Soares da Graça, Auto da Infanta Dona Joana, Vol. XVIII, pp. 107-158.

AUTO DA INFANTA

DONA JOANA, FILHA

DO REI «AFRICANO»

CONVÉM acentuar, antes de mais, que se não pretendeu, com este trabalho, apresentar uma obra de investigação, aliás desnecessária. em face da publicação da curiosíssima Crónica e Memorial da Infanta, onde pode ler-se, reproduzido na íntegra, e doutamente prefaciado e revisto por um ilustre escritor do nosso Distrito – a quem a cultura nacional já tanto deve – o precioso códice quinhentista que sempre se guardou cuidadosamente no Mosteiro de Jesus, e ao qual os numerosos escritores que no decorrer dos tempos biografaram a Santa Princesa foram colher os elementos para isso necessários, amoldando-os e ajeitando-os a seu gosto e estilo; o que vai ler-se, tudo foi ainda sugerido na leitura da Crónica referida, a que os séculos, sobre ela já dobrados, não conseguiram apagar o perfume, de suave e enternecedor encanto, que de suas linhas venerandas se desprende.

Procurou-se unicamente aproveitar e pôr em cena a natural teatralidade existente em alguns dos acontecimentos passados no Convento de Jesus com a Infanta, historicamente comprovados, e que, por assim dizer, consubstanciam o impressionante drama que foi a sua vida, mística paixão e morte.

Focámos em especial a chegada de D. Afonso V e da Infanta ao Convento, a comovedora cena da tomada de hábito, e com isso e pouco mais se preencheu a 1.ª parte do Auto, que, por comodidade de expressão, se rotulou de 1.º acto; no 2.º apresenta-se ao público o violento conflito entre a Infanta e o Príncipe seu irmão, vigorosamente contado na Crónica, e a doença e subsequente morte da Santa.

É, pois, mera série de quadros históricos, e em rigor assim se lhe devia chamar; isto se declara em devido tempo, para desagravo do classicismo da técnica teatral, que de forma alguma pretendemos atingir com este nosso simples e desataviado Auto...

Quanto à forma rimada que se lhe deu, afigurou-se-nos condizer melhor com a solenidade do tema. O leitor tudo perdoará. / 108 /

1452  

1952

 

PERSONAGENS

 
INFANTA REI D. AFONSO V PRÍNCIPE D. JOÃO
D. BRITES LEITOA MARGARIDA PINHEIRO BISPO DE COIMBRA
IRMÃ CATARINA IRMÃ PORTEIRA BISPO DE ÉVORA
IRMÃ VIOLANTE IRMÃ SACRISTÃ AIO DA INFANTA
IRMÃ INÊS FREI JOÃO DIAS (Confessor
             da Infanta)
 

E AINDA
O FÍSICO-MOR DE AVEIRO – D. MECIA DE ALVARENGA –
D. FILIPA (tia da Infanta); estas, personagens mudas.
Coros de freiras de S. Domingos – Fidalgos – Pajens – Escudeiros
– Clérigos – Damas de Honor da INFANTA, etc., etc.


EM AVEIRO – SÉC. XV

PRÓLOGO

Batidas as três pancadas do estilo e corrido o pano, começam a ouvir-se, entre bastidores, coro de freiras e órgão, por breves momentos. MARGARIDA PINHEIRO – a delicada cronista do Convento de Jesus e da Infanta, lerá. sentida e pausadamente, junto a uma cortina de fundo, o trecho da Crónica em que se descreve a entrada da Princesa no Mosteiro e a vinda do Príncipe D. JOÃO a Aveiro, com o fim de a retirar dali (1).

