Eu
não sei se já por aí alguém ouviu falar no Padre Manuel de Paiva,
natural de Aguada, e ali cura de almas. Não tenho elementos para saber
se era de Aguada de Cima ou de Aguada de Baixo, mas inclino-me a que fosse desta por os documentos só dizerem Aguada, quando na
menção da outra sempre acrescentam de Cima. Também não encontrei aqui
nada escrito nem pessoas amigas e sabedoras puderam dar-me alguma
notícia daquele sacerdote. Isto fez-me supor que está entre nós
inteiramente esquecido este conterrâneo ilustre. Eis a razão porque me
atrevo a trazer estas notas a público. Se me engano, que me perdoem os
que já conhecem a vida de Manuel de Paiva, pois me dou por contente em
fazê-lo conhecer aos que a ignoram, como eu ainda há pouco ignorava. E
estou certo de que alguma satisfação encontrarão nesta leitura os que
ainda guardam no coração, acarinhado pelos bafos quentes da terra natal,
o sentimento de amor a ela, como eu acalento também ao sopro suave da
saudade.
D. João III resolvera fazer a colonização do Brasil e criou para tal fim
o regime das Capitanias independentes entre si. Este regime vigorou
praticamente de 1534 a 1549, sendo
substituído, em face dos pequenos resultados obtidos, pelo regime do
governo geral. Foi Tomé de Sousa o primeiro governador geral do Brasil,
o qual chegou à Baía de S. Salvador em 1549. Com ele vieram também os
Padres Jesuítas Manuel da Nóbrega, João Aspilcueta Navarro, Leonardo
Nunes, António Pires. Eram estes Padres acompanhados de dois irmãos
leigos. Diogo Jacom e Vicente Rodrigues.
No ano seguinte, 1550, chegaram mais os Padres Salvador Rodrigues,
falecido 3 anos depois, Manuel de Paiva, que viveu 34 anos, Afonso Braz
e Francisco Pires.
Logo depois vieram outros e entre eles Anchieta. Andam pouco lidas e
pouco lembradas as páginas da nossa história
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relativas a este período dos primeiros esforços de colonização do Brasil.
E também os nossos historiadores não têm concedido aos heróis dela a
glória bem merecida dos seus altos feitos. Cada um destes padres foi um
herói. Lembrá-los é um dever. Eis o que diz o Padre ANCHIETA do nosso
Manuel de Paiva.
PADRE MANUEL DE PAIVA
(Cartas do Padre JOSEPH DE ANCHIETA, pág. 484.
publicadas pela Ac. Brasileira de Letras)
O Padre Manuel de Paiva entrou já sacerdote de boa
idade em Coimbra. Foi homem muito chão e cândido em sua conversação,
guardando sempre uma perpétua paz. Estando nos exercícios logo entrando
(como então era costume), o Irmão que neles servia esqueceu-se dois ou
três dias de o prover, e o Padre não curou de lho lembrar, cuidando que
ou assim era regra da Companhia, ou que não o havia no Colégio por ser
pobre. Finalmente, com este último pensamento o lembrou ao Irmão,
dando-lhe umas luvas que comprasse alguma coisa de comer, já que o
Colégio não o tinha. O Irmão dissimulou e teve melhor cuidado dali por
diante.
Em chegando à Baía, como a pobreza era muita, o Padre Nóbrega, com este
pretexto, como era muito fervente no espírito da mortificação, tão
exercitado dos Irmãos em Portugal, mandou vender o Padre Paiva,
entregando-o a um
porteiro que o pregoasse pela cidade, se havia quem o quisesse
comprar, e foi a coisa tão de siso que se persuadiam todos ser verdade,
e que por falta do necessário o vendiam, e não faltava quem desse cem e
mais cruzados por ele, para o ter por seu capelão. Espantados da
obediência e humildade do Padre Paiva, o qual também se persuadia que de
verdade o mandavam vender, e dizia: aos homens que o comprassem, que os
serviria muito bem. Até que daí a alguns dias que o porteiro andou
nisto, dando recado ao Padre Nóbrega do que se passava e quando subia o
preço que davam por ele, entenderam o negócio, ficando todos mui
edificados da maneira da Companhia.
Foi cura de almas antes que entrasse na Companhia; não sabia muito
latim, coisa de que naquele tempo se fazia pouco caso e exame com os
clérigos; mas depois que veio ao Brasil e trabalhou muito nisso,
especialmente ao principio, que se começou o estudo de Piratininga, onde
ele era Superior dos Irmãos, e com acudir a todas as necessidades dos
próximos e às mais obrigações de seus ofícios, estudava com
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dormirem; e às vezes alta noite acordava o mestre para lhe declarar o
que não entendia, e assim saiu com seu intento de tal maneira que
depois, estando na residência do Espírito Santo, ensinou muitos moços
com grandíssimo zelo e diligência, alguns dos quais continuaram depois
os estudos no Colégio da Bala, até ouvirem o curso e teologia. Com a
muita caridade que tinha era nisto incansável, por dar algum lume aos
moços nascidos no Brasil, de que eles pouco curaram, e com isso desafeiçoá-los dos costumes dos Brasis, a que são tão afeiçoados.
Posto que não era letrado, contudo estava muito bem nos casos de
consciência, que com a mesma diligência estudava por si e perguntando.
Tinha grande púlpito, não tanto de letras como de fervor e desejo de
aproveitar às almas, e assim a gente comum do povo lhe era muito
afeiçoada, e se aproveitava muito de suas pregações, as quais ele fazia
acudindo a pé a umas e outras povoações, oito e dez léguas. Era tal sua
devoção, que uma vez pregou a Paixão não sei quantas horas de joelhos.
