Miguel de Oliveira, Santa Joana, Vol. XVIII, pp. 97.106.

SANTA JOANA

A PRINCESA COROADA DE ESPINHOS

A Infanta pediu à madre prioresa, D. Maria de Ataíde, que entregasse a Jorge da Silva «o Espinho da coroa de Nosso Senhor o Jesus Christo que fôra da Araynha dona Izabel sua madre que o ouve do ho Iffante dõ pedro seu padre que tão mau fim tivera».

(Crónica da Fundação da Mosteiro de Jesus, de Aveiro, e Memorial da lnfanta Santa Joana, pág. 187).

CONTA-SE no Antigo Testamento que as árvores se lembraram de eleger um rei. Convidaram a oliveira, a figueira e a videira, mas elas recusaram o trono. Dirigiram-se, por fim, ao espinheiro e disseram-lhe:

– Vem e reina sobre nós. E ele respondeu: – Se em verdade quereis que eu reine sobre vós, vinde e repousai à minha sombra; mas, se não quereis, saiam dos meus espinhos dardos de fogo, que devorem os cedros do Líbano.

Esta soberania do espinheiro no reino vegetal ficou sempre misteriosa para a humanidade antiga. Foi preciso que Deus viesse ao mundo, para que o símbolo e a figura se convertessem em realidade.

Na manhã de Sexta-feira Santa, estava Jesus a ser escarnecido no pretório de Pilatos. Para divertirem a multidão que reclamava a sua morte, os soldados romanos cravaram uma coroa de espinhos na cabeça do Senhor. Jesus percorreu a via dolorosa e agonizou no Calvário, coroado com esse diadema sangrento.

Então se verificou a soberania do espinheiro sobre as outras árvores. O mesmo cedro do Líbano foi vencido.

[Vol. XVIII - N.º 70 - 1952] / 98 /

Jesus reina pregado na Cruz, mas são os espinhos que lhe escrevem na fronte a carta de realeza, em letras de sangue.

Diz a tradição que essa coroa se não perdeu. Conservada por muito tempo em Jerusalém, passou depois ao tesouro imperial de Bizâncio e no século XIII às mãos do rei S. Luís. Dispersaram-se, porém, os espinhos, porque não havia família real que não desejasse relíquia da coroa do Senhor.

Numa das suas viagens pelas «sete partidas» do mundo, o infante D. Pedro, filho de el-rei D. João I, conseguiu trazer um dos espinhos para Portugal. Precisávamos dessa relíquia, quando pareciam abrir-se para nós todos os caminhos da glória. A nossa epopeia havia de custar sacrifícios que seriam incomportáveis sem a lembrança do sacrifício supremo da Redenção.

Todo o esplendor da segunda dinastia, desde Aljubarrota a Alcácer Quibir, se esbate num fundo roxo de tragédia. Para termos a glória imensa desses dois séculos, quantas orações silenciosas, quantos martírios ignorados, quantas lágrimas contidas! A chama da glória (1) humana alimenta-se de sangue, a alegria gera-se na dor.

Não tardaram a experimentá-lo os filhos de D. João I. É D. Fernando, cativo em Tânger, mártir em Fez. E D. Duarte e D. Henrique, amortalhados em tristeza desde o cativeiro do irmão. E esse próprio infante D. Pedro, morto tragicamente na várzea de Alfarrobeira. / 99 /

Continua a dinastia, continua a glória, e o martirológio continua.

Quem havia de herdar a relíquia do espinho? A rainha D. Isabel, filha de D. Pedro, casada com seu primo D. Afonso V. Que dramas se não passaram no coração desta mulher! Para amar o marido, ter de esquecer o sangue do pai e a desgraça dos irmãos... Pouco nos diz a história, da meia dúzia de anos que ela ainda viveu. Sabe-se que foi três vezes mãe: mãe de um príncipe que morreu menino, mãe de D. Joana que foi santa, mãe de D. João II que foi «o
príncipe perfeito».

Com menos de quatro anos de idade, a princesa Joana ficava herdeira daquele sagrado espinho que lhe falava do sangue de Cristo e do sangue de um avô, das lágrimas de Nossa Senhora e das lágrimas de sua mãe. Onde o havia de guardar? Cravou-o no coração. Nisto se resume a história da sua vida.

Como notou o papa Bento XIV na bula de canonização da Rainha Santa Isabel, a Providência divina quis distinguir a Nação portuguesa, dando-lhe na família real mulheres de extremada virtude.

