(do livro a publicar, Nossa Terra
e Nossa Gente)
O CASAMENTO ENTRE A GENTE DO
POVO
UM
olhar, uma carícia desajeitada, algum beijo às furtadelas, umas
conversas maneirosas à porta da casa da cachopa, aos domingos, de tarde... Ele, encostado à bicicleta, ou de vergastinha na mão, e ela, como
passarito tímido à beira do ninho, no receio do vôo e no anseio do
imprevisto, torce a ponta do avental.
Quando calha, lá vão os dois de passeio até às romarias próximas, e se
há bailarico no adro, com harmónica e viola, principia o saracoteio, e
alguém canta:
'Stás-t'a rir... Queres cá vir...
Sabes o qu'eu quero, não me faças consumir.
Ora agora viras tu,
Ora agora viro eu,
Ora agora viras tu, viras tu mais eu.
No regresso, sempre juntinhos, muitas ternuras e muitas promessas com
juramentos solenes, de antes quebrar que torcer. E chegou finalmente o
dia do entendimento com
os pais da cachopa. Depois, o dia do casamento, na igreja, com roupas
novas mandadas fazer a propósito para a cerimónia (roupas que hão-de
servir para muitos domingos no decorrer de alguns anos), os sinos
repicam, e segue-se a boda com os padrinhos, não faltando o prior e o sr.
compadre... E nos dias a seguir logo o trabalho da lavoura.
Raio de Vida!... e, «pró môr da lida», palavrões! e berreiro
p'ráqui,
e praguedo p'rácolá. Raio de Vida!...
[Vol. XVII -
N.º 68 - 1951]
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Meses depois ela fica grávida.
− «Está p'ra ter cria», diz
o seu homem, simploriamente, sem maldade.
Nascida a criança, durante uns dias, a mãe fica na cama,
a caldinhos de galinha. E quando se levanta, carrega o recém-nascido
junto aos seios, com fraldinhas de flanela, embrulhado e muito agasalhado no xaile grosso e felpudo, cantando-lhe ao ouvido:
− han...
han... han...
Nana, nana, meu menino,
que a Senhora ja lá vem,
foi lavar as fraldinhas
à fontinha de Belém...
O petiz assim agasalhadinho no xaile grosso, a mãe dá
algumas voltas caseiras com ele ao colo, mas pouco pode
fazer. Nesses primeiros dias ela calça meias e tamancos,
e um lenço a embrulhar a cabeça, até ver... que, «assim
é qu'elas s'armam».
De noite, enquanto o «criança» não é baptizado e «pró
môr das bruxas», que podem vir chupar o sangue ao «inocentinho», sempre
uma luz acesa (lamparina ou coisa que o
valha) no quarto onde dorme o «criança», ao lado da mãe.
E com um mês, às vezes menos (porque o azeite da lamparina custa dinheiro) igreja com ele, «pois então!...» E mesmo,
porque pode acontecer não vingar, e, sem baptismo, «Deus
Nosso Senhor nos livre de tal» − já não ia p'ró Céu, não era anjinho,
coitadinho!
− Pois não querem saber?! Uma vez aconteceu uma
grande desgraça ao filhito, de três semanas, da ti' Rosa Gaga.
Nem é bom lembrar, credo! Foi um porco que comeu a
criança, enquanto a ti Rosa Gaga tinha ido à fonte. Só ficou
um bracinho. Baptizaram o bracinho! «Ao menos o bracinho foi baptizado»
− soluçava a pobre mãe, resignada e
convencida, na sua boa fé.
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O BAPTIZADO
De regresso da igreja, onde soltou berros tremendos
quando lhe despejaram água fria na moleirinha, os olhos da
criança vão agora a sorrir para o Sol, caminho além, até à casa dos pais. E principia a boda, com os padrinhos, o sr. prior,
os familiares e o sr. compadre... o homem que é, na localidade,
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notas a bom juro, já se vê... a pagar pelo S. Miguel.
