F. Tomé Marques Gomes, O coro da Misericórdia de Aveiro, Vol. XVII, pp. 189-192.

A CRIAÇÃO E A EXTINÇÃO

DO CORO DA IGREJA

DA MISERICÓRDIA DE AVEIRO

RELATÓRIO DE 1872

O primitivo Coro da Santa Casa da Misericórdia de Aveiro foi criado pela mesma Santa Casa em cumprimento da disposição testamentária de sua benfeitora D. Isabel da Luz de Figueiredo, moça donzela, moradora na sua casa do Rossio, freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, a qual, instituindo-a herdeira de todos os seus bens, a onerou entre outros encargos com o da criação do referido Coro.

Devia, segundo a sobredita disposição, ser composto de quatro capelães e dois meninos de coro, tendo por dever rezar o ofício divino na igreja da Santa Casa em todos os dias e às mesmas horas em que se rezava na igreja de S. Miguel e nas catedrais do reino e celebrar alternativamente cada um dos capelães em todos os dias uma missa, a qual nos domingos e dias santificados seria cantada e em todos os mais dias do ano rezada e além disto mais um quartel delas na capela da testadora denominada − da Porciúncula de St.º António; vencendo de esmola pelas mesmas dez mil reis e pela assistência do Coro quinze mil reis e pela Páscoa, pelo trabalho da, semana santa, quinhentos reis.

Os meninos do coro venceriam cada um deles seis mil reis com quinhentos reis de falar e um vestido vermelho e uma sobrepeliz enquanto durassem.

A nomeação de uns e outros pertencia à Mesa da Santa Casa e estaria a cargo do capelão mais antigo, como presidente, apontar as multas em que por suas faltas incorressem os capelães restantes e meninos do coro, e dar parte da sua importância, à mesma Mesa no fim do quartel para lhes ser abatida no ordenado.

Sucedendo, porém, achar-se a mesma Santa Casa sumamente embaraçada no cumprimento dos muitos encargos de missas, com que se achava onerada, porque não podendo deixar de ser diminuta a esmola de muitos deles, atenta a exiguidade de muitos dos bens legados, não era possível encontrar no bispado sacerdotes, mesmo regulares, que se prestassem a celebrá-las, e já lhe fazia necessário e indispensável o encarregar a sua celebração a clérigos de fora do bispado com grave incómodo seu, inquietações e escrúpulos de consciência; nestas circunstâncias tomou a deliberação de recorrer ao papa PIO VI e obteve a bula Cunctis ubique sit notum, datada de Roma em 1 de Abril de 1797, que por sentença do executor dela, o provisor e governador, sede vacante, deste bispado de Aveiro, foi mandada cumprir e guardar em data de 2 de Março de 1801.

Por esta bula foram transferidos e comutados no coro os muitos encargos de missas que oneravam a Santa Casa, sendo porém aumentado o pessoal do mesmo coro com mais quatro capelães, dois meninos do coro, um turiferário e um organista, além dos já existentes, de nomeação todos eles da Mesa da Santa Casa e obrigados a servir a igreja dela à maneira de colegiada alternativamente e por turno ou por semanas debaixo de estatutos e na mesma igreja rezarem, de manhã e de tarde, em todos os dias do ano, as horas canónicas pelas almas conforme às intenções de todos e de cada um dos instituidores dos legados extintos e suprimidos, e celebrar e cantar missa cada um deles na sua semana aplicando-a pelas almas dos ditos instituidores e bem assim a assistirem às funções episcopais e eclesiásticas que houvesse de se fazerem pelos prelados da diocese.

Estimada pela bula e respectiva sentença executória a importância dos encargos suprimidos e extintos, foi pela mesma bula e sentença aplicada ao pagamento dos ordenados dos capelães e mais empregados do coro, estabelecendo-se que cada um dos oito capelães vencesse o ordenado de cinquenta mil reis, cada um dos quatro meninos do coro o de catorze mil / 190 / e quatrocentos reis, o turiferário o de catorze mil e quatrocentos reis, e o organista o de trinta mil reis, pagos aos trimestres, aplicando-se para a fábrica do sacrário da mesma igreja o saldo que, pagos os ordenados, restava para preenchimento da quantia de quinhentos quarenta e nove mil trezentos e oitenta reis, importância anual dos encargos suprimidos e extintos.