A freira dominicana está sentada num tamborete, junto de mesa baixa, coberta com sanefa verde; vai lendo devagar, e pontuando, com pena de pato – como se na própria ocasião redigisse a narrativa. Em cima da mesa um Cristo, devocionários, um tinteiro antigo, de estanho, etc. Luz frouxa, irradiando da candeia junto à mesa. / 109 /

«Aos quatro dias do mes de agosto do ãno do Senhor de Myl quatrocentos e setenta e dous . Entrou a dita Senhora princesa a Senhora Iffante dona Johana nossa Senhora neste moesteiro de Jhesu nosso Senhor . Entrãdo cõ ella dentro . Ellrey seu padre. E o princepe seu Irmãao e a Senhora dona ffelypa sua tya . E a monja dona micia dalvarẽga que a dita Senhora trouvera cõ licẽca de sua abadesa do moesteiro de udivellas. Stavã Ja prestes pera Receber a dita Senhora Ifante . a madre prioressa britiz leytoa . e a madre Maria datayde . e outras madres das mais antiiguas cõ muita devaçõ e lagrimas de alegria e gozo divinal . misturado cõ themor de deus . por veerẽ uma tam grande e nõ costumada obra sua nõ vista nẽ ouvida ẽ nossos tẽpos . As outras Religiosas todas cõ grãde prazer stavã no Coro e devotas oracoẽs Recolheytas, dando muitos louvores ao Senhor deus . Entrou a dita Senhora per a manhãa acabãdo de ouvir myssa na Capella e Igreja de Jhesu . vespera de nossa Senhora das neves E de nosso padre sã domingos»...

Entretanto, ouve-se o toque da sineta conventual, chamando para o coro, erguendo-se então a freira do seu lugar e saindo com presteza, juntando, antes, as folhas de pergaminho em que escrevia.

Pega na candeia e leva-a, ficando a cena às escuras. Afastada entretanto a cortina de fundo, aparece logo a cena seguinte:

 

ACTO I

QUADRO I

Sala do Capítulo no Mosteiro de Jesus, de Aveiro. Preparativos para ali ser recebido el-Rei D. Afonso V, acompanhado da sua comitiva régia, de que fazem parte a INFANTA DONA JOANA e seu Irmão o PRÍNCIPE D. JOÃO e outras figuras da Corte. Mobiliário e adornos da época, num ambiente sóbrio, modesto, mas austero, solene. Algumas freiras, que se vêem distribuídas pela sala, andam açodadas no seu arranjo, limpando, arrumando e ajeitando as coisas. Caminham ligeiras, febrilmente, de um lado para o outro, com visíveis mostras da grande alegria que lhes inunda a alma. Vêem-se dois tronos: um ao fundo, mais alto; outro com menos degraus, à direita. No primeiro, que será ocupado pelo Rei, há dois cadeirões, ficando um deles vazio, e sendo o outro ocupado por D. AFONSO V. No trono mais baixo ficará a INFANTA, ladeada pela Monja D. Mecia de Alvarenga, que veio de Odivelas, e por D. Filipa, tia de Dona Joana. / 110 /

IRMÃ VIOLANTE

        (Erguendo-se do chão, onde assentava uma esteira. Para a outra IRMÃ:)

Esta vinda assim... de el-Rei e da Senhora INFANTA
Que logo pela manhãzinha nos foi anunciada,
É que a todas – tão vivamente! – nos encanta! ...
É já alta recompensa, p'lo Divino Mestre dada,
As muitas boas obras da santa Madre Superiora;


        (Olhando para o alto, modo evocativo)

Que com tantas fadigas! ... e com tamanha devoção!...
Fundou este Mosteiro... e p'ra ele escolheu – numa feliz hora,
O nome de JESUS – que a preceito lhe ficou, por santa invocação!...

        (Retoma o trabalho, mas ouve primeiro o princípio da réplica da companheira)

IRMÃ CATARINA

        (Pára de trabalhar, dizendo, em resposta)
Não há pois que haver temor... nem mesmo qualquer receio...
Tudo é... certamente... determinação de Deus,
Como vós dizeis... e eu muito bem o creio...
Hemos só que elevar a alma, com gratidão, aos céus!...

