António Christo, João Afonso de Aveiro, Vol. XVII, pp. 3-22

JOÃO AFONSO DE AVEIRO

INTRODUÇÃO A UM ESTUDO SOBRE
O FAMOSO NAVEGADOR AVEIRENSE

O NOME de João Afonso de Aveiro figura, com merecido relevo, na prodigiosa história dos nossos descobrimentos e nos luminosos fastos da literatura portuguesa.

João Afonso foi marinheiro insigne e poeta afamado.

Por este começo, haveria de concluir-se que João Afonso de Aveiro, o mesmo João Afonso de Aveiro, se apaixonou pelo mar e se enamorou das musas.

Há, porém, quem pretenda que um era o piloto e outro o escritor.

Contra a opinião corrente, suponho poder demonstrar que, na realidade, de dois se trata.

O DR. JOAQUIM DE MELO FREITAS referiu-se a João Afonso de Aveiro sem cuidar do problema(1). Para o ilustre escritor houve um só João Afonso, poeta palaciano e navegador temerário, filho do alcaide da vila de Almoster João Gonçalves e de D. Catarina Garcia da Gama.

Criado de D. Diogo, Duque de Beja e irmão de El-Rei D. Manuel, João Afonso de Aveiro, por virtude da execução do Duque de Bragança, foi obrigado a fugir para as ilhas, e de lá escreveu a Fernão da Silveira, pedindo-lhe que intercedesse por ele. O célebre Coudel-Mor respondeu-lhe em verso, aludindo a este homizio:

Cá depois que vós passastes
a essas ilhas,
sam cá feitas maravilhas
mais do que nunca cuidastes.

/ 4 /

Como homem de letras, João Afonso escreveu poesias, cujos manuscritos ficaram em poder de um dominicano da capital, e o seu nome figura no catálogo dos poetas portugueses do século XV e no Cancioneiro de GARCIA DE RESENDE.

Como homem do mar, João Afonso, pelo correr do ano de 1486(2), descobriu o reino e terras de Benim e trouxe a PortugaI a pimenta da Guiné; e a sua glória toda está nas informações que, por si e pelo embaixador que veio em sua companhia, deu a D. João II de um rei chamado Ogané, que ao monarca português se afigurou ser o recôndito e decantado Preste João das Índias.

O escritor aveirense reproduz, com poucas alterações, o que indica ter lido em TEÓFILO BRAGA. No estudo deste professor sobre os Poetas palacianos encontram-se, de facto, várias referências a João Afonso, que importa registar com precisão(3).

No sumário de um dos capítulos da obra, lê-se o seguinte: «Por ocasião da prisão do Duque de Bragança, o poeta João Afonso de Aveiro retira-se para as ilhas».

Mais além, TEÓFILO BRAGA refere que o Duque de Bragança foi justiçado com todas as formalidades aviltantes, ficando o seu corpo, durante uma hora, exposto à contemplação do povo, e logo continua: «A impressão causada por esta catástrofe aparece nas trovas do Coudel-Mor: «a João Affonso de Aveiro, que se foi a viver nas Ilhas, e de lá lhe escreveu que fizesse algumas cousas por elle, em que entrou falar a sua dama, e despachar outras com a senhora Ifante e c'o Duque; mas isto veo no tempo da morte do Duque». Este João Afonso de Aveiro era filho de João Gonçalves, alcaide de Almoster, e de Catarina Garcia da Gama. Era criado do duque Dom Diogo, quarto duque de Beja, irmão de el-rei D. Manuel. Deixou várias poesias manuscritas, em poder de um dominicano de Lisboa. O Coudel-Mor, que então se chamava Fernão da Silveira o Bom, para se distinguir do outro Fernão da Silveira comprometido na segunda conspiração, escreve a João Afonso de Aveiro sob a impressão da morte do duque:

Vay cá tempo tam contrairo
com agoagens sobre a terra... ».

Numa outra página, diz TEÓFILO BRAGA: «Em 1486, o poeta João Afonso de Aveiro, que fugira para as ilhas por / 5 / ocasião da sentença contra o duque de Bragança, fez a descoberta da terra de Beny, além da Mina no Rio dos escravos, e lá morreu. Daqui veio a primeira pimenta da Guiné».

Finalmente, pondo em relevo que o Coudel-Mor é de todos os poetas do Cancioneiro o mais cheio de alusões históricas, ilustra a afirmação com vários exemplos, um dos quais o seguinte: «Em uns versos do Coudel-Mor ao poeta João Afonso de Aveiro, que fugiu para as Ilhas, descrevendo as alterações do rei no em 1483, diz ele na rubrica: «mas ysto veo no tempo da morte do Duque.»

Por agora, saliento apenas que TEÓFILO BRAGA enfileira ao lado dos que supõem a existência de um só João Afonso de Aveiro.