Umas têm os nomes inscritos nos álbuns da santidade. Outras, embora não subissem à apoteose dos altares, foram modelo de educadoras ou espelho de governantes. E algumas parece que foram eleitas por Deus rainhas de martírio e colocadas no calvário da Pátria, como a Virgem Dolorosa junto à Cruz.

A Princesa D. Joana pertence à dinastia das Virgens, Santas e Mártires da Pátria.

A sua vida decorre no período mais surpreendente da história dos Descobrimentos. Nascida em 1452, quando as ondas do Atlântico e o litoral africano começavam a revelar-nos os seus
segredos, morreu Santa Joana em 1490, quando a ideia do caminho marítimo para a Índia já era mais do que um sonho. Pero da Covilhã e Afonso de Paiva andavam na sua viagem de aventura, e Bartolomeu Dias regressara a Lisboa com a nova de ter dobrado o Cabo Tormentório – o Cabo da Boa Esperança!

Como é que, numa época em que o espírito dos portugueses andava maravilhado com a narrativa de tamanhos feitos, pôde salvar-se do esquecimento a figura duma princesa penitente, recolhida em mosteiro? Pela mesma razão por que o sol não faz esquecer as estrelas.

Se considerarmos atentamente a história, veremos que são tanto mais densas as sombras quanto mais vivas as claridades. / 100 / Altos desígnios de Deus, que faz avultar os contrastes nas épocas de maior grandeza, para que os homens não esqueçam, um só momento, a fragilidade da sua condição.

A segunda metade do século XV, porque foi de enorme progresso, foi de profunda miséria; porque foi de incomparáveis esperanças, foi de indizíveis receios. Como havia de raiar na terra a aurora de Quinhentos, sem as noites incertas veladas pelos nossos marinheiros, no dorso das caravelas, à rola das ondas? Como poderia a velha Lusitânia dar ao mundo, sem dores, os novos mundos?

Santa Joana foi estrela dessas noites, a pedir às suas irmãs, estrelas do hemisfério austral, que revelassem a sua luz aos olhos dos nossos navegadores. Foi virgem que se ofereceu a martírio pela Pátria, para que esta não sofresse tanto na sua missão maternal.

Compreenderemos ainda melhor o lugar que ela ocupa entre os eleitos do céu, se alongarmos os olhos pela história da Igreja, que é ainda então a história da Europa.

Contava a nossa princesa pouco mais de um ano de idade, quando lá no Mediterrâneo oriental sucedeu uma grande desventura.

Na antiga Bizâncio, mirando a Ásia, fundara o imperador Constantino uma basílica dedicada à Sabedoria Divina – Haggia Sophia. Ampliou-a e enriqueceu-a o imperador Justiniano que, na festa da sua dedicação, exclamou, num transporte de alegria: –« Glória a Deus, que me julgou digno de realizar esta obra. Venci-te, Salomão!»

Foi Santa Sofia a igreja mais célebre de todo o Oriente, mas a sua glória cristã começou a empalidecer desde que saiu da cidade a coroa de espinhos.

Em 29 de Maio de 1453, os turcos apoderaram-se de Constantinopla. Maomé II entrou a cavalo na basílica, avançou até ao altar-mor, ajoelhou em cima dele e proclamou: – «Só Deus é Deus, e Maomé o seu profeta!». Clero e fiéis, ali refugiados, morreram a fio de espada. E o templo ficou, até hoje, consagrado ao culto do Islame.

Tomada Bizâncio, os turcos largaram à conquista da Europa cristã, com uma violência que só foi quebrada, ao fim de dois séculos, na batalha de Lepanto.

Roma tremia pela sorte do Ocidente. O papa Calisto III convidou os príncipes cristãos a organizarem nova Cruzada contra os infiéis, mas já iam proliferando os bacilos que desentranharam na peste protestante. Só o rei de Portugal fez preparativos sérios de Cruzada. Malograda a expedição contra os turcos, passou à África e conquistou Alcácer Ceguer. / 101 /

Entretanto, diz o Memorial da vida da Princesa, D. Joana crescia e passava a meninice na corte, criada e servida como rainha. Cresciam também os projectos, nem todos felizes, de D. Afonso V...

Enquanto os turcos iam avançando lentamente na Europa, corriam velozes as nossas caravelas pela costa africana. Quem poderia então imaginar que a ruína do poderio muçulmano estava na dilatação do Império português? E que as orações da menina Princesa, quando deixava os brinquedos e se recolhia ao seu oratório, acordavam com a voz dos mártires da igreja de Santa Sofia?

