J. J. Ferreira Baptista, Dr. Manuel Pereira da Graça, Vol. XVII, pp. 288-291.

DOUTOR MANUEL PEREIRA

DA GRAÇA

NASCEU em Macinhata-do-Vouga, cerca do ano de 1770. Era filho de José Pereira da Graça, um humilde carpinteiro.

Ainda criança foi para Coimbra, para casa de seu tio Francisco Pereira da Graça, acreditado e abastado negociante naquela cidade, com intenção de se dedicar ao comércio e até, possivelmente, preparar-se para suceder ao tio na direcção e posse da sua casa comercial.

O tio, porém, reconhecendo-lhe vocação para as letras e grande vontade para estudar, não só o deixou satisfazer esse desejo e essa vocação, mas também o auxiliou e protegeu e ambos viram os seus esforços coroados do melhor êxito, visto que o jovem Graça tirava sempre os primeiros prémios na faculdade de Filosofia, em que tomou o grau de bacharel e na de Medicina em que se doutorou em 1798.

Quando defendeu tese para tomar capelo e que era sobre diabetis, o fez com tanto brilho que causou admiração e mereceu o louvor de toda a faculdade de Medicina, à excepção dos dois lentes, os irmãos Navarros, que, sempre o haviam perseguido e lhe lançaram duas favas pretas, no exame privado.

Francisco Pereira da Graça. seu tio e protector e homem de importância, levou ao conhecimento do, então, Príncipe Regente e, mais tarde, D. João VI, a perseguição e a injustiça de que havia sido vítima o Doutor Manuel Pereira da Graça.

Não se fez esperar a desafronta condigna e a consagração do seu mérito.

O monarca não só ordenou que pudesse doutorar-se, mas, ainda, que lhe fosse dado o capelo gratuito e o condecorou com o hábito de Cristo.

O Conimbricense, jornal em que MARTINS DE CARVALHO deixou registo de quanto com a vida académica de Coimbra se passava e era do seu conhecimento, publicou esta provisão do / 289 / [VoI. XVII - N.º 68 - 1951] Príncipe-Regente (N.º 1248, de 13 de Janeiro de 1866), acrescentando-lhe o relato saboroso do que na tradição local ficou a respeito do caso, e que de lá transcrevemos:

«A propósito deste doutoramento gratuito, conta-se por aí uma anedota curiosa, que não será desagradável repetir agora. É costume no dia do capelo irem os archeiros a casa do novo graduado dar-lhe os parabéns; o que lhes rende a gorjeta de 2$400 reis, ou mais ainda conforme a generosidade do doutor. A Manuel Pereira da Graça também eles se não esqueceram de cumprimentar; e de casacas verdes e chapéus armados (da cor do uniforme lhes vinha o nome de − verdeais − que tinham nessa época), derretiam-se nas genuflexões do estilo, com a mira posta na costumada espórtula, quando o doutor, agradecendo-lhes com o mais gracioso sorriso, acrescentou logo: «meus amigos, o meu nome é − Graça; deitaram-me RR por graça; fizeram-me doutor de graça, e tudo assim fica em graça. Muito obrigado pelas suas atenções, meus senhores».

É escusado dizer que os pobres verdiais não acharam graça a esta desgraça, que em suas esperanças não anteviam.»

Foi médico muito considerado e distinto, tendo exercido clínica em Coimbra com grande brilhantismo e de tal modo se distinguiu que foi chamado a tratar D. João VI, quando gravemente doente, possivelmente, de diabetis.

Conseguiu aliviá-lo dos seus padecimentos e perguntado, pelo rei, o que queria receber em paga dos seus serviços, limitou-se a pedir, apenas, os insignificantes rendimentos da escrivaninha de Sever-do-Vouga − uma miséria − o que mostra o seu desinteresse no exercício da sua humanitária e nobre profissão.

Esteve a exercer, em seu nome, esse humilde cargo, Manuel da Silva Santiago, natural da Sernada, hoje entroncamento da linha do Vale do Vouga.