Parece que o erudito escritor aveirense, MARQUES GOMES, não manteve sempre a mesma opinião sobre o curioso problema.

Nas Memórias de Aveiro, publicadas em 1875(4), em "O Districto de Aveiro", datado de 1877(5), no catálogo da Exposição Districtal de Aveiro em 1882, impresso no ano seguinte(6), e nos Subsídios para a historia de Aveiro, de 1889(7), refere-se exclusivamente ao piloto, sem atribuir-lhe o dom da poesia.

Era, assim, lícito concluir que MARQUES GOMES considerava o navegador João Afonso de Aveiro pessoa diversa do poeta seu homónimo.

Todavia, em 1898, o paciente investigador organizou um folheto, muito interessante e hoje raríssimo, com que o "Campeão das Províncias" desejou contribuir para a celebração do centenário da descoberta da Índia. E aí, manifesta-se pela existência de um só João Afonso de Aveiro, arrojado navegador e prendado cultor das musas(8).

RANGEL DE QUADROS é de outro parecer(9). Para o benemérito investigador, a identidade dos nomes e da época em / 6 / que viveram induziu em erro, levando alguns a admitir que houve um só João Afonso, marinheiro e poeta. A verdade, porém, é que de dois se trata, supondo RANGEL DE QUADROS não haver sequer entre ambos o mínimo parentesco.

A razão, pouco convincente, de que o primeiro se daria melhor com os perigos e aventuras marítimas do que com as musas, acrescenta outras não decisivas mas, sem dúvida, de maior vaIor.

Por um lado, nem na Biblioteca Lusitana, de DIOGO, BARBOSA MACHADO, nem no Cancioneiro Geral, de GARCIA DE RESENDE, há qualquer indicação de que o poeta João Afonso de Aveiro tenha seguido a vida do mar.

Por outro lado, escritores antigas e modernos − como RUI DE PINA, JOÃO DE BARROS, GARCIA DE RESENDE, PEDRO DE MARIZ, o Padre ANTÓNIO CARVALHO DA COSTA, LUCIANO CORDEIRO, o Cardeal SARAIVA e ALEXANDRE MAGNO DE CASTlLHO −  falando do piloto João Afonso, não lhe atribuem o dom da poesia nem o apontam como criado do Duque de Beja.

O poeta era filho de João Gonçalves e de D. Catarina da Gama, fidalgos de elevada posição. Pela nobreza da sua ascendência e pelos seus merecimentos pessoais − pois João Afonso tornara-se notável pelo talento, pela erudição e pela agudeza de espírito − o tomou D. Diogo como um dos criados mais dignos da sua consideração.

Além das poesias recolhidas no Cancioneiro Geral, João Afonso deixou manuscrito um livro de Poesias várias, que se guardava na livraria do Convento de S. Domingos, em Lisboa.

Frei MANUEL HOMEM chama ao ilustre aveirense pessoa insigne nas letras e nas virtudes. E informa, na sua obra Ressurreição de Portugal e morte fatal de Castella, que, segundo afirmava um religioso do Convento de S. Domingos, num livro escrito por ordem de D. Manuel, João Afonso compôs ainda, em 1479, a poesia intitulada Perdição de Castella.

Quanta ao piloto, RANGEL DE QUADROS supõe que era filho do arrais Afonso Anes Primor e que nasceu à roda de 1443. Não indica, porém, quaisquer razões que fundamentem a suposição.

Creio que RANGEL DE QUADROS se firmou no que precipitadamente leu em MARQUES GOMES. Nos Subsídios para a história de Aveiro(10), recordam-se os nomes de esquecidos marinheiros aveirenses que o autor pacientemente descobriu em documentos da antiquíssima Confraria de Santa / 7 / Maria de Sá, achando-se a determinada altura esta indicação: − «1443, Janne Annes Falconete, arraes; 1441, Vicente Affonso, idem; 1443, João Affonso, filho Affonso Annes Primor, idem». Sem dúvida, o ano de 1443 é o do documento em que se encontra a referência ou o da inscrição nos livros da Confraria e o nome evocado é o de João Afonso, filho de Afonso Anes Primor.

Não se lhe atribui a categoria de Piloto, mas a profissão de arrais. Nem é de admitir qualquer imprecisão nos termos, pois que na lista aparecem as designações de arrais, de piloto e de mestre-piloto.

De resto, acabada a enumeração, MARQUES GOMES escreve: «A estes nomes e ao de João Afonso, pode talvez acrescentar-se o de Fernão de Oliveira...». Aqui, João Afonso é o famoso piloto dos descobrimentos − outro, portanto, na opinião de MARQUES GOMES, muito diferente do arrais João Afonso, filho de Afonso Anes Primor.

Continua, assim, a ignorar-se a filiação e a data do nascimento do afamado marinheiro, não importando, por agora, as copiosas notícias de RANGEL DE QUADROS sobre este − a maior parte delas, aliás, sujeitas a revisão.