Os anos foram volvendo. Desabrochou a Infanta nas graças da mocidade. Diz-se que Luís XI, rei da França, ao ver o seu retrato, ajoelhou e «deu graças e louvores ao Senhor Deus» por ter criado beleza tão perfeita.

Ficou em Aveiro um retrato desse tempo: a Infanta em trajo da corte, com seus adereços e precioso diadema. O rosto, quase infantil, é sério e triste. Nem os lábios nem os olhos sabem sorrir. Se ainda hoje lhe dissermos, como Miguel Ângelo ao «Moisés»: Fala! – aquela figura de mágoa e mistério inclinará a cabeça, a aliviar-se do peso da coroa, e responderá em doce murmúrio: – Quem me dera num convento!

Ora o convento, o seu convento, que não podia ter outro nome senão o de Convento de Jesus, estava a erguer-se em Aveiro. Não era só a fundadora, D. Beatriz Leitão, quem tinha pressa em o concluir. As obras andavam tão rápidas que, segundo a voz do povo, «os oficiais lavravam de dia e os anjos de noite.»

No paço, a vida de D. Joana era já uma espécie de noviciado. Debaixo dos vestidos principescos, ricos colares e firmais de pedraria e oiro, trazia grosseira estamenha e ásperos cilícios. Em meio das festas da corte, recolhia-se ao oratório em preces e penitências. Enquanto lhe preparavam régios casamentos, andava ela, noiva de Cristo misericordioso, a cuidar de pobres e enfermos. Enfim, já escolhera o seu brasão – a coroa de espinhos – que bordou com as próprias mãos em todas as peças de vestuário e mandou esmaltar nas jóias e gravar na baixela.

A muitos se afigurava que este ideal martirizante podia pôr em risco o trono de Portugal. Mas a Infanta sabia muito bem o que fazia. É preciso que alguém sofra, para que os outros triunfem. Facilmente se perdem coroas de oiro, quando lhes falta o suporte da coroa de espinhos.

O ano de 1471 foi o mais glorioso do reinado de D. Afonso V. Passando a Marrocos com o príncipe D. João, / 102 / el-rei impôs o domínio português em Arzila e Tânger. Anda a memória dessa expedição nos versos de Camões:

Maravilhas em armas, estremadas
E de escritura dignas elegante,
Fizeram cavaleiros nesta empresa,
Mais afinando a fama portuguesa.»


Quando voltou a Lisboa, o monarca podia intitular-se «rei de Portugal e dos Algarves, daquém e dalém mar em África».

D. Joana vestiu-se da cor da esperança para receber o pai e o irmão. Também ela sonhava com um novo título, que fosse no império da humildade a réplica dos do império da grandeza. Já subira de Princesa a Infanta. Ascenderia mais uns degraus: de Infanta de Portugal a freira de convento, de freira ao nada, do nada a Deus...

O Africano, que via o mundo com outros olhos e o media por outra escala, não compreendia semelhantes ascensões. Todavia, para não contrariar, em tal momento, a única filha que tinha, abraçou-a a chorar e concordou: – Pois sim, minha filha. Serás o que Deus quiser...

O príncipe e os grandes da corte não se conformaram com esta resolução. Levantaram obstáculos, imaginaram novas propostas de casamento. Temendo pelo seu sonho, a Infanta deixou o paço e foi recolher-se ao mosteiro de Odivelas. Mas o seu lugar não era ali...

No mês de Março de 1472, começou a aparecer sobre o pequenino convento de Aveiro um misterioso sinal no céu. Brilhava mais que as estrelas e projectava intenso feixe de luz em determinados pontos da casa. Acendia-se ao descair da noite e apagava-se subitamente ao romper da alvorada.

As freiras viam-no sempre, por mais velada que estivesse a atmosfera e as nuvens encobrissem a luz dos astros. Como interpretar aquela maravilha, que a todas causava temor e espanto?

A 4 de Agosto, chegou ao mosteiro a Infanta D. Joana, acompanhada do pai e do irmão. Ouviu missa na igreja de Jesus e incorporou-se logo nos actos da comunidade.

A partir da noite desse dia, ninguém mais viu sobre o claustro o meteoro luminoso. Era ele o mensageiro celeste precursor da Infanta. Era ela a nova e maravilhosa luz deste convento.

Deixemos agora a Infanta naquele recolhimento de espírito e abstracção do mundo, que era o ideal da sua alma e que, para martírio seu, lhe não consentiram em vida. / 103 /

Toda a gente de Aveiro sabe que está no convento de Jesus a única filha do rei de Portugal. Por que teria ela escolhido aquele lugar? Os mais velhos lembram que D. João I, quando voltou da jornada de Ceuta, doou a vila de Aveiro ao infante D. Pedro.

