NASCEU
em Macinhata-do-Vouga, cerca do ano de 1770. Era filho de José Pereira
da Graça, um humilde carpinteiro.
Ainda criança foi para Coimbra, para casa de seu tio Francisco Pereira
da Graça, acreditado e abastado negociante naquela cidade, com intenção
de se dedicar ao comércio e até, possivelmente, preparar-se para
suceder ao tio na direcção e posse da sua casa comercial.
O tio, porém, reconhecendo-lhe vocação para as letras e grande vontade
para estudar, não só o deixou satisfazer esse
desejo e essa vocação, mas também o auxiliou e protegeu e
ambos viram os seus esforços coroados do melhor êxito, visto que o jovem
Graça tirava sempre os primeiros prémios na faculdade de Filosofia, em
que tomou o grau de bacharel e na de Medicina em que se doutorou em
1798.
Quando defendeu tese para tomar capelo e que era sobre diabetis, o fez
com tanto brilho que causou admiração e mereceu o louvor de toda a
faculdade de Medicina, à excepção dos dois lentes, os irmãos Navarros,
que, sempre o haviam perseguido e lhe lançaram duas favas pretas, no
exame privado.
Francisco Pereira da Graça. seu tio e protector e homem de importância,
levou ao conhecimento do, então, Príncipe Regente e, mais tarde, D. João
VI, a perseguição e a injustiça de que havia sido vítima o Doutor Manuel
Pereira da Graça.
Não se fez esperar a desafronta condigna e a consagração
do seu mérito.
O monarca não só ordenou que pudesse doutorar-se, mas, ainda, que lhe
fosse dado o capelo gratuito e o condecorou com o hábito de Cristo.
O Conimbricense, jornal em que MARTINS DE CARVALHO deixou registo de
quanto com a vida académica de Coimbra se passava e era do seu
conhecimento, publicou esta provisão do
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[VoI. XVII -
N.º 68 - 1951] Príncipe-Regente (N.º 1248, de 13 de Janeiro de 1866),
acrescentando-lhe o relato saboroso do que na tradição local ficou a
respeito do caso, e que de lá transcrevemos:
«A propósito deste doutoramento
gratuito, conta-se por aí uma anedota
curiosa, que não será desagradável repetir
agora. É costume no dia do capelo irem os archeiros a casa
do novo graduado dar-lhe os parabéns; o que lhes rende a
gorjeta de 2$400 reis, ou mais ainda conforme a generosidade do doutor. A Manuel Pereira da Graça também eles se não esqueceram
de cumprimentar; e de casacas verdes e chapéus armados (da cor do
uniforme lhes vinha o nome de − verdeais − que tinham nessa época),
derretiam-se nas
genuflexões do estilo, com a mira posta na costumada espórtula, quando o doutor, agradecendo-lhes com o mais gracioso sorriso,
acrescentou logo: «meus amigos, o meu nome é − Graça; deitaram-me RR por
graça; fizeram-me doutor
de graça, e tudo assim fica em graça. Muito obrigado pelas
suas atenções, meus senhores».
É escusado dizer que os pobres
verdiais não acharam graça a esta
desgraça, que em suas esperanças não anteviam.»
Foi médico muito considerado e distinto, tendo exercido clínica em
Coimbra com grande brilhantismo e de tal modo se distinguiu que foi
chamado a tratar D. João VI, quando gravemente doente, possivelmente, de
diabetis.
Conseguiu aliviá-lo dos seus padecimentos e perguntado, pelo rei, o que
queria receber em paga dos seus serviços, limitou-se a pedir, apenas, os
insignificantes rendimentos da escrivaninha de Sever-do-Vouga − uma
miséria − o que mostra o seu desinteresse no exercício da sua humanitária e nobre
profissão.
Esteve a exercer, em seu nome, esse humilde cargo, Manuel da Silva
Santiago, natural da Sernada, hoje entroncamento da linha do Vale do
Vouga.
Passados anos retirou-se, de Coimbra, para a sua terra natal, onde
igualmente se notabilizou, como médico, e deixou tradição que ainda
perdura, mas, cheio de desgostos a que não foram estranhas as suas
ideias racionalistas, opostas aos
dogmas, ideias muito avançadas para aquela época, e a sua Índole irrequieta, começou a não ser bem visto e respeitado, a receber
desfeitas e pirraças.