DONA BRITES LEITOA

        (Entra pelo fundo, E. Apressada, nervosa, sem parar, demonstrando viva satisfação. Para as Irmãs presentes)

Apressai-vos, boas Irmãs, não pode haver demora...
A régia comitiva está perto, vem mesmo aí a chegar:
Pelo que dizem, já se avista na estrada, lá de fora!
Vieram ali agora, tocar à portaria, p'ra nos avisar...
(Muda de tom, com afabilidade)
Não esmoreçais, pois, nesta devota canseira,
Que é serviço de Deus e desta nossa Casa...
Tenho de ir ao coro, mas volto já... numa carreira...  
/ 111 /

        (Com ar muito alegre, voltada para o alto)

Senhor!... Todo o meu coração... de amor se abrasa!...

        (Sai apressadamente)

IRMÃ CATARINA

        (Acenando com a cabeça em modo de confirmação)
Não pode, na verdade, ter tudo isto outro sentido!...
É sobrenatural Graça: prémio generoso e santo
Para o Mosteiro; que a todos... foi assim preferido...
E a que a Princesa, – de há muito! – queria tanto...

        (Retoma a sua tarefa, benzendo-se)

DONA BRITES LEITOA

        (Que volta. Sempre apressada. Aponta para a parede, e sem parar um instante, atravessa a sala, observando tudo, parando aqui e além, etc.)

Mas não puseram ainda... além... o reposteiro!...
São talvez poucos bancos... Acho bem ali os cadeirais.

        (Mirando de longe)

O trono vê-se melhor... Está assim mais sobranceiro...

        (Falando para todas as irmãs)

É preciso ver, se falta alguma coisa mais!...

IRMÃ VIOLANTE

        (Curvando-se, em respeitosa vénia, depois, de mãos dadas, aproximando-se um pouco da Superiora)

Dizei, Reverenda Madre, tudo o que é mister
Pois só aguardamos vosso justo mandado...

IRMÃ CATARINA

        (Com atitude idêntica à da outra Irmã)
Faremos tudo... tudo quanto vos aprouver...
E que o nosso Divino Salvador seja louvado!...  
/ 112 /

DONA BRITES LEITOA

        (Põe a mão na testa, como querendo despertar a memória. Dá novo relance de olhos para tudo)

Não sei agora... se El-rei concederá audiência...
Mas creio que desta vez não virá pr'a demorar...
O Clero e Nobreza devem prestar-lhe reverência:
Com todas estas coisas... teremos de contar!...
Além disso, algumas Damas da Vila, e Donzelas,
Querem vir aí saudar a INFANTE, senhora nossa;
Havemos de ter aqui lugar para todas elas...

        (Numa atitude de súplica, para o alto)

Ajudai-nos, Senhor: Que, a tudo, prover se possa!...

IRMÃ VIOLANTE

        (Solicitamente, dando uma ideia)

Podiam vir mesmo dali... daquela Sacristia,
Os dois bancos maiores... não serão precisos mais...

DONA BRITES LEITOA

        (Concordando com o que foi lembrado)
Sim... forram-se de qualquer tapeçaria...
E ficarão melhor; no tamanho, até, são quase iguais...

        (As duas freiras saem, não esperando qualquer ordem para ir buscar os bancos, fazendo reverência à Madre Superiora. D. Brites Leitoa dá uma última vista de olhos a tudo, parando aqui e ali, mudando ou ajeitando qualquer móvel ou adorno, sendo entretanto surpreendida pela irmã Porteira que surge, repentinamente)

IRMÃ PORTEIRA

        (Traz molho de chaves, tilintante, pendente da cintura. Atitude alegre, ainda que perturbada; faz vénia à Superiora, declamando com entusiasmo)

Reverenda Madre!. .. EI-rei é já chegado!...
Aguarda no Claustro, onde ficou a repousar,
Pois que, desta jornada, ele é bem fatigado.
Convosco, porém, se queria, desde já, avistar...  
/ 113 /  [Vol. XVIlI - N.º 70 - 1952]

DONA BRITES LEITOA

        (Que exterioriza grande satisfação. Ansiedade nas perguntas, transparecendo o pensamento que tem fixo na INFANTA. Aproxima-se mais da Irmã Porteira)

E traz com ele grande acompanhamento?...
Não vísteis também a Senhora INFANTE?!...

