A. S. de Sousa Baptista, Terras do concelho de Águeda, Vol. XVII, pp. 23-29

TERRAS DO CONCELHO

DE ÁGUEDA

NÃO pode pôr-se em dúvida que as lutas da reconquista rarearam muito a população que já vinha sensivelmente diminuída desde as invasões dos bárbaros e suas lutas dentro do território peninsular. Os documentos falam-nos com grande frequência em terras ermas, em regiões desabitadas.

São conhecidos os esforços de Afonso Henriques e sobretudo de Sancho I para repovoar as terras reconquistadas, as atenções, concessões e privilégios dados aos povos do Norte da Europa para se fixarem em Portugal. Sancho I foi, além de um grande guerreiro, um hábil administrador. Depois de 1184 vieram-lhe anos de tranquilidade quer da parte dos mouros quer da de Leão, em que, diz HERCULANO: «parece ter-se dedicado activamente a prover às necessidades internas do País, começando a restaurar desertas ou quase desertas ruínas de antigas povoações ou a fundar novos castelos e vilas»; e ainda: «Sancho cuidou seriamente duma das mais graves necessidades públicas, a repovoação de territórios assolados por guerras que duravam, havia não anos, mas séculos». As ordens de Cavalaria prestaram-lhe valiosíssimo auxílio nesta tarefa. A ela confiou o rei, como já o havia feito largamente seu pai, a defesa de castelos e repovoamento de terras desertas.

Os documentos mostram-nos que nos séculos X-XI e XII a população das terras de Vouga se manteve, embora extremamente diminuída. Creio que tem hoje mais habitantes a vila de Águeda que tinha toda a terra de Vouga nos séculos XI e XII. Os povoados durante os três séculos são sempre os mesmos. No século XIII, desaparecem alguns destes e surgem outros. Assim, nas freguesias de Lamas e Trofa são de 981 as primeiras referências que conheço às vilas de Crastovães, Palatiolo, Paus, Belhe, Lamas e Pedaçães − (Test. de Gonçalo Mendes − P. M. Hist., doc. CXXXIII e CXXXVI, de 982). / 24 /

No século XI − Em 1050, no inventário de Gonçalo Viegas deparam-se-nos estas mesmas vilas e outras como Fareganes − Castrello − Arraval − Vallelongum − Faramontanos − Serem − Iafafi − Sagatanes − Belfolar − Faramontanellos − Aurentana − Cedarim − Barriolo − Abciquinis − Ederoni. (Port. M. Hist., doc. CCCLXXVIII).

Destas pertencem à freguesia de Valongo: Fareganes − Castrello − Arraval − Vallelongum − Faramontanos.

Estas mesmas vilas são referidas no inventário de 1077.

Em 1101, numa venda de Didago Petriz a João Gondesindiz, surgem-nos as primeiras alusões a Laneses e Melares: «et de uila Valongo Melares et Laneses quantum portio est nostra inter frater et eredes». (Doc. Med. n.º 42). A mulher de João Gondesindiz − Ximena Forjaz − doou estas propriedades à Sé de Coimbra em 1110. E acrescentou à larga doação, tanto ela como o seu marido «nostrum furnum cum sua corte qui est justa illam ecclesiam novam» (Doc. Med. n.º 7).

Em 1142 D. Afonso Henriques deu a sua propriedade chamada Padarcanes (Pedaçães) a Maria Fromerigues. Era filha de Fromarigo, que por ordem do rei tinha demarcado a mesma propriedade. Não sei quem era esta senhora. A principal razão da doação foi, diz Afonso Henriques «maxime pro pudore tue virginitatis». Não sei traduzir estas palavras e bem desejava evitar que o leitor lhes dê significação errada. Ainda nesse ano ou no seguinte casou esta Maria Fromarigues com Paio Alvitis e o rei fez-lhes doação de Serpins. (Chanc. de Af. H., docs. 124 e 131).

É na Inquirição de Afonso II de 1222 que nos aparecem assinaladas outras terras de Valongo: Salgueiro − Canivar − Carualar − Brunido − Aguieira.

Pouco antes, em 1210, num documento particular do Mosteiro de Alpendurada − (Alguns diplomas dos séculos XI e XIII, Coimbra, 1942), aparece-nos Viade. Paio Afonso e Lourenço Afonso vendem a Afonso Ermiges, para pagamento das dívidas do pai «uno casali qui fuit de patre nostro quam habemus in ualle longo in uilla de biadi ubi moravit dona senior in fundo de uilla». É por este documento que se vê a verdadeira origem da palavra Viade. Beadi − Beati − genitivo de posse de Beatus − Villa Beati era a vila de Beato.