Sendo extremamente pobre e já não tendo família, vivia com uma criada
velha e uma égua estropiada e mal alimentada. Como não possuía
propriedades e portanto pastagens para o sustento desta, soltava-a, de noite, para que fosse
pastar para os campos. De madrugada regressava ao curral,
contentando-se, todo o dia, com o que havia comido durante a noite.
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Certa noite, os pescadores do candeio do rio Vouga, ao regressarem da
pesca, de madrugada, encontraram a pobre égua a pastar no campo.
Reconheceram-na e como, por vezes, a erva das suas terras era ceifada
pelos dentes famintos do já odiado quadrúpede, agarraram-na e
colocaram-lhe um pequeno pau de salgueiro na boca, afiado nas
extremidades de modo a não lhe permitir que a fechasse e que, portanto,
continuasse a comer no campo.
Quando, de manhã, a velha criada se dirigiu ao curral
para a aparelhar,
como era costume, para o Doutor Graça ir visitar os seus doentes, o
animal, talvez porque se sentia aflito e magoado, correu para ela de
boca aberta.
A criada, aterrorizada, apressou-se a chamar o amo, gritando que a égua estava danada.
E como esta, muitas outras partidas desrespeitosas e
ultrajantes.
As suas ideias avançadas e os seus desrespeitos dogmáticos ocasionaram-lhe o dissabor de ter sido chamado à inquisição, em
Coimbra.
Este facto atribuía-o ele ao Deão do convento dos frades
de S. António de Serém.
E deste frade, por certo, se vingaria, quando um dia foi chamado a
tratá-lo de doença, se, a tempo, não tivesse intervindo um amigo dos
dois.
Quando pessoas da sua intimidade procuravam interrogá-lo sobre o que havia passado na inquisição, ou porque não desejava
dar a conhecer os factos, ou porque receava
transgredir o que lá lhe tinha sido imposto, respondia sempre: «Se queres saber vai para lá.»
Este conjunto de desgostos fez com que ele abandonasse o continente e
se fosse estabelecer na ilha da Madeira, onde casou com uma senhora de
quem teve um filho de nome
Adriano Pereira da Graça que, entre os anos de 1823 e 1828, enviou para
Coimbra e para casa do seu tio e protector, com um dote de 12 contos de
reis, e a quem recomendou a sua educação.
Contava uma velhinha chamada
Ana Freira (por ter sido criada do
convento das Carmelitas, em Aveiro) que o doutor
deixou dois filhos.
Mas não encontrámos notícia senão do Adriano que ainda era vivo em 1875
e de que, talvez, ainda existam descendentes.
INOCÊNCIO DA SILVA transcreve, no voI. VI do seu
Dicionário
Bibliográfico, o que o Dr. PEREIRA CALDAS diz acerca do Doutor
Graça:
«Na sua carreira médica sacrificou sempre que pôde a autoridade à razão.
Só nos bancos das escolas é que curvou a inteligência ao dogmatismo. Em
1803 começou a combater,
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por escrito, os erros da patologia mais prejudiciais e mais
arreigados nas escolas públicas. E continuando nestas suas lucubrações, não só descobre erros na patologia, apoiado na
autoridade de insignes escritores, senão que em todos os ramos de
medicina acha muito que combater e indagar.
A diabetis deveu-lhe escrito curioso que deve ser lido
e comparado com as obras da época publicadas sobre o assunto.»
Deixou públicas as seguintes obras:
«Suplementum in Brunonis Theoriam, Lisboa, 1803».
«Tratado da diabetis, a que se juntam observações do
benefício das aguas enxofradas naturais nesta doença; e dois
processos faceis, um para obter estas águas artificialmente e
outro para fabricar as férreas, com a vantagem de se poder
guardar a energia, de sorte que se proporcionem às diversas circunstâncias dos enfermos». Lisboa, 1806.
Faleceu na ilha da Madeira em 1830.
JOAQUIM JOSÉ FERREIRA
BAPTISTA
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