Ainda não há muito, ÁLVARO FERNANDES, referindo-se ao piloto João Afonso de Aveiro, esclarecia que, além deste, houve um outro aveirense com o mesmo nome, escritor e poeta. E acrescentava que, «dos dois aveirenses homónimos, o geralmente conhecido é o navegadoor.»(11).

Simples nota a uma referência acidental ao afamado piloto, não menciona as razões em que se estriba para julgá-lo pessoa diversa do poeta.

O senhor DR. JOSÉ PEREIRA TAVARES, em estudo publicado no Arquivo do Distrito de Aveiro, de que é um dos ilustres directores, ocupa-se, não do piloto, mas do poeta João Afonso (12). / 8 /

Considera-os, porém, uma só pessoa, dizendo que João Afonso de Aveiro, poeta palaciano, figura entre os navegadores do século XV que tornaram possíveis as façanhas marítimas de Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, Álvares Cabral e outros.

Transcreve os artigos insertos na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira sobre o piloto e o poeta(13), o primeiro fundado nos historiadores e o segundo na Biblioteca Lusitana, de BARBOSA MACHADO. E admitindo a possibilidade de se tratar de dois indivíduos, acrescenta que, no entanto, é para ponderar, a favor da afirmação, corrente até aos nossos dias, de se tratar de um só, a referência que no Cancioneiro Geral se faz a «Ioam affonso daueiro», numa poesia do Coudel-Mor, que tem a seguinte introdução: «Trouas do coudel-moor a Ioam affonso daueiro, que se foy a viuer nas ilhas, & de laa lhe escreueu...».

Esta exposição resume as diversas atitudes dos escritores que, com maior ou menor desenvolvimento, se têm ocupado de João Afonso de Aveiro.

Uns falam do marinheiro sem lhe atribuírem o dom da poesia e outros escrevem sobre o poeta sem lhe outorgarem a profissão de piloto.

Há os que supõem um só o homem do mar e o homem de letras e os que repartem por dois as glórias do ousado navegador e as do poeta palaciano.

Tudo me leva a crer, como escrevi ao princípio, que a razão está por estes últimos: o navegador é pessoa diversa do poeta.

Ambos nasceram na antiga, nobre e notável vila de Aveiro. Ambos usaram o mesmo nome e apelido. Ambos viveram no último quartel do século XV.

Um serviu o Rei de Portugal e outro foi criado do Duque de Beja. O primeiro dominou as ondas e o segundo cultivou as letras. Aquele descobriu terras e este escreveu poesias.

Procurarei demonstrá-lo, resolvendo, assim o espero, um velho e interessante problema.

É sabido, e os autores afirmam-no sem discrepâncias, que o poeta João Afonso de Aveiro foi criado de D. Diogo, / 9 / 3.º Duque de Beja e 4.º Duque de Viseu(14), irmão de EI-Rei D. Manuel.

E é ponto assente «que fe foy a viuer nas ilhas» e de lá escreveu a Fernão da Silveira, pedindo-lhe «que fyzeffe algũas coufas por ele», entre as quais entrou «dalIar a fua dama, & defpachar outras com a senhora jfante, & co duq», pedido que chegou «no tẽpo da morte do duq» − como tudo se lê na introdução das trovas do Coudel-Mor recolhidas no Cancioneiro Geral de GARCIA DE RESENDE(15).

São, porém, lamentavelmente imprecisas e contraditórias as referências dos escritores no que respeita aos pormenores que interessam ao meu estudo.

TEÓFILO BRAGA, afirmando primeiro que João Afonso se retirou para as ilhas, declara depois, e por duas vezes, que para ali fugiu, o que o Dr. MELO FREITAS repete.

Aquele, ora diz que a fuga se deu por ocasião da prisão do Duque de Bragança, ora escreve que teve lugar por ocasião da sentença que o condenou; este pretende que João Afonso teve de fugir para as ilhas em virtude da execução do Duque de Bragança.

Do que afirma TEÓFILO BRAGA haveria de concluir-se: − que a fuga de João Afonso de Aveiro foi anterior à execução do Duque de Bragança, tendo-se verificado pela altura da sua prisão ou da sentença condenatória; que o Duque a que alude o Coudel-Mor naquela passagem «mas yfto veo no tẽpo da morte do duq», e com o qual, a pedido de João, Afonso, teria de «defpachar algũas coufas», era o de Bragança; e, finalmente, que os versos de Fernão da Silveira se referem apenas às alterações verificadas no reino em 1483, e não também às posteriores.

Creio não serem de aceitar estas conclusões.