E no dia seguinte ao baptizado, logo e sempre, o trabalhinho da lavoura, e o berreiro, e os palavrões, de manhãzinha até à
noite, «pró môr da lida». Raio de Vida!
A criança lá anda, ora ao colo da mãe, a mamar e a dormitar,
− Nana, nana, meu menino...
Ora pelo chão em cima de xailes estendidos ou dentro de cestos de vime (a servirem de resguardo) a berrar... Vai-se
criando, entre fraldas e trapos, «como Deus é servido».
Mama bem, coitadinho, «louvado seja o Senhor!»
− Mas
chora muito, «é um cabrito!»
Alarga a pele, está gordinho, engatinha, já galreia, quer falar, teve
coqueluche, teve sarampo (não teve o garrotilho), nasceram-lhe os
primeiros dentes, já come do caldo caseiro e já come broa com sardinha,
o pai dá-lhe um golito de vinho «p'ra se ir acostumando», e no dia de
Ano Novo, com cinco anos feitos, a mãe veste-Ihe as primeiras calças
compridas.
Está um homem!
UM HOMEM
− Traz cá esse podão, Ó António...
− berra o pai.
− Leva a escudela p'rácolá, anda, mexe-te...
Aos sete anos, porque a lei manda, lá o enviam à escola,
que bem lhes custa, «porque já lhes fazia jeito...»
Mas «tamãe» é só para aprender qualquer coisita de letras e de contas,
que mais não é preciso para quem tem de lidar na terra... que eles,
pais, nem isso, e bem falta lhes têm feito porque, quando precisam
(alguma carta do Brasil ou da América, ou preencher os papéis dos
Grémios) lá vão ao favor do compadre. − «Que agora tudo são papeladas,
fiscais, assinaturas, trapalhadas, um rôr de coisas... e bota p'ra cá dinheiro!»
− «Um homem, pois atão! Mexe-te, António...»
Depois de feito o exame primário da segunda ou terceira
classe, que mais não faz conta aos pais e a mais as leis não obrigam
(infelizmente), o rapazinho tem agora dez ou onze anos, feitos pelo S.
Martinho, e quase sem ter sabido o que é brincar com os garotos da sua
idade, porque na folga da escola andava a ajudar os pais...
− «Toca, António, já fizeste exame, não sejas mandrião... põe as vacas
ao carro, António... leva a enxada grande,
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não esqueças a forquilha, carrega o estrume, junta as agulhas, traz uma
gabela de lenha, apanha uma paveia de milhã p'ró gado, que, depois, é
preciso ir cortar o arroz e cavar a terra para as couves novinhas. Toca,
António... Não resmungues, senão chego-te...»
E lá vai ele, um homem de onze anos! à frente do carro das vacas, com
uma enxada ao ombro maior do que o seu tamanho, e as mãos enregeladas
de frio. Toca, António... Mexe-te.
Raio de Vida!... E, «pró môr da lida», praguedo p'ráqui e berreiro
p'rácolá. Mas a aldeia é simpática, a região é linda, e a terra,
trabalhada, tudo dá: − carros de milho, rasas de arroz, alqueires de
feijão, batatas, ervilhas, azeite, pipas de vinho... e as festas durante
o ano aos santinhos,
com bom pregador no púlpito e a igreja toda enfeitada;
música no coro e festa no arraial: − Cachopas morenas, azougadas, lenços
garridos sobre os ombros, arrecadas nas orelhas, procissões vistosas com
homens barbeados e de opas vermelhas, bons petiscos, com aletria e arroz
doce, botas novas e roupas domingueiras, roletas da sorte, foguetes no
ar e sinos a repicar. Que linda, a festa do arraial!
ora agora viras tu,
ora agora viro eu,
ora agora viras tu, viras tu mais eu.
Isto, sim, é alegria! Com mil demónios!... A aldeia, apesar de tudo,
tem encanto, tem poesia. Viva Portugal!
Aveiro, Dezembro, 1951,
LAUDELINO DE MIRANDA MELO |