Instalado o coro em conformidade destas prescrições, entrou e prosseguiu no exercício das suas funções sem alteração e em harmonia com o respectivo regulamento até 2 de Abril de 1838, data em que por deliberação da Mesa, sob proposta do provedor o bacharel Luís dos Santos Regala, foi interinamente suspenso até que fossem encontrados capelães que devidamente o compusessem e sustentassem, sendo despedidos os actuais e ordenando que se celebrasse em todos os dias na igreja da Santa Casa uma missa rezada em cumprimento dos legados pelas almas dos benfeitores, cujo capelão conjuntamente se obrigaria a assistir ao hospital, quando necessário.

Os fundamentos desta deliberação foram, segundo se vê da respectiva acta, terem-se despedido no anterior dia dois dos capelães, Francisco do Rosário e José Fernandes, este de Eixo, serem sexagenários e doentes três dos quatro restantes, não sendo por isso possível sustentar-se o coro com a decência devida e com especialidade na hora da missa, porque tendo um deles de ocupar o altar e outro o órgão, não podiam os outros dois sustentar a estante; e para suprir a falta dos dois que se haviam despedido não se conhecia que na cidade houvesse clérigos que estivessem nas circunstâncias de serem admitidos, por iguais motivos de idade avançada e moléstias; e fora da terra, ainda que fossem procurados, não seria fácil encontrar quem aceitasse por não corresponder o ordenado estipulado às suas actuais circunstâncias e à despesa que sem dúvida teriam de fazer.

Apesar de ter sido provisória a suspensão do coro, e parecerem de fácil resolução as dificuldades que a fundamentaram, continuou o mesmo coro suspenso, classificando-se de puramente suasórias e aparentes e dizendo-se geralmente que o verdadeiro motivo daquela resolução foram a exigência de aumento de ordenados feita pelos capelães e mais empregados, o que não era possível sem grave responsabilidade por se acharem os mesmos ordenados fixados na bula e absorverem toda a importância dos encargos por ela convertidos no coro e bem assim a convicção geral de dever considerar-se este definitivamente abolido e extinto, por quanto tendo-se pela bula reduzido e convertido nele todos os encargos pios que oneravam a Santa Casa, estavam todos estes encargos abolidos e extintos pela devolução à Coroa dos padrões e de todos os bens em que haviam sido impostos, por estarem possuídos pela Santa Casa contra as disposições das leis de desamortização.

Já no ano de 1814, em sessão de 21 de Agosto, se fez presente à Mesa que o provedor da comarca no auto de tomada de contas da gerência anteriormente finda insinuara dever evitar-se a despesa do coro como supérflua, porque achando-se abolidos e extintos pelo decreto de 18 de Outubro de 1800, alvarás de 20 de Março de 1796 e 18 de Outubro de 1806, § 2.º todos os encargos impostos em bens que por serem indevidamente possuídos pelas Misericórdias, foram devolutos e incorporados na Coroa, cumpria conseguintemente julgar também extinto o coro desta Santa Casa, por terem sido nele reduzidos e comutados todos os encargos pios que a oneravam e eram impostos nos referidos bens.

É verdade que a Mesa da Santa Casa, assistida de seu procurador fiscal, longe de prestar-se a dar execução ao provimento do Dr. Provedor, tomou a resolução de oficiar à Mesa da Misericórdia do Porto, Coimbra, Guimarães e Braga, perguntando que execução se havia nelas dado às referidas leis, em atenção a que a bula da criação do coro, que aboliu todos os legados e por ele os substituiu, obtivera o régio beneplácito no ano de 1798 e assim em data posterior ao alvará de 20 de Maio de 1796 e a que dos §§ 4.º e 6.º do alvará de 18 de Outubro de 1806 se deduzia que existiam ainda alguns legados que deviam ser cumpridos; e recebidas as respostas das ditas Misericórdias, fez presente ao Dr. Provedor da comarca que não podia / 191 / cumprir o seu provimento e o coro continuou sem alteração, não deixando de ser aprovada a verba das suas despesas nas contas que se seguiram.