– Grande homem, o Senhor Infante. Foi ele quem mandou erguer os muros desta vila, em que ainda trabalham operários...

– Há vinte e tantos anos que o mataram na batalha de Alfarrobeira. Era o pai da Rainha que Deus tem, mas não chegou a conhecer esta netinha...

– Que saberá ela das desavenças entre o pai e o avô?

– Os maus conselheiros é que envenenaram tudo.

D. Pedro não queria tirar a el-rei D. Afonso o trono de Portugal...

– Finou-se, talvez de desgosto, a rainha D. Isabel. E agora aí temos a Infanta nossa Senhora, tão linda, mas com um sorriso de amargura...

A vila de Aveiro parecia-se nesse tempo com a Infanta – linda e triste! Casas baixas, dominadas pelos torreões da muralha e pelos campanários das igrejas.

Não chegaria a contar 5.000 habitantes. Muitos homens andavam por longe, mareantes e mercadores. Outros ocupavam-se na faina da pesca, no amanho do sal e na construção de navios.

Às vezes, chegava uma notícia alegre, como quando João Afonso descobriu o reino de Benim; mas, no geral, vivia-se em cuidados. Luto e lágrimas, por tantos que morriam em naufrágio. Tremuras e febres, por causa da pestilência que varria periodicamente a nossa beira-mar.

Deus, que criara tão azul este céu, tão viçosos estes campos, tão cristalinas as águas da lagoa, impunha pesado tributo aos olhos a quem ofertara esta opulência de cores na sinfonia da luz.

D. Joana gostava de Aveiro, a que chamava a sua «Lisboa pequena», e amava aquele convento, «alma da sua alma». Deixemo-la, porém, à sombra do claustro, na obscuridade e no esquecimento em que desejaria ter vivido.

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Tinha a Infanta vinte anos quando bateu à porta do mosteiro. Estava no esplendor da juventude, realçado em graça angélica pela pureza e elevação do sonho interior.

Dezoito anos já passaram. Ei-la agora às portas da eternidade: rosto emaciado e pálido, olhos ainda refulgentes de esmeralda mas a afogarem-se nas órbitas. Não passam em vão o tempo e a dor...

A 11 de Maio, no momento em que outrora se acendia sobre o claustro o meteoro luminoso, estavam as freiras de / 104 / Jesus ajoelhadas em prece ao redor do leito da moribunda. Com uma lucidez em que já brilhavam claridades do além, era ela quem ia indicando, em voz flébil, a ordem das orações.

À meia noite, vendo-a exausta, a madre prioresa, D. Maria de Ataíde, aproximou-lhe dos lábios um pouco de cordial.

– Madre, murmurou a Santa, já não é tempo. Lede a Paixão do Senhor...

Começa a leitura evangélica, segundo o texto de S. João. Jesus é preso no Jardim das Oliveiras e levado à presença de Anás, que o interroga sobre a sua doutrina.

Responde Jesus: – Eu falei publicamente ao mundo; pergunta às pessoas que me ouviram! A estas palavras, um dos guardas dá-lhe uma bofetada, dizendo: – É assim que tu respondes ao pontífice?!

Santa Joana pede que lhe levantem o braço e, estendendo a mão, bate no próprio rosto: – Ó Senhor, que por meus pecados tanto quisestes padecer, perdoai-me e salvai-me!

As religiosas mal podem conter a comoção. A prioresa passa-lhes o missal e vai avisar os bispos do Porto e de Coimbra, chamados nos últimos dias a Aveiro, de que a Santa não tarda a morrer.

A Paixão continua. Na manhã de Sexta-feira Santa, Jesus é conduzido ao pretório de Pilatos. O governador romano não lhe encontra crime algum; mas, para agradar aos judeus, manda-o flagelar. É então que os soldados entretecem a coroa de espinhos e a põem na cabeça do Senhor.

Santa Joana solta um profundo gemido e lembra-se do relicário que pertenceu à mãe e ao avô...

– Salve, rei dos judeus! – dizem os soldados, escarnecendo de Jesus.

... E ela, contemplando aquele espinho que também escrevera com sangue divino a carta de realeza na fronte do Senhor, exclama: – Ave, espinho, remédio da dor!

Jesus, condenado à morte, vai agora a caminho do Calvário. Já o pregam na Cruz e começa a dolorosa agonia...

