinho − !

− Tal está a auga, Ti-Zé?

É caudo; tá morna. Brinque à bontade...

E lá patinhávamos, brincalhando no quérulo baloiço das ondas roleiras, sob as vistas e ordens do banheiro atento a tudo e todos, que nos comandava, sabedor:

− Chega abaixo àquela,... à outra,... à de trás!
Força, sem medo, margulhões!. ...

− O «Ti-Zé-Pio!» Que de saudades a sua lembrança desnovela!... A caterva do garotio da nossa idade fazia roda no mar e cantarolava num guincho alviçareiro, como as gaivinas:

− «Ó minha costureirinha,
Caixeira dos meus segredos;
Deixa a agulha, vem comigo,
Não queiras picar teus dedos...»

Queixos trementes por demorada estadia na água, o mergulhar, brincar, cantar e dançar nunca mais acabaria, se o banheiro atento não começasse a objurgar da borda:

«− Cá pra fora, cá pra fora que bem acolá um augueiro!

É, safardanas! − rua daí, rua daí, − seus alforrecas dum raio!

Oibindas, − ou bô lá eu!..»

Dito e feito: − vê-lo enfiar pelo mar dentro e à braçada como quem arrebanha pescaria em saco roto, com aquelas / 72 / manápulas de pás da borda cachaçando nos mais próximos, − era uma limpeza no cumprimento da ameaça!

O banho, naquele tempo, era dado em maré propícia e a praia mudada consoante as oportunidades de segurança por declive, profundidade e correntes. Quantas vezes às 3 e 4 da manhã, alertava a voz trovejante do «Ti-Zé-Pio»:

Ê pró bâ... â... â... â... nho! Lá pró su... u... uu, rés à Landrona!...

Erguer da enxerga fofa da palha de trigo, nova; enfiar a andaina puída e esfregar o remelaço nocturno (quem lavaria a cara nesse tempo, quem?) para abalar através da lomba que era o caminho mais perto, seria um ar. E, galgadas as dunas, varar na barraca, vestir uma daquelas camisolas às riscas que custavam no tendeiro nove vinténs, escolher do monte qualquer dos calções de que não se sabia o dono, para abalar correndo a enfiar nas ondas, tantas e tantas, à espera que o Sol nascesse e olimpicamente doirasse a água e os nossos corpitos ágeis e franzinos... oh!... − o que não daríamos hoje para se repetir a proeza, − se possível fosse recuar o espaço de tempo desta agradável lembrança!...

O banho, aqueles banhos!

Se o oceano picava sob raminho de vento norte, era sabido que o «Ti-Zé-Pio» só nos deixava entrar no mar à sua mão. Juntava meia dúzia, três à direita e outros à canhota e a pé firme ali se esperava a onda propícia para todos mergulharmos, quando ele cantava:

«É... é... é... agora, agora mesmo, pró fundo!
Fora, que no está pra treato, hoje».

Quando algum das estremas apanhava a sua solha, era alvo de forte surriada dos matolos espectadores. − Olha aquele a comer areia!... Olha, olha! riam alegremente!

Duma vez,... − mas fica para contar doutra vez....

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Engraçava comigo, o «Ti-Zé-Pio». Quando às tardes costumava vir sentar-se no banco de ripas da Ti Ana Malaca à espera que lhe alugassem a bateira baptizada de Portugal Velho, ou na expectativa de ordas dos freguesas, pois o banheiro cobrando apenas um vintém por cada banho ainda tinha o encargo de rachar a lenha aos seus banhistas, − se calhava eu passar com naco de cortiça achada arrolada na borda, logo me chamava para com ela, mesmo ali, me talhar um barquinho. / 73 /

Vejo-a agora e tenho-a em frente dos olhos, àquela grande navalha marca A. O. T., que tanto cobiçava e vejo a perícia com que o Ti-Zé-Pio começava a almejada brincadeira, mirando e remirando, vagarosamente, a panda encharcada!

Bai achar um caco de telha pra fazer gume, queste birou; − bai, anda...

Contava-me a sua história as mais das vezes, a relembrar os seus tempos de embarcadiço, imprimindo uma grande ternura à falação:

«− Era poico maior ca ti quando fui numa embiada c'o teu abô pró Tejo; ganhei nessa biage um quartinho e comi dêlas...»

Cotava-se na roda dos meus tios mais velhos, tratava-os por parentes, reproduzia-me alguns dos celebrados episódios políticos dos meus avós do lado dos Boticos, e duma vez sai-se-me com esta:

− «É menino: pra que estudas? (e aqui a navalha parou seu ranger no corte da cortiça).

− Quero ser engenheiro, teria eu respondido.

− «Sabas? − Tu tens a modo carinha de padre. Bai pra padre comó teu tio Sr. padre Ze-Queindo, que bais bem.»...

− Se me fizer um barco de mar, grande, com homens, remos, calimas e tudo... pode ser, Ti-Zé.

Alguns dias passados, mandou-me ao palheiro, que era o Crié da Malaca, pela mulher, Ti Joaninha Quintelas, um lindo barco do mar que guardei carinhosamente até há pouco tempo...

Que alegria juvenil, ao vê-lo empinar-se às marolas, amarrado com um fio de palombar! O meu barquinho do mar, − eh nónó!... eh nónó!... o meu barquinho... os meus nove anos!...

Boiaram-me estas saudades na alma e o desconsolado sorriso da promessa não cumprida. O barco veio:

− Mas todos sabem que não segui o conselho amigo do banheiro Ti-Zé-Pio!!!... apesar de ele saber que eu tinha a modos... carinha de ser padre!!!....

Costa Nova, Agosto de 1952.

VAZ CRAVEIRO

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