Passados anos retirou-se, de Coimbra, para a sua terra natal, onde igualmente se notabilizou, como médico, e deixou tradição que ainda perdura, mas, cheio de desgostos a que não foram estranhas as suas ideias racionalistas, opostas aos dogmas, ideias muito avançadas para aquela época, e a sua Índole irrequieta, começou a não ser bem visto e respeitado, a receber desfeitas e pirraças.

Sendo extremamente pobre e já não tendo família, vivia com uma criada velha e uma égua estropiada e mal alimentada. Como não possuía propriedades e portanto pastagens para o sustento desta, soltava-a, de noite, para que fosse pastar para os campos. De madrugada regressava ao curral, contentando-se, todo o dia, com o que havia comido durante a noite. /  290 /

Certa noite, os pescadores do candeio do rio Vouga, ao regressarem da pesca, de madrugada, encontraram a pobre égua a pastar no campo.

Reconheceram-na e como, por vezes, a erva das suas terras era ceifada pelos dentes famintos do já odiado quadrúpede, agarraram-na e colocaram-lhe um pequeno pau de salgueiro na boca, afiado nas extremidades de modo a não lhe permitir que a fechasse e que, portanto, continuasse a comer no campo.

Quando, de manhã, a velha criada se dirigiu ao curral para a aparelhar, como era costume, para o Doutor Graça ir visitar os seus doentes, o animal, talvez porque se sentia aflito e magoado, correu para ela de boca aberta.

A criada, aterrorizada, apressou-se a chamar o amo, gritando que a égua estava danada.

E como esta, muitas outras partidas desrespeitosas e ultrajantes.

As suas ideias avançadas e os seus desrespeitos dogmáticos ocasionaram-lhe o dissabor de ter sido chamado à inquisição, em Coimbra.

Este facto atribuía-o ele ao Deão do convento dos frades de S. António de Serém.

E deste frade, por certo, se vingaria, quando um dia foi chamado a tratá-lo de doença, se, a tempo, não tivesse intervindo um amigo dos dois.

Quando pessoas da sua intimidade procuravam interrogá-lo sobre o que havia passado na inquisição, ou porque não desejava dar a conhecer os factos, ou porque receava transgredir o que lá lhe tinha sido imposto, respondia sempre: «Se queres saber vai para lá.»

Este conjunto de desgostos fez com que ele abandonasse o continente e se fosse estabelecer na ilha da Madeira, onde casou com uma senhora de quem teve um filho de nome Adriano Pereira da Graça que, entre os anos de 1823 e 1828, enviou para Coimbra e para casa do seu tio e protector, com um dote de 12 contos de reis, e a quem recomendou a sua educação.

Contava uma velhinha chamada Ana Freira (por ter sido criada do convento das Carmelitas, em Aveiro) que o doutor deixou dois filhos.

Mas não encontrámos notícia senão do Adriano que ainda era vivo em 1875 e de que, talvez, ainda existam descendentes.

INOCÊNCIO DA SILVA transcreve, no voI. VI do seu Dicionário Bibliográfico, o que o Dr. PEREIRA CALDAS diz acerca do Doutor Graça:

«Na sua carreira médica sacrificou sempre que pôde a autoridade à razão. Só nos bancos das escolas é que curvou a inteligência ao dogmatismo. Em 1803 começou a combater, / 291 / por escrito, os erros da patologia mais prejudiciais e mais arreigados nas escolas públicas. E continuando nestas suas lucubrações, não só descobre erros na patologia, apoiado na autoridade de insignes escritores, senão que em todos os ramos de medicina acha muito que combater e indagar.

A diabetis deveu-lhe escrito curioso que deve ser lido e comparado com as obras da época publicadas sobre o assunto.»

 Deixou públicas as seguintes obras:

«Suplementum in Brunonis Theoriam, Lisboa, 1803».

«Tratado da diabetis, a que se juntam observações do benefício das aguas enxofradas naturais nesta doença; e dois processos faceis, um para obter estas águas artificialmente e outro para fabricar as férreas, com a vantagem de se poder guardar a energia, de sorte que se proporcionem às diversas circunstâncias dos enfermos». Lisboa, 1806.

Faleceu na ilha da Madeira em 1830.

JOAQUIM JOSÉ FERREIRA BAPTISTA

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