Viade de Valongo do Vouga não era a única no onomástico medieval: na Inquirição de Afonso IIl, pág. 653, lê-se «Hic incipit inquisitio sancte Marie Beadi». É hoje a freguesia de Santa Maria de Viade.

Na Inquirição de D. Dinis de 1282 surge a primeira referência que conheço a Arrancada com o seu ribeiro de Meghavales.

Quererá isto dizer que estes povoados só tiveram o seu nascimento nestas datas, ou devemos atribuir-lhes origem / 25 / em maior antiguidade? Sem dúvida são muito anteriores aos documentos que pela primeira vez os referem. Estes já os dão com um desenvolvimento que só no decorrer de longos anos podia ser alcançado. Não creio que tivesse sido grande a população de Valongo em tempo dos romanos e mesmo dos árabes. Não consta que tenham aparecido em alguma das suas actuais aldeias vestígios desses povos. Restos de tégula só os vi no Espinheiro, onde também foi encontrado um lagar e outros objectos. E nada mais. É possível que venha do tempo romano a exploração agrícola de terras em Valongo, Arraval, Cristelo, Fermentões e outras, próximas do presídio do MarneI e próximas da estrada que pela margem direita do rio de Beco ia a Viseu, por Doninhas, Bemfeitas e Vouzela. Mas o que hoje chamamos campo e lavouras de Brunhido, Paço, Arrancada, Aguieira, Veiga, tudo seria chão maninho, coberto de urze e floresta, onde as feras viviam tranquilas de perseguição dos homens. Estas aldeias, e outras que já morreram, tiveram o seu nascimento quando a paz da reconquista permitiu o repovoamento da terra abandonada. São filhas do século X, XI e XII.

Das terras mortas a que mais cedo desapareceu dos documentos foi Farelanes. Onde seria? Di-no-lo o inventário de Gonçalo Viegas, de 1077 (P. M. H., doc. DXIIX). Ali vem as suas confrontações, que são: Macinhata, Eira Velha, pelo Vouga, − Fermentões − e a várzea que ficava entre o mesmo Farelanes e Castrelo. Era grande o seu termo e talvez não andemos muito longe da verdade se dentro dele lhe dermos o assento precisamente nas terras secas a Poente da estrada entre Carvalhal e o Campo. Dentro deste termo fica o actual lugar das Cavadas, a que o documento não alude naturalmente porque não existia, como ainda não existiria Carvalhal, aldeias que só surgiram mais tarde. Farelanes não deve ter alcançado o século XIII.

Aguieira. No princípio do século XIII era dos Templários. Como lhes foi parar às mãos? Talvez por doação régia. Esta Aguieira, não é a Aguieira actual, mas, a Velha, que ficava acima do Covão. Hoje só lá há terras de cultura. Nos vestígios de habitação que ainda há poucos anos lá se viam, não havia nenhum elemento luso-romano ou árabe. Era tudo posterior à reconquista. A aldeia actual deve ter-se formado depois do século XIII. Acredita-se que Aguieira vem de aquila − águia − e significa lugar de águias. Não penso assim. O nome deve derivar de água, como Águeda, e relaciona-se com a nascente que há ali e que naquele tempo era mais funda, formando charco. Aguieira, a parte a Poente do rio, foi vila e teve foral de D. Manuel. Vila sem história, sem facto ou acontecimento que lhe marcasse alguma glória ou celebridade no tempo. Há outra Aguieira mencionada / 26 / no Foral de Paredes no século XI − Aguieira na Inq. de 1258, a pág. 331 e Aguieiros na pág. 347, e Aguieiras na pág. 732.

Brunhido. Diz a Inquirição de Afonso II que o rei tinha ali reguengo que pagava de quatro o pão e o linho. Andava este reguengo em préstimo nas mãos dos filhos de Fernando Bruneto. Foi a primeira vez que vi este nome − Bruneto. Não sei mesmo se é nome, se é apelido. Como estamos numa época em que os apelidos são raros, talvez seja nome. Seria então este Bruneto pai de Fernando e avô dos prestameiros de Afonso lI. Sendo assim está revelada a origem antroponímica de Brunhido. Vila Bruneti.