Aqueles dois versos do Coudel-Mor

Paffam ca tãtas mudãças
que não vaI nẽhuũ terçeyro,

parecem inculcar o entendimento de que João Afonso lhe pedira qualquer intercessão junto da Senhora Infanta e do / 10 / Duque, senão também junto do Rei. Mas dela se teria escusado Fernão da Silveira:

Polo qual qm não de conta
diffo que me ca mandaftes,
perdoae poys efta afronta
temos ca. que não leyxaftes.
Ca defpoys que v' paffastes
heeffas ylhas,
ffam ca feytas marauilhas
mays do que nũca cuydaftes.


Não sei de relações do poeta João Afonso com o Duque de Bragança que o autorizassem, não apenas a solicitar o seu valimento, mas a com ele «defpachar algũas coufas», ainda que por intermédio de um terceiro.

Seja como for, é de todo incompreensível que João Afonso, tendo fugido para as ilhas no conhecimento da condenação do Duque de Bragança, e exactamente por virtude dela, se permitisse pedir-lhe qualquer protecção ou o despacho de alguns negócios.

E ainda que a fuga fosse anterior à sentença, apenas motivada pela prisão do Duque de Bragança, João Afonso havia de pressentir, como aquele pressentiu e disse a Aires da Silva, que «um homem tal não se prende para soltar»...

Sem considerar mesmo o que o pedido de intercessão teria de comprometedor para o foragido, bem sabia este não poder atendê-lo quem se encontrava a ferros de El-Rei e, possivelmente, já condenado por sentença − aliás desnecessária... − à dura justiça do seu cutelo vingador.

Estas considerações e o que na poesia se lê, em confronto com a introdução, levam-me a concluir que a «senhora jfante» era a Infanta D. Beatriz e o «duq» seu filho D. Diogo, Duque de Beja e Viseu.

Seria, assim, o homízio de João Afonso de Aveiro consequência da prisão, condenação ou execução do Duque de Bragança e anterior à morte de D. Diogo.

Com este, e não com aquele, teria o Coudel-Mor de despachar o que João Afonso lhe solicitava; mas a sua carta chegou tardiamente, pelo tempo em que sucumbia, crivado de punhaladas, o último Duque de Viseu.

E a poesia de Fernão da Silveira referir-se-ia, portanto, não só às mudanças operadas no reino por virtude da conspiração do Duque de Bragança, que João Afonso em certo modo conhecia, mas ainda às verificadas em consequência da nova conjura − que não seria mais do que o prosseguimento da primeira − e da sua duríssima repressão.

Como compreender, porém, que recusada a intercessão do Coudel-Mor − por impossível quanto a D. Diogo e por / 11 / inútil quanto a D. Beatriz − o poeta João Afonso de Aveiro tivesse regressado ao reino para mais tarde dele levantar ferro como navegador?

Como compreender que D. João II, além de ter-lhe perdoado qualquer intervenção ou cumplicidade nas conjuras da nobreza, lhe houvesse ainda confiado barchas, barinéis ou caravelas para um reconhecimento longínquo e particularmente importante?

Não atino com resposta satisfatória para as duas perguntas. E chego a supor impossível encontrá-la, quando considero a perseguição implacável movida pelo Rei aos conjurados e à qual só Álvaro de Ataíde viria a escapar, pode dizer-se que por verdadeiro milagre.

Continuo a supor, como pretendem TEÓFILO BRAGA e o Dr. MELO FREITAS, que o poeta João Afonso de Aveiro foi obrigado a fugir por virtude da prisão, da condenação ou da execução do Duque de Bragança.

Estaria, assim, de algum modo comprometido nas conspirações da nobreza contra D. João II. E tal como os irmãos do Duque de Bragança fugiram para Espanha, o Marquês de Montemor para Sevilha, o Duque de Faro para Andaluzia e outros fidalgos para Castela, assim João Afonso teria fugido para as ilhas.

O que desde logo impressiona, é que houvesse passado às ilhas por ter culpas na conspiração, ficando todavia o amo, cujas responsabilidades eram incomparavelmente maiores.

Que pedisse ao Coudel-Mor para interceder por ele, causa também certo reparo, dada a situação daquele como regedor das justiças e confidente de D. João II, bem conhecedor, portanto, da firmeza inquebrantável do Rei na perseguição dos conspiradores.

E mais espanta que João Afonso lhe solicite uma intercessão junto do Duque, a quem poderia dirigir-se directamente como a senhor e amigo e que, de resto, bem sabia ser a pessoa menos indicada, pelos seus compromissos, para obter-lhe o indulto do monarca.

Tudo, porém, podia assim ser − pela menor intervenção de João Afonso na conjura, pela amizade que o ligava e pela confiança que depositava no Coudel-Mor, pelo convencimento de que o Rei ignorasse as responsabilidades do Duque de Beja e até pela suposição da impunidade deste.

Pode todavia admitir-se − e talvez mais razoavelmente − que o homízio, longe de ser determinado por qualquer compromisso na conjura, significasse exactamente a recusa formal de João Afonso a aplaudi-la, assim caindo no desagrado do Duque de Beja e por isso se vendo obrigado a sair do reino / 12 / para mais tarde, não sem alguma descautela, solicitar os bons oncios do Coudel-Mor junto de D. Diogo e de sua Mãe.