Todavia, não pode deixar de conhecer-se a incompetência das Mesas consultadas para dirigirem e regularem a da Misericórdia de Aveiro sobre o objecto da consulta e a desigualdade de circunstâncias relativamente à proveniência dos respectivos encargos, como elas mesmas o reconheceram; e é indubitável em vista da disposição dos alvarás de 20 de Maio de 1796 e 18 de Outubro de 1806 §§ 2.º e 6.º, e do decreto de 15 de Maio de 1800, que os encargos pios impostos em padrões de juro e nos bens de raiz que as Misericórdias e mais corporações de mão morta possuíam contra as leis de desamortização ficaram ipso facto extintos pela incorporação desses padrões de juro e desses bens na Coroa, sem que revivessem pela subsequente doação que dos mesmos bens se fez pelas citadas leis às mesmas Misericórdias, como expressamente o declarou a portaria de 22 de Setembro de 1854. E tanto que o provedor e Mesa da Santa Casa, segundo se mostra da acta de sua sessão de 29 de Setembro de 1822, foram intimados em cumprimento de ordens do juízo das capelas da Coroa para remeterem no prazo de sessenta dias ao escrivão do mesmo juízo, Caetano Alves de Araújo, uma relação fiel e exacta de todos os bens de raiz da Misericórdia que administravam, para deles se fazer o devido registo e assentamento em livros dos próprios da Coroa, e para pedirem na Mesa do Desembargo do Paço a competente carta de administração para poderem administrá-los, visto que pelo decreto de 15 de Março de 1800 se achavam todos compreendidos em bens próprios da Coroa.

A Igreja Católica, nos seus princípios, não possuía nem podia obter prédios alguns, por ser reputada colégio ou congregação ilícita, vivendo nos primeiros três séculos somente de oblações voluntárias.

Dada, porém, a paz à Igreja pelo imperador Constantino Magno, fazendo cessar as perseguições e permitindo-lhe, assim como os imperadores que se lhe seguiram, poder aceitar todas as liberalidades que lhe fossem feitas e exigir os dizimas do Levítico já proclamados pelo concílio de Macon, em pouco tempo imensas liberalidades dos cristãos e mesmo dos imperadores e reis enriqueceram o clero em tanta demasia que alguns dos imperadores e depois da extinção do império romano, os soberanos das diferentes nações da Europa, viram-se precisados a restringir-lhe o concedido direito para prevenirem o prejuízo de suas coroas e de seus súbditos.

Em Portugal foi D. Afonso II o primeiro dos nossos reis que proibiu às igrejas, mosteiros, e mais corpos de mão morta, pela sua lei feita nas cortes de Coimbra de 1211, a aquisição de bens de raiz sem expressa licença régia, disposição esta que el rei D. Dinis instaurou e esclareceu, determinando pelas suas leis de 1286 e 1304, ordenações afonsinas liv. 2.º tit. 14 §§ 1.º e 2.º, que os bens indevidamente adquiridos pelas ditas igrejas e mais corpos de mão morta, não sendo dotes, seriam vendidos pelas mesmas igrejas e mais corpos de mão morta dentro de um ano, sob pena de os perderem para a Coroa.

Sucedendo, porém, caírem estas leis em relaxação por não ser bastantes a coibir os corpos de mão morta de ilegais aquisições de bens de vivo, continuaram eles a adquirir bens imóveis por todos os modos e meios que se lhes ofereciam, o que a ordenação manuelina, liv. 2.º tit. 3.º e depois dela a ordenação filipina liv. 2.º tit. 18 § 3.º, lhes tolerou até ao ano de 1447 e ultimamente o alvará de 30 de Julho de 1611 até à data do mesmo alvará, concedendo-lhes fazer venda dos bens de raiz que ilegalmente haviam adquirido por compra, herança ou qualquer outro titulo, dentro de ano e dia, sob pena de perdimento deles, se efectivamente os não tivessem vendido no referido prazo, o qual todavia foi prorrogado por mais dois anos e meio pelos alvarás de 13 de Agosto e 23 de Novembro de 1612 e de 20 de Abril de 1613.