IRMÃ PORTEIRA

        (Com manifesto alvoroço. Muda de tom; ar de evocação)

Até há pouco, não dei que entrasse no Convento...
E o que vi... foi a correr; num rápido instante...
Mas!... grande séquito é! Fidalgos, Pajens, Escudeiros!...
E mais pessoal lá da Corte!... Até homens armados!...
E um grupo numeroso, de aprumados Cavaleiros!...
Muita gente!... Muita gente mais, que nem sei quem seja!...
Se me não engano, estavam juntamente dois Prelados!...


DONA BRITES LEITOA

        (Que sentiu mágoa por a irmã não lhe dar conta de ter visto a Infanta, fala em ar de conformação, e depois, com acento mais decisivo)

Então... Irmãs... Talvez que a Senhora Princesa,
Se dirigisse, em primeiro lugar... à nossa igreja...
Vou ter com El-rei... (em àparte) Foi rezar... com certeza!...

        (A Irmã Porteira sai, logo que D. Brites Leitoa lhe diz ir falar com o Rei, fazendo vénia. A Superiora dá ainda uma rápida vista de olhos a tudo que a rodeia, parando depois, a meio da cena, olhando para o Crucifixo que está sobre a porta, na parede. Tom exclamativo)

Perdoai-me, Senhor!... É um pensamento errado!...
Mas parece que até receio... de crer em tudo isto!
A Princesa real, dar aqui entrada?!... Viver a nosso lado?
Fazer-se, como nós... Uma pobre IRMÃ DE CRISTO?!!...

        (Erguendo os braços, arrebatadamente)

Que grande alegria!... E que alentadora esperança!...
E para este Convento?... Que risonho porvir...    
/ 114 /


Rejeitou os ceptros da Inglaterra e da França,
(2)
E só a Vós, Senhor!... Ela quer amar... e quer seguir!...

        (Cena deserta, por momentos, até que surgem duas freiras que transportam um dos bancos grandes, seguidas por outras duas que conduzem outro; vem ainda outra Irmã que traz de braçado o reposteiro que vai colocar no varal próprio, por detrás dos cadeirões régios. As irmãs, que trouxeram os bancos, entregam-se, afanosamente, ao trabalho de os forrar com as sanefas que uma outra irmã veio trazer, pouco depois)

IRMÃ CATARINA

        (Sobre um pequeno escadote, estendendo o reposteiro, examinando-o e procurando acertá-lo com o vão. Para a irmã Inês)

Vêde vós, minha Irmã... que sois aí mais perto:
Ficará bem assim?... Não pende para este lado?...
Reparai, se em baixo, junto do chão, está bem certo,
Ou se é preciso puxá-lo... Parece-me engelhado...

IRMÃ INÊS

        (Que suspende o trabalho em que estava ocupada, aproximando-se mais, para melhor examinar)

Não vejo nada... nada... que tenhais de alterar:
A meu ver... está todo ele mui bem ajustado...
Foi Nosso Senhor quem nos aqui veio ajudar...
Por isso... agora... nada há que ser modificado.

IRMÃ VIOLANTE

        (Que acabou de pôr as sanefas e que se havia afastado da cena alguns momentos, aparece, a correr, com visível alegria, aproximando-se das companheiras que a vão cercando, para ouvi-la. Com gesto rápido, falando nervosamente)

Retiremos, boas Irmãs: estão muito aproximados;
Como agora mesmo, ali, daquela varanda observei,
Vem as Damas e os Pajens, todos agrupados...  
/ 115 /


        (Com mais expressivo tom de alegria)

E à frente... a nossa Santa Madre com EI-Rei!!!...