Ainda que a carta para Fernão da Silveira fosse um pedido de intercessão, é de ponderar que na rubrica da poesia de resposta se não fala, ao menos expressamente, no Rei − único que poderia conceder o desejado perdão, se de um conspirador se tratasse.

Ponho agora em relevo que TEÓFILO BRAGA, ora dizendo que João Afonso fugiu na altura da prisão do Duque de Bragança, ora referindo que fugiu por ocasião da sentença contra ele proferida, uma vez afirma que o poeta se retirou para as ilhas.

Ajusta-se melhor esta versão ao que escreveu Fernão da Silveira. Na realidade, dizer que João Afonso fe foy a viuer nas ilhas, como se exprime o Coudel-Mor, não é o mesmo que afirmar ter sido obrigado a fugir para as ilhas.

Notei já que aqueles dois versos de Fernão da Silveira certificando que, em face das mudanças operadas no reino, passou a não valer nenhum terceiro, consentem supor que João Afonso lhe pedira para interceder por ele.

Esta interpretação poderia querer amparar-se às palavras que encimam a poesia, onde o Coudel-Mor diz que João Afonso lhe escreveu que fizesse algumas coisas por ele.

Mas, como ali se explica, nessas coisas entrava «fallar a fua dama, & defpachar outras com a senhora jfante, & co duq», e não se recusou Fernão da Silveira a satisfazer aquele primeiro pedido:

Mas tornando a fenhora
que mandaftes que falaffe,
nem faley nem vy tal ora
que a vyfta me cheguaffe.
Mas nã cuydo que me paffe,
fe a vyr,
& feraa graça fyntyr
que de vos lhe mays lẽbraffe.
Porem tudo o que tyrar
dela v' farey faber,
vos viuei em efperar,
pois mantem mays q comer.


Se no que João Afonso pedia ao Coudel-Mor para fazer por ele se compreendia o assim falar a sua dama, não pode atribuir-se a estas palavras o significado de uma pretendida intercessão, no sentido de obter-lhe indulto para presumíveis responsabilidades em qualquer conjura.

Do que se diz na introdução − «que fyzeffe algũas coufas por ele, em que entrou fallar a fua dama, & defpachar outras / 13 / com a fenhora ifante, & co duq» − é ousado concluir, como pretende o Dr. MELO FREITAS, que João Afonso de Aveiro, obrigado a fugir para as ilhas por virtude da execução do Duque de Bragança, pedia ao Coudel-Mor que intercedesse por ele.

Como arriscado é concluir que, sendo a fuga determinada, não por compromissos do homiziado na conjura, mas exactamente por tê-la repelido, assim caindo no desagrado do Duque de Beja, por isso João Afonso solicitava a intercessão de Fernão da Silveira junto daquele e de sua Mãe.

A verdade é que se desconhecem os assuntos que João Afonso pedia ao Coudel-Mor para despachar com a Senhora Infanta e com o Duque.

Afigura-se-me, porém, pelas razões expostas e por mais uma, que não se tratava de quaisquer coufas relacionadas com as conspirações da nobreza, de pedido de intercessão para obter qualquer indulto do Rei ou do Duque − daquele por estar João Afonso de Aveiro envolvido nas conjuras ou deste por lhes ter recusado o seu apoio.

De facto, O Coudel-Mor, depois de referir as alterações e desconcertos que iam pelo reino e de confessar a sua ignorância do que se passava nas ilhas, afirma o prazer que lhe daria a vizinhança de João Afonso, lá ou cá; e ponderando que por toda a parte se encontram pedaços de mau caminho, propõe-lhe que, sem mais diligências, passem a viver na companhia um do outro:

Eftas coufas eram de caa,
Iaa nam fey nem nas deuynho,
mas querya caa ou laa
teru' fempre por vezinho.
Se queres, façamos nynho
fem mays arte,
poys fe acha em cada parte
pedaços de mao caminho.

Isto dá a entender que João Afonso podia regressar livremente ao reino, fixar aqui residência «fem mays arte», sem necessidade de qualquer intercessão do Coudel-Mor − evidentemente porque «fe for a viuer nas jlhas» por motivos de todo alheios às conspirações da nobreza.

Nem é de admitir que a proposta ou convite de Fernão da Silveira fosse uma armadilha para haver às mãos um foragido e entregá-lo à vingança do Rei.

Por um lado, a sua reconhecida integridade de carácter e a grande amizade que revela consagrar a João Afonso não lhe consentiriam o aviltante procedimento.

Por outro lado, D. João II saberia desembaraçar-se de um inimigo homiziado nas ilhas com a maior facilidade, ele que / 14 / soube perseguir e aniquilar todos os que se esconderam no reino ou fugiram para longes terras.