Finalmente el rei D. José I, pelos alvarás de 14 de Junho de 1768, 12 de Maio e 5 de Setembro de 1769, § 10, determinou que a proibição decretada nos alvarás de 30 de Julho de 1611 de reterem os corpos de mão morta / 192 / por mais de ano e dia os bens ilegalmente adquiridos por compra, herança ou qualquer outro titulo, compreendia as aquisições feitas por consolidações de domínios úteis com os directos, as quais declarava nulas, abusivas e de nenhum efeito, ou elas se façam ou tenham feito por devoluções, comissos, opções ou por qualquer outro modo; porém, que por puro movimento de sua real piedade mandava que os bens que tivessem consolidado desde o ano de 1611 sejam obrigados a enfiteuticá-Ios dentro de um ano contado da data de 4 de Julho de 1768, pelos mesmos foros e laudémios por que antecedentemente os haviam aforado, isto sob a pena declarada nas mesmas leis.

Em virtude do exposto e atendendo a que os padrões, dízimos e todos os bens de raiz cujos encargos foram comutados no coro da Santa Casa da Misericórdia de Aveiro, vieram geralmente todos à mesma Santa Casa posteriormente ao ano de 1611;

atendendo a que pelo decreto de 15 de Março de 1800 foram incorporados na Coroa os padrões de juro e todos os bens de raiz livres ou vinculados que as Misericórdias possuíam contra as disposições das leis de amortização, abolidos os vínculos e mais encargos da administração dos ditos bens para que possam acudir às suas urgentes despesas;

atendendo a que suposto fossem reduzidos e comutados no coro pela bula de Pio VI do primeiro de Abril de 1797 e respectiva sentença todos os encargos pios que oneravam a Misericórdia desta cidade, foram todavia somente abolidos pelo decreto de 15 de Março de 1800, § 2.º, os vínculos e mais encargos que oneravam os padrões de juro e mais bens de raiz incorporados na Coroa;

atendendo a que por ordem do juízo das capelas da Coroa dirigida ao juiz de fora desta cidade foi intimado pelo escrivão António José das Neves, como consta da acta da sessão de 29 de Setembro de 1822, o provedor desta Santa Casa, para no termo de sessenta dias fazer remessa àquele juízo de uma relação individual, fiel e exacta dos padrões de juro e dos bens de raiz que administrava, para por virtude da mesma relação se fazer nos respectivos livros dos próprios da Coroa o devido registo e assentamento dos referidos padrões e bens, de cuja relação se deixaria cópia;

por todas estas razões:

estou convencido de que o coro da Santa Casa da Misericórdia desta cidade era sem dúvida uma demasia ou superfluidade com grave prejuízo deste estabelecimento pio e de caridade, único arrimo e amparo nesta mesma cidade e suas imediações da numerosa classe indigente e desvalida nas suas precisões e enfermidades; devendo todavia continuar-se na celebração da missa quotidiana na sua igreja pelas almas de seus benfeitores, porquanto tendo sido reduzidos e comutados no coro, pela bula de Pio VI e respectiva sentença executória, todos os encargos pios que oneravam a dita Santa Casa, foram somente abolidos pelo decreto de 15 de Março de 1800 e alvarás de 20 de Maio de 1796 e 18 de Outubro de 1806 os encargos que oneravam os padrões de juros e os bens de raiz que incorporaram na Coroa, por terem sido adquiridos contra as disposições das leis de amortização, ficando desta sorte permanentes todos os outros encargos relativos aos fundos de capitais mutuados e mais bens da Santa Casa, cujo rendimento apesar de sumamente inferior para fazer face às despesas do suprimido coro, é sem dúvida suficiente para a despesa de missas em todos os dias do ano, que faziam parte da instituição do mesmo coro.

Aveiro, 17 de Julho de 1872,

FRANCISCO TOMÉ MARQUES GOMES

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