Trabalhou por saber a língua dos Índios mas não chegou a mais que saber
ensinar a doutrina por escrito, ajudando aos naturais por intérprete com
práticas e confissões com muito zelo.
Com este zelo das almas trabalhava muito de as ajudar e tirar do
pecado, ainda que alguns Portugueses que viviam mal se ofendessem disso,
por ser ele causa de se lhe tirarem os cúmplices do pecado, não
faltando ameaças e injúrias, nas quais ele guardava sua costumada paz e
quietação, como que
se lhe não fizessem nada. Um homem casado, a quem ele com suas
admoestações tinha tirado uma manceba, por respeito da qual dava má vida
à sua mulher, e posta em bom estado de matrimónio, e por esta causa
andava inchado contra ele, o encontrou só em um caminho e o começou a
afrontar e a empunhar da espada todo enfiado; mas o Padre, sem se mover,
lhe disse com muita paz: «A mim, fulano? a mim? Isto bastou para o
outro, atado, deixá-lo ir em paz seu caminho. Depois entrou em si e
folgou de lhe ser tirada a ocasião do mal e pecado em que estava.
Outro que tinha cargo de justiça principal na Capitania, injuriou um dia
ao Padre no meio da rua, diante de pessoas, e com palavras feias e mui
irado, ao qual ele nada respondeu, antes se foi muito quietamente
passeando e ouvindo o que o
vinha injuriando até se recolher na igreja. Chegou a desordem do outro a
tanto que fez um auto do Padre com testemunhas, dizendo que lhe queria mal, mas com a paciência
do Padre se curou tudo. Da mesma maneira curou outra pessoa principal
que o maltratava de palavras publicamente diante de muitos, dizendo-lhe
que se não fora Padre lhe
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houvera de fazer e acontecer. A isto o Padre respondeu: «Dai graças a
Deus porque o sou». Com o qual o outro ficou não somente confuso, mas
também cheio de temor e não sem causa, porque o Padre (posto que disso
nenhum caso fazia) era homem de grande esforço de ânimo e forças e
conhecido de todos por tal, mas sua paciência e paz interior com que
isto curava era maior.
Era intrépido para todo o perigo corporal, especialmente se intervinha
obediência, na qual era prontíssimo; tanto que um dia, indo por um monte
abaixo muito íngreme com o Padre Nóbrega, lhe mandou o Padre que se
deitasse por ele a rolar, o qual ele fez logo sem nenhuma dilação, indo
a tombos pelo monte abaixo, até que lhe disseram que bastava.
Ordenaram os capitães de S. Vicente duas guerras contra os Tampios; foi
necessário mandar o Padre Nóbrega em sua companhia ao Padre Paiva, o
qual todo o caminho, que foi largo, lhes disse missa e prégou sempre,
esforçando os Portugueses e confessando-os e acudindo juntamente aos índios
cristãos com o Irmão Gregório Serrão, que era o língua que levava. Em
uma guerra e em outra foi sempre o Padre Paiva sem medo com uma cruz
diante até à cerca das aldeias, uma das quais foi rendida de todo, e com
o esforço do Padre se salvaram muitos dos nossos, que estavam a ponto de fugir com perigo
certo das vidas; os quais o Padre fez esperar até que de todo se
rendessem os inimigos, de que havia ainda boa cópia, recolhidos em uma casa forte, e se sentiram covardia nos nossos, houveram de sair e matar
muitos nas canoas, em que se queriam ir com pouca ordem e com muitos
já frechados. Pelo grande perigo em que estavam, se pôs o Padre Paiva
sem medo algum defronte daquela casa, donde se tiravam muitas frechadas,
até que se tomaram os inimigos às mãos e os nossos ficaram salvos.
A outra aldeia não foi rendida, antes muitos dos nossos feridos, os
quais o Padre Paiva ajudava a tirar do perigo presente de os acabarem de
matar, e recolhendo-se todos para as canoas, ele foi o último que ficou
no mato; porque, além dele ser homem velho e pesado, quis que todos
fossem
diante; achando-o menos no porto, um índio cristão o veio
buscar, e encontrando-o no mato já perto, o acompanhou até o embarcar
com toda a gente.
Neste combate nunca o Padre Paiva se apartou da cerca com a cruz em a
mão animando a todos, e depois os Tamoios nos preguntavam: «Quem era
aquele de uma roupa longa, que estava com uma cruz perto da cerca,
porque lhe tirávamos muitas frechadas e nunca o pudemos acertar?» Desta
maneira guardou Nosso Senhor por sua misericórdia por meio do Padre
Paiva os nossos; e não quis que se destruísse
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aquela aldeia, porque depois esteve nela o Padre Nóbrega fazendo pazes
com os Tamoios, muitos dos quais são agora cristãos.
Finalmente o Padre Paiva, que era na idade o mais velho da Companhia do
Brasil, depois de muitos anos de serviço de Nosso Senhor, estando na
Capitania do Espírito Santo, enfermou de uma doença prolongada, sem dar
com ela trabalho a ninguém, e mandando-o a Obediência que se fosse à
casa de um homem muito nosso devoto a outra vila, para ver se se achava
melhor, ele com a saudade da conversação dos Irmãos e desejo de outro
recolhimento maior e mais necessário para tal tempo, não pôde lá aturar
dois dias e se veio para casa, e carregando a enfermidade em que teve
grandíssimo trabalho e paciência, se foi para o Senhor dia de S. Tomé,
Apóstolo, no ano de 1584, e jaz sepultado na nossa igreja.
AUGUSTO SOARES DE SOUSA
BAPTISTA |