O Dr. MELO FREITAS fundou-se apenas em TEÓFILO BRAGA para aventar, excedendo-o nas afirmações, que João Afonso teve que fugir para as ilhas, em virtude da execução do Duque de Bragança, de lá escrevendo a Fernão da Silveira a pedir-lhe que intercedesse por ele.

O fecundo autor dos Poetas palacianos baseia-se somente na poesia do Coudel-Mor para afirmar, aliás com as imprecisões apontadas, que João Afonso fugiu para as ilhas por ocasião da prisão ou da sentença que condenou a ser publicamente degolado o mais poderoso fidalgo de Portugal.

Esta pretendida fuga é uma acusação de cumplicidade nas conspirações da nobreza contra D. João II. Não a consente a poesia do Coudel-Mor e nem os que a fazem invocam para ela outro fundamento.

Bem limpo o nome do poeta João Afonso de Aveiro da nódoa de conspirador, os versos de Fernão da Silveira, ao contrário do que o senhor Dr. JOSÉ TAVARES inadvertidamente supôs, ajudam ainda a provar que aquele é pessoa diversa do navegador seu homónimo.

O Duque de Bragança foi preso em 30 de Maio e executado em 29 de Junho de 1483(16).
Apesar de tudo, importa admitir ainda uma vez a hipótese de que, por essa altura, teria João Afonso fugido para as ilhas.

É geralmente aceite que o piloto João Afonso de Aveiro seguiu com Diogo Cão na sua primeira viagem ao longo da costa ocidental de África.

Teria sido exactamente por virtude das elogiosas referências que Diogo Cão fez a D. João II do seu famoso piloto que o monarca lhe confiou a expedição ao Rio Formoso, da qual haveria de resultar a descoberta do reino e terras de Benim.

Nem o Rei de Portugal cometeria empresa tão arriscada, importante e dispendiosa a quem não tivesse dado provas de possuir qualidades sobejas para levá-la a bom termo(17). / 15 /

Ora Diogo Cão saiu de Lisboa antes de 31 de Agosto de 1482, só regressando à capital do reino muito proximamente de 8 de Abril de 1484, como se encontra apurado(18).

Quer dizer: o piloto João Afonso de Aveiro não podia ter fugido para as ilhas por virtude da prisão ou da execução do Duque de Bragança, respectivamente em 30 de Maio e 29 de Junho de 1483, pois andava a sulcar ondas do Atlântico e a descobrir terras de África, em companhia de Diogo Cão, havia cerca de nove ou dez meses, só regressando ao reino uns dez ou onze meses depois de o poderoso fidalgo ter «morrido morte natural», degolado numa praça de Évora.

Se por tal motivo um João Afonso de Aveiro se tivesse visto obrigado a fugir para as ilhas, esse seria o poeta, não podendo de modo algum ser o piloto(19). / 16 /

O facto de se ter passado uma esponja sobre a infundada acusação da fuga, em nada altera a solução do problema.

Se ao ser preso o Duque de Bragança João Afonso de Aveiro se retirou para as ilhas, como também diz TEÓFILO BRAGA, ou, como refere o Coudel-Mor, de for a viuer nas / 17 / [Vol. XVII - N.º 65 - 1951] jlhas», havendo de supor-se que por aquela altura, --- a solução terá de ser, claro está, precisamente a mesma.

Só o poeta podia então ter saído do reino e escrever das ilhas a Fernão da Silveira, pois o Piloto abandonara Lisboa muitos meses antes e andava errando por ignorados caminhos da costa ocidental africana.

Interessa supor que João Afonso se tenha retirado para as ilhas antes da conspiração do Duque de Bragança.

O Coudel-Mor, dando-lhe conta dos desvairados tempos que iam pelo reino, diz logo a seguir:

Quem quifera fazer guerra
foylhe feyta,
em quem coube auer fofpeita
per fy mefmo fe defterra.

É clara, nos primeiros dois versos transcritos, a alusão à nobreza revoltada contra o Rei e à guerra implacável que este moveu àquela e, nos dois últimos, a revelação do homízio de alguns fidalgos que, pela sua cumplicidade, se viram obrigados a abandonar o reino.

A notícia parece impor o entendimento de que João Afonso de Aveiro «fe foy a viuer nas ilhas» por qualquer ignorado motivo de todo estranho às conspirações e que para ali seguiu antes destas − aliás não seria para ele novidade o que, como tal, o Coudel-Mor lhe transmite nos seus versos».

Em que precisa época, porém, teria o poeta João Afonso saído para as ilhas?

Sem documentos que o esclareçam, é impossível a resposta.

Todavia, se se pretende que o mesmo era o piloto, é seguro que João Afonso de Aveiro «fe foy a viuer nas jlhas» antes de 31 de Agosto de 1482, data da partida de Diogo Cão. / 18 /

Seria, assim, aproximadamente dez meses depois da saída para as ilhas que João Afonso escreveu ao Coudel-Mor e este lhe respondeu.