De pé, junto à Cruz, está a Virgem Santíssima e o apóstolo S. João. Jesus, esquecendo a sua dor para consolar os que choram, diz ao discípulo: – Eis a tua Mãe!

A Santa acrescenta: – Senhora, mostrai que sois minha Mãe!

Jesus pronuncia as últimas palavras: – «Tudo está consumado!». Inclina a cabeça e morre.

A Santa sobrevive à morte do Senhor, põe os olhos no crucifixo, junta as mãos e move os lábios em palavras que só Deus ouve. Correm-lhe da cabeça e do rosto grossas bagas de suor... / 105 /

Num instante, porém, demudam-se-lhe as feições, anima-se a face, alegra-se o olhar, e ela refulge de esplendente beleza, como se lhe batesse em cheio a luz da eternidade.

– Digam a ladainha! – suplica enfim.

Um sacerdote começa a invocar a Santíssima Trindade, a Virgem Maria, os Anjos e Arcanjos, os Patriarcas e os Profetas, os Apóstolos e os Evangelistas, e chega às palavras: – Omnes Sancti Innocentes...

Neste momento, diz o Memorial, «se abaixaram e caíram suas formosas mãos que até aquele passo levantadas tinha ante a Cruz, e assim subitamente se cerraram seus formosos olhos, e assim se tirou aquela claridade de todo o rosto». Os sacerdotes ergueram as mãos ao céu e exclamaram: – «Com os Santos Inocentes se foi!»

A saudade que a Santa deixou no seu mosteiro foi logo compensada pela crença de que ela trocara a vida penitente pela vida gloriosa.

No dia do enterro, viu-se como as plantas, tomando à letra o apólogo do Antigo Testamento, reconheceram a soberania da coroa de espinhos do seu brasão.

Na cerca do convento tinha a Infanta o seu pomar e jardim, onde em horas vagas lhe aprazia descansar em conversa com as freiras. Conheciam-na as árvores e as ervas, que ela mesma regava com extremos de carinho. Naquela primavera, todas se vestiram de folhas e toucaram de flores à espera da Infanta, mas ela não apareceu. Por um dia de Maio, começou a desfilar entre os canteiros um solene e estranho cortejo. Em breve compreenderam tudo. Era a Santa que passava, a caminho da sepultura. Nunca mais a tornariam a ver. Que homenagem lhe haviam de prestar? Caíram as folhas e formaram tapete pelo chão. Soltaram-se as pétalas das flores e espargiram-se sobre a urna funerária. E as árvores e ervas secaram, para nunca mais darem fruto nem flor. O seu novo jardim era o céu.

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Mais de quatro séculos e meio se desfiaram, desde que o corpo da Princesa Santa ficou depositado no coro baixo da igreja de Jesus. Nem tanto era preciso para que ele se confundisse na poeira a que todos volvem, e este nome de Joana fosse pétala morta entre as páginas do «livro de horas» da Pátria.

Com o perpassar do tempo, afogam-se na cinza do esquecimento as mais altas memórias humanas. Lá o disse VIEIRA: – «Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba. Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera!» / 106 /

Atreveu-se o tempo a fechar as portas daquela casa, a emudecer o salmear das freiras, a derruir o trono de Portugal.

Dormem D. Afonso V e D. João II no mosteiro da Batalha, menos vivos para a gratidão do seu povo do que o próprio «soldado desconhecido». Quantos heróis, quantas glórias nossas, não cobre a asa do tempo no panteão da História, que raros visitam!

D. Joana é celebrada entre luzes e cânticos e flores. Desceu do paço à penumbra do mosteiro, mas subiu do túmulo à glória dos altares.

Mesmo para o tempo, vale alguma coisa ser santo. Não se rasga nas urzes da terra o manto com que Deus veste no céu a escrava ou a princesa. Dissolvem-se no pó as coroas de oiro, mas floresce em rosas a coroa de espinhos.

Só porque foi Santa, D. Joana é luzeiro sempre aceso no firmamento da Pátria, a indicar aos portugueses, até ao fim dos tempos, o caminho por onde se sobe do nada, a Deus.

P.e MIGUEL DE OLIVEIRA

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(1)O relicário, que ainda em 1910 era pertença da Casa da Oliveirinha, dos Castros Matosos (MARQUES GOMES, O espinho da Coroa de Jesus Christo pertencente à Casa da Oliveirinha; 1910) apareceu à venda em Aveiro há poucos anos, acabando por ser negociado para Penafiel, ao que parece, por uma casa de artigos religiosos, do Porto.

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