Embora o antropónimo Brunhido venha de Bruneto, este tem a sua etimologia em prunus − ameixa − com sufixo eto. Assim também se pode ter dado o caso de em vez de ser a terra a tomar o nome do apelido de Fernando, ser este a receber o apelido do nome da terra − Bruneto, quer dizer, pomar de abrunheiros. E bom apoio tem esta hipótese, porque diz a Inquirição de Afonso III, na página 662 − Julgado de Cabeceira de Basto: «et in Brunedo jacet allus campus». É outro Brunhido e este derivado de Pruneto − Brunedo.

Nos documentos medievais não aparece a palavra prunus − mas ameixa. Pois também ameixa deu Amexanete − topónimo geográfico − registado por CORTESÃO no seu Onomástico Medieval.

Mas em Brunhido não havia só o reguengo, havia outras terras livres sujeitas apenas ao foro da Cavalaria, como depois se viu no Rol das Cavalarias do Vouga. Também no reinado de D. Dinis foi feita uma doação a seu filho bastardo D. Pedro, conde de Barcelos, da quinta de Brunhido, por Martim de Spiuca e sua mulher Urraca Esteves. ANTÓNIO CAETANO DE SOUSA, a pág. 158 do Liv. II da Hist. Genealógica da Casa Real, refere o facto e o documento, mas não publicou este. Diz-se que D. Pedro vivera ali algum tempo. Como a casa, grande ou pequena, em que poisava o rei ou infante, se chamava Paço, é bem fundada conjectura a que atribui a origem dessa aldeia de Paço a esse facto. A quinta de Brunhido seria pois o lugar em que hoje assenta a actual povoação daquele nome.

Arrancada. Durante algum tempo julguei que não seria de todo fora do senso ligar o nome Arrancada às expedições contra os mouros, que tinham aquele nome. Pesava no meu espírito a circunstância de ficar perto o Monte Marnel, fortificado de muralhas, onde os mouros terão feito muitas vezes resistência. Mas a verdade é que até hoje não encontrei nenhum fundamento seguro para apoiar esta opinião. E porque também se não encontrou na aldeia nem nas lavouras circundantes nenhuma pedra, telha ou utensílio que denotasse /  27 / antiguidade mourisca, tenho de procurar outra origem para a palavra, enfileirando-a na classe das ArrotasCavadas e semelhantes.

Desde os mais antigos tempos medievais de que temos documentos, os terrenos virgens que foram revolvidos pelo homem, para os adaptar à produção agrícola, chamaram-se terras ruptas, rubtas, calvas, e as de monte maninho, isto é, as que não tinham sido revolvidas, chamavam-se irruptas, dirruptas, e mais geralmente bárbaras ou bárvaras. Era assim nos séculos IX-X-XI e ainda no século XII. Estes documentos eram escritos no chamado latim bárbaro, latim dos formulários. E, como os escribas ou notários que tinham o encargo de fazê-los não conheciam geralmente a língua, além da corrupção das fórmulas iam latinizando a seu modo as palavras do romance, isto é, da língua falada. Os descuidos nessa adaptação às fórmulas das palavras correntes, deixam-nos ver alguma coisa desse romance que mal conhecemos por falta de documentos. É assim que num documento do princípio do século XI se fala em terras rotas. (P. M. H., doc. CCXV). O notário descuidou-se e escreveu rotas que era naturalmente como o povo lhes chamava então e como lhes continuou a chamar nos séculos seguintes. E ainda hoje se lhes chamam Rotas e Arrotas.

Vem o ruptas do verbo latino rumpere e o inruptas do mesmo verbo com o prefixo negativo in. No documento CCCCLXXXXII de P. M. H. definiu-se o que eram estas terras dizendo: «pre arrumpere» por romper, como nós dizemos hoje.

Arrancar é tirar alguma coisa do seu lugar pela força. Assim se diz arrancar árvores quando estas são derrubadas, escavando as suas raízes ou puxando-as à superfície pela força. E chamou-se arrancada à operação e também ao terreno que por ela foi preparado para a agricultura.

Parece que este verbo arrancar vem do verbo latino aruncare. Não descobri, porém, em que época do povo romano este verbo foi usado nem em que parte do império. Não o encontrei até agora nos clássicos nem em documentos de outras épocas, mas bem pode existir nuns e noutros. Também o não encontrei em documentos dos séculos IX a XI, e aí foi mais larga a minha pesquisa. No código visigótico usa-se o verbo evellere: «De vinia incisa, vel avulsa sive concremata».