Até à partida de Diogo Cão para a sua primeira viagem, os portugueses haviam tentado a ocupação de algumas ilhas, realizado a de outras e descoberto muitas mais.

O reconhecimento da costa africana não tinha ultrapassado o Cabo de Santa Catarina, que Rui de Sequeira atingira em 25 de Novembro, não se sabe se de 1474 se de 1475.

Para além ficava o desconhecido; e Diogo Cão foi precisamente encarregado de desvendá-lo, seguindo, quanto possível para diante, como convinha à realização do projectado plano de alcançar o Oriente.

Não podia o Coudel-Mor, tão achegado a D. João lI, ignorar que tal era a incumbência do navegador e, portanto, que João Afonso de Aveiro andava por desconhecidas terras.

Donde escrevia então João Afonso, por quem enviava a sua carta e para que paragens e por que emissário lhe mandaria Fernão da Silveira a resposta?

Do piloto, que se foi a descobrir terras ignoradas da costa africana, não sabia o Coudel-Mor o paradeiro; mas conhecia o do poeta, que se foi a viver nas ilhas e a quem prometia enviar notícias da sua dama:

Porem tudo o que tyrar
dela v' farey faber.

Como o faria saber àquele João Afonso de Aveiro, que andava perdido por terras desconhecidas de África?

É forçoso concluir que o poeta que se correspondia com Fernão da Silveira era outro muito diverso do piloto que acompanhava Diogo Cão.

Apura-se, a meu ver com segurança, que o poeta João Afonso de Aveiro saiu do reino antes da morte do Duque de Beja e Viseu, pois pedia ao Coudel-Mor para tratar alguns assuntos com ele − pedido que não podia ser satisfeito porque «veo no tẽpo da morte do duq».

Sabe-se que D. Diogo foi morto pelo próprio D. João Il em 28 de Agosto de 1484(20).

Ora o piloto João Afonso chegou da primeira viagem com Diogo Cão pouco antes de 8 de Abril de 1484.

Poderia ter partido para a expedição ao Rio Formoso e descoberta do reino e terras de Benim imediatamente, depois da sua chegada a Lisboa, à roda de 8 de Abril de 1484, e antes / 19 / da morte do Duque de Beja e Viseu, em 28 de Agosto do mesmo ano?

Afigura-se-me que não lho consentiriam a necessidade de um merecido repouso e os preparativos, evidentemente demorados, da nova viagem − é de notar que Diogo Cão só iniciou a sua segunda viagem no outono de 1485, muitos meses depois de terminada a primeira − além de que se não descobre razão alguma que o imponha ou permita supô-lo.

Se houver de acreditar-se neste ponto o cronista GARCIA DE RESENDE, João Afonso de Aveiro terá descoberto o reino e terras de Benim em 1486(21) − e então, e fosse qual fosse
a data da sua chegada a África, era seguro haver saído de Lisboa muito depois da morte de D. Diogo.

Os mais modernos e conceituados historiadores dos descobrimentos, têm-se esforçado por corrigir as imprecisões, os erros e as contradições dos cronistas, recolhendo amoravelmente e estudando com superior critério magníficas fontes de carácter epigráfico, cartográfico e diplomático.

Não obstante os extraordinários progressos feitos, as dúvidas esclarecidas, os problemas solucionados, continua a imprecisão relativamente às viagens de João Afonso de Aveiro, ao menos quanto a alguns pormenores de manifesto interesse.

O ilustre Prof. Doutor DAMIÃO PERES, por exemplo, ensina que a exploração do reino de Benim foi realizada pelo famoso descobridor aveirense entre 1484 e 1486, mais adiante afirmando que tal exploração teve lugar pelos anos de 1484 e 1485(22).

Sem dúvida, esta incerteza não contradiz a afirmação de GARCIA DE RESENDE, adoptada pela generalidade dos autores, nem destrói, pois não colide com elas, as razões invocadas para marcar o início da viagem de João Afonso de Aveiro posteriormente à morte do Duque de Beja e Viseu. / 20 /

E assim, de novo se chegaria a concluir que, não ignorando o Piloto a morte de D. Diogo, a carta que escreveu ao Coudel-Mor um João Afonso de Aveiro só podia ser do poeta seu homónimo.

Quero ainda admitir, contrariando a minha profunda convicção, que João Afonso de Aveiro tenha iniciado a viagem de que resultou a descoberta do reino e terras de Benim antes da morte do Duque de Beja e Viseu, entre a sua chegada com Diogo Cão, por volta de 8 de Abril de 1484, e o assassínio de D. Diogo.

Observo, de fugida, que ficariam em tal caso sem sentido, relativamente ao piloto, as notícias do Coudel-Mor referentes às transformações operadas no reino por virtude da conspiração do Duque de Bragança.

Mas podia então, evidentemente, o piloto João Afonso escrever ao seu amigo na ignorância da morte do Duque de Beja e Viseu.

De que ilhas, porém, escrevia?

Não é natural que por ilhas se deva entender, em desacordo com as designações então usuais, qualquer ponto da costa ocidental da África visitado pelo navegador.

De resto, e aceite que o poeta saiu do reino por qualquer motivo alheio às conspirações, seria mais razoável supor que escrevia da Ilha da Madeira, da qual o dadivoso D. Afonso V fizera mercê a D. Diogo, com seus portos, rendas, direitos e jurisdições.

Além de tudo, e muito principalmente, a resposta do Coudel-Mor esclarece que João Afonso «fe foy a viuer nas ilhas». Esta maneira de dizer traduz, sem sombra de dúvida, o propósito de João Afonso de Aveiro de permanecer nas ilhas, de ali viver com estabilidade, de lá fixar residência.

Outra muito diversa, como bem sabia Fernão da Silveira, foi a intenção do navegador João Afonso ao sair de Lisboa. Este ia, não a viver nas ilhas, mas a cumprir a missão que o Rei lhe confiara e da qual prontamente regressaria a dar conta dos resultados obtidos.

Na realidade, João Afonso de Aveiro voltou das terras que descobrira, trazendo em sua companhia um embaixador do rei de Benim. E «entre as muitas cousas que el-rei D. João soube do embaixador deI-rei de Beni, e assi de João Afonso de Aveiro, das que lhe contaram os moradores daquelas partes, foi que ao oriente deI-rei de Beni, per vinte luas de andadura, que segundo a conta deles, e o pouco caminho que andam, podiam ser até duzentas e cincoenta léguas das nossas, havia um rei, o mais poderoso daquelas partes, a que eles chamavam Ogané, que entre os principes / 21 / pagãos das comarcas de Beni era havido em tanta veneração como àcerca de nós os Sumos Pontífices». (23).

Se mais tarde lá veio a morrer, foi porque de novo para ali seguiu com outra missão.

Uma vez mais se chega a concluir que João Afonso de Aveiro, o poeta que se foi a viver nas ilhas e de lá escreveu ao Coudel-Mor, era outro muito diferente do Piloto que andou a descobrir terras africanas.

Relembro agora, por certo já escusadamente, as razões invocadas pelo escritor aveirense RANGEL DE QUADROS.

Não digo apenas que o piloto se daria melhor com os perigos e aventuras marítimas do que com as musas.

Por aqueles tempos remotos, os pilotos − que, «durante mais de três séculos, foram os únicos depositários da ciência náutica a bordo dos navios de Portugal» − eram, por via de regra, pessoas humildes, gente do povo, cheirando a maresia, habituada a afrontar e vencer, serena e heroicamente, as arremetidas traiçoeiras das vagas.

A sua escola era o mar e só na frequência das suas aulas aprendiam a desprezar temores, a enfrentar perigos, a ambicionar triunfos, a compreender a linguagem dos astros, dos ventos, das correntes e das marés e a fixar rumos de glória aos navios das descobertas.

Destes seria o piloto João Afonso de Aveiro − tão arraia miúda que nem sequer se lhe conhecem os nomes dos pais e não, como o poeta seu contemporâneo e homónimo, pessoa de qualidade, filho de gente nobre, aluno de outra escola, com diversos programas e compêndios, onde se ensinava a arte de frequentar os salões da fidalguia e se apurava o gosto de fazer versos.

Quanto à lista dos escritores que, ocupando-se do piloto João Afonso de Aveiro, lhe não atribuem o dom da poesia nem o apontam como criado do infeliz Duque de Beja, só há a dizer que poderia alongar-se extraordinariamente.

Não conheço mesmo historiador ou estudioso da história dos nossos descobrimentos marítimos, cujo nome agora me ocorra, que confira ao ousado navegador aquela prenda ou lhe outorgue este aristocrático mester.

E de tudo me parece poder concluir-se com segurança que um era o apreciado poeta e outro o Piloto audacioso. / 22 /

O estudo que me proponho e a que este serve de introdução, é exclusivamente sobre o navegador aveirense do século XV − humilde e heróico marinheiro que tanto enobreceu o seu berço.

Amor da terra comum, a outrora vila e hoje cidade sempre «linda, cantante, arejada, que desabrocha como uma fresca flor aquática, como um enorme nenúfar branco, de entre as águas que por todos os lados a cingem, a atravessam em canais, a banham, a reflectem, a espelham, lhe erguem um hino claro, fremente, entusiástico, apaixonado»?

Amor dos homens que a serviram, realçando as suas incomparáveis belezas com os encantos das suas virtudes e as maravilhas dos seus heroísmos?

Para além de tudo isso, o meu trabalho pretende ser