        (Saem todas, a passo ligeiro)

   
ACTO I

QUADRO II

   

        Chegada do Rei D. Afonso V e da sua comitiva â Sala do Capítulo, a cuja entrada é saudado pela Prioresa do Convento.

DONA BRITES LEITOA

        (Com ar solene, Mas acento de humildade, mal transpõe a entrada da cena)

Real Senhor!... Que em boa hora deis aqui entrada,
Com vossa excelsa Filha: a Senhora INFANTE!...
Tal vinda é, – para todas nós – uma radiosa alvorada
De ventura: para muito sacrifício, galardão bastante!...

        (Atitude humilde, suplicante, olhando À volta)

Perdoai esta simplicidade... toda esta pobreza...
Bem quereria antes... agora... neste lugar,
Receber-vos, com aquele brilho e grandeza
Que mereceis. Mas disto... não podemos nós passar!...


D. AFONSO V

        (Ar imponente, ao mesmo tempo que fala em voz afável. Palavras bem marcadas, pausadamente)

Nesta casa de Deus... sagrado templo de oração,

        (Aponta para o alto, curvando a cabeça)

Só Ele – hoje e sempre – é verdadeiro REI...
Mas por vossa respeitosa, e tão elevada, saudação,
Vos ficamos gratos: é do fundo d'alma... bem o sei!...

        (Curva a cabeça ligeiramente, e todos tomam os seus lugares, que D. Brites Leitoa indicara, coadjuvada por outra IRMÃ. Depois de todos sentados, o REI continuará a fala, voltado agora para a INFANTA. Expressivo sentimento)

Filha minha... mui querida... do meu coração!...
Esperei sempre que a doce e viva luz do teu olhar,  
/ 116 /
Fosse para mim radioso sol... um brilhante clarão,
A guiar-me, neste percurso qu'inda tenho p'ra trilhar
Na estrada da vida... onde os meus passos arrastados,

        (Muito pausadamente, viva emoção)

De incerto andar, vão seguindo – já tão vacilantes
Duros e ásperos caminhos... e, embora demorados,
Me avizinham da velhice e da morte... não distantes...

        (Com mais acentuado sentimento)

E nesta esperança... suave enlevo... eu fui vivendo,
Julgando ver-te sempre, a meu lado, p'la vida fora...
Para os meus desgostos, tal pensamento ia sendo,
Um bálsamo salutar... Mas a tenção que heis tomado agora,
De te acolheres a este santo, mas tão desviado Mosteiro,
Faz-me viver hoje uma triste... bem amargurada hora...
Pois vou regressar à Corte... e deixo-te em Aveiro!...

        (Evocando, numa recordação grata)

Bem diferente foi... cheio de alegria, aquele momento,
Que há anos nesta terra, e aqui também, então passei:
Ao lançar a primeira pedra na igreja deste Convento...
(3)
Nesse dia – entre vivas saudações – nesta Vila entrei!

        (Conformado, mas com acento de magoada expressão)

Mas... se a minh'alma foi invadida p'la maior desolação,
Por vós – tudo eu aceito – e, afinal, me resigno a sofrer:
Já que me afirmais lograr íntima, espiritual consolação
Em tomar este retiro... e algum tempo aqui viver!...

        (O Rei curva ligeiramente a cabeça, em discreta vénia, sinal de que acabou o que tinha a dizer)

INFANTA

        (Apresenta-se com as vestes reais da época. Desloca-se do grupo das suas Damas de Honor, que, em vestes de gala, estão à sua roda sentadas nos degraus do trono, onde, ladeando-a, em mochos, se vêem também a Infanta D. Filipa sua tia, e a Monja D. Mecia de Alvarenga, que veio com a Princesa do Mosteiro de Odivelas. Encaminha-se, a passo lento, até junto / 117 / do REI, a quem toma as mãos, beijando-lhas. Declamação vagarosa; muito sentimento)

Grata vos beijo as mãos, Senhor!... Meu Pai amado!...
Porque a tão vivo desejo meu, não pusestes impedimento:
Grande mercê foi, esta... que ora me heis outorgado...
Ficarei então aqui... neste piedoso e são Recolhimento.
A protecção divina vos ampare, até ao alento derradeiro,
Dilatando-vos Deus a vossa tão preciosa e tão útil vida,
Assim como ao Príncipe meu Irmão, da Coroa herdeiro,
Para expansão da nossa Fé, e lustre desta terra querida...