A primeira vez que encontrei o verbo arrancar foi no foral de Seia, de 1136 «et homine de ille caualeiro arrancado fuerit que sereiat...» (Leges, Fasc. IlI, pág. 37). Depois no foral de Freixo de 1152 (Leges, Fasc. IlI, pág 379). «Per totum furtum qui fuerit arracado per lide vel per ferre...». A seguir, numa carta de Afonso VIII de Castela, de 1168, / 28 / «Item quicumque furabitur, vel arrancabit aliquam arboram...» (cit. por DUCANGE − sub. arrancare).

Nas inquirições de Afonso III − 1258 − Julgado de Penafiel, Vila Boa de Queires (lnquisitiones, voI. 1.º, pág. 595) lê-se esta passagem, delimitando um reguengo: «...et incipitur in flumine de Zameiro; deinde ad rigun quod vadit ad Arrancadam: deinde ad marcum quod partit cum domo Laurendo deinde ad montem de Arrancada; deinde ad fluminem de Zameiro».

Foi sobretudo esta passagem das Inquirições de Afonso III que fortaleceu no meu espírito a opinião de que o topónimo Arrancada não deriva duma modalidade guerreira, mas de um processo agrícola, de aproveitamento da terra.

Disse e repito que não encontrei nos clássicos o verbo eruncare donde parece derivar arrancar. Alguns dicionários não o registam. Presumo por isso que aquele verbo pertença ao latim medieval e represente um frequentativo do verbo eruere. A circunstância deste verbo não aparecer nos documentos dos séculos IX, X e XI, não significa que ele não existisse, mas apenas talvez o seu pequeno uso. As florestas eram poucas, muito poucas. As terras de cultura eram de sobra para a população, rarefeita pelas guerras e fome. Muitas haviam sido abandonadas. O homem não tinha, portanto, necessidade de arrancar florestas para aproveitar a terra no cultivo do pão. Não vi num só documento daqueles séculos mencionada a operação de arrancar árvores nem a necessidade de usar o verbo eruncare ou outro.

Foi nos séculos XI a XII que o desenvolvimento da população, quer pelo aumento dos naturais, quer pela fixação de estrangeiros, determinou a necessidade de alargar as áreas de cultura pelo aproveitamento de terrenos antes cultivados e abandonados e doutros onde a floresta denunciava fertilidade.

E os primeiros reis Afonso Henriques, Sancho I e Afonso II puseram tão grande cuidado no aumento e defesa do reino, como no povoamento da terra conquistada. São numerosas as referências das Inquirições a doações de terras feitas por Afonso I e Sancho I para povoamento. Muitas eram honradas, isto é, isentas de todos os impostos. A terra onde hoje está Arrancada deve ter sido doada por Afonso Henriques ou Sancho I a algum ou alguns para arrancarem a floresta e fazer terra de pão, para a «povoarem, plantarem e edificarem» como então se dizia. E foi certamente honrada, pois só assim se explica que a Inquirição de Afonso II de 1222, não mencione ali alguns direitos de rei.

Na Inquirição de D. Dinis, de 1282, sessenta anos posterior àquela, já Arrancada nos aparece como terra de alguma população. As testemunhas inquiridas nesta mostram-se / 29 / hesitantes, falando em uma Cavalaria: outra num reguengo no Ribeiro de Meghavales. Ora no Rol das Cavalarias do Vouga não foi confirmada a Cavalaria de Arrancada, nem depois houve referências ao tal reguengo. É possível que houvesse no testamento (escritura de doação) algum encargo militar que se perdeu, deixando vaga tradição. Isto sucedeu muitas vezes.

Arrancada deve ter tido a sua origem nos séculos Xl ou XII, mais possivelmente neste. Darei os agradecimentos a quem mostrar ser Arrancada mais antiga. Todas as terras procuram na história algum facto que as notabilize. Eu costumo dizer que Arrancada é notável precisamente por não ter nada que a celebrize. Entretanto sou bairrista.

Arrancada cresceu. Agregada às terras do Julgado de Vouga, sempre pertenceu a este. Não teve foral. Não obstante, era a principal aldeia do Julgado, nesta se processava a maior parte do movimento forense. Lá viviam advogados, juízes, escrivães e todos os mais funcionários que governam sua vida a proteger órfãos e viúvas. No princípio do séc. XIII, diz o padre CARVALHO, tinha onze sacerdotes. Hoje tem duas capelas reconstruídas e nenhum padre.

AUGUSTO SOARES DE SOUSA BAPTISTA

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