        (Com vénia respeitosa ao Rei, termina a fala, indo logo ocupar o seu lugar, em passo lento, cadenciado)

D AFONSO V

        (Com visível e carinhoso sentimento, logo que a lnfanta se senta no seu cadeirão)

Que esses carinhosos votos, sejam por Deus ouvidos!...
Pois sem a celeste ajuda... não serei eu capaz,
– Com tantos anos e trabalhos sobre mim volvidos
De vencer a mágoa que este afastamento traz...

INFANTA

        (Com acento de crescente animação)

Jamais, Senhor... de tal acção, tereis arrependimento:
Pois tudo quanto por nós é feito, para dar glória a Deus,
E se alicerça em delicado e verdadeiro sentimento,
Atrai sempre as mais abundantes graças, lá dos Céus!...

        (Com expressiva humildade e o maior sentimento, após uns momentos de reflexão)

E... em verdade. .. eu já não quero agora ser mais nada,
Do que desvaliosa oferta... inda que de Vós mui querida,
Que, pela protecção divina... tão largamente dispensada,
Ofereceis ao Criador, em nome desta Pátria agradecida...


D. AFONSO V

        (Tristemente, em palavras terminantes)

Imperando em vós esse místico anseio... como vejo,
Nada mais acrescento; guie Deus, sempre, vossos passos:
E agora... só me resta pedir-vos... é o meu último desejo...
Que do filial amor vosso, não afrouxem, nunca, os laços!...   
/ 118 /

        (Palavras repassadas do mais vivo sentimento)

E então... como isso assim vivamente vos apraz
Ide... desde já... até junto dessas boas Irmãs
Buscar contentamento... a felicidade... e a paz,
Que brotam das suas almas... tão simples... tão sãs!...


        (A lnfanta beija novamente as mãos do Rei e sai, juntando-se-lhe a Madre Prioresa, as freiras e o resto da sua comitiva. O Mordomo-mor e dois Pajens vão acompanhar até ao fundo)

D. AFONSO V

        (Para o Clero e Nobreza, com expressão repassada de melancolia, buscando-os, a todos, com o olhar)

A vossa presença, neste lugar... junto de mim...
Agora, que sinto a alma ansiosa, atribulada,
– Envolta numa tristeza que só comigo terá fim –...
Tornou-a mais confiante... calma... resignada!...
A todos... antes de partir... eu quero assinalar
Meu reconhecimento: uma profunda gratidão,
Pelo carinhoso preito que vindes de me prestar;
E me prendeu – tão estreitamente – o coração...
 

         (Curva levemente a cabeça, dando por finda a audiência. O Mordomo-mor adianta-se logo e indica para saírem: em primeiro lugar, Pajens, Escudeiro, Fidalgos; por fim o Clero. O Rei, mantém-se de pé e todos lhe fazem reverência ao passar em frente do trono)

PRÍNCIPE

       (Que assoma pelo fundo, olhando em volta, caminhando a passo largo, desordenadamente, sustando a saída do Rei, já nos últimos degraus do trono. Atitude de manifesto desassossego, agreste, falando alto, nervosamente)

Senhor! Tenho estado só!... oculto... a reflectir,
No procedimento havido... que foi tão desacertado!...
Acabando ambos, afinal... por vir assim a consentir
Que a Infanta saísse de Lisboa e tivesse aqui entrado!...
Esta longa distância... um tão grande afastamento...
Tudo o mais que depois disto se poderá desenrolar...
Sairá jamais, deste acanhado e impróprio Convento?...
Quem nos assegura que não virá, nele, a professar?!...  
/ 119 /


        (Mudando de tom, aproximando-se mais, moderando gesto e voz)

Não lhe prometestes vós edificar um mosteiro novo,
Onde lhe aprouvesse?... Escolheria até o seu lugar...
Faria assim vossa vontade... a minha... e a do povo...
Evitando sérios danos que, dum acto desses, podem resultar!...
Bem ficaria em Coimbra... no Mosteiro de Santa Clara,
Como era de todos nós avisada e mui segura opinião...
Ali floresceram tantas e tantas almas de virtude rara...
Como aquela Santa Rainha – Dona Isabel de Aragão!

        (Moderado de principio, para terminar em tom exaltado)

Mas a Infanta – em meu parecer – é de nós bem despegada:
Para Ela... como diz – só existe agora a Lei de Cristo.
Reino, Corte, Pai, Irmão... Tudo... tudo isso é nada!!!
Como já, por mais de uma vez – magoado tenho visto!...

        (Dá alguns passos, agitadamente, até que pára, atraído pela réplica paterna)

D. AFONSO V

        (Que tem ouvido o Príncipe com espanto, pelo inesperado modo como se apresentou e se lhe dirigiu, procura, afinal, sossegar-lhe o espírito, falando-lhe com brando acento)

Não será bem assim... Aquietai o vosso pensamento...
Se... como creio... a voz de Deus foi ouvida pela Infanta,
Respeitemos, todos, esse divino, sagrado chamamento...
Reis cristãos... hemos de acatar uma coisa que é bem santa!...
Ficar para sempre... aí?... Não será talvez o seu intento...

        (Divagando, e procurando convencer, voz suave)

Não seriam os seus rogos... porfiadas, e devotas orações
Tocadas do vivo amor, em que andava já enlevada,
Que tanto nos ajudaram nas africanas expedições?...
Vê de o que foi a nossa última e gloriosa jornada!...
Entreguemos isso, por agora, à Divina Providência:
Deixemo-la seguir esta sua tão pura inclinação...
Se Deus sempre usou connosco da maior indulgência,
Estorvar tal passo... devereis convir... é ingratidão...

PRÍNCIPE

        (Que ficou de longe, ouvindo a fala do Rei, misto de espanto e interrogação, parecendo não alcançar o significado de tal atitude. / 120 / Aproxima-se mais do trono real, a passo lento, ar meditativo, para, de súbito, exclamar, em crescente arrebatamento)

Assim será!... Mas, à fé de quem sou, eu vos garanto
Que, se a Infanta, algum dia, o hábito aí tomar,
Poderá surgir-me em frente, desfeita em pranto,
Mas o meu ímpeto – não conseguirá ela embargar!...

        (Fora de si, violento, desvairadamente)

E perante uma acção dessas... arrojada... e tão estranha!
– Se o Reino, em minha vida, de ela precisar
Aqui virei buscá-la!... Nem que para isso eu tenha
De todas essas toscas e férreas grades arrombar!...

        Sai, abruptamente, ficando o Rei, acompanhado dos Pajens, em atitude extática, olhando-se mutuamente em ar de interrogação.

Pano rápido

INTERVALO

►►►

SOARES DA GRAÇA

_________________________________________

(1)Vid. Crónica da Fundação do Mosteiro de Jesus de Aveiro e Memorial da Infanta Santa Joana filha del Rei D. Afonso V, lida e publicada por ANTÓNIO GOMES DA ROCHA MADAHIL, ed. 1939.

(2) Ao número dos pretendentes assinalados à Infanta, teremos de acrescentar agora o do Infante D. Afonso de Castela, de que nos fala um antigo documento arquivado na Biblioteca do Seminário de Braga, e agora dado a lume. Vid. Relações de D. Afonso V com Castela e Aragão em 1460, pelo P.e AVELINO DE JESUS DA COSTA, ed. 1952. 

(3) – Cerimónia que teve lugar em 1462. Cron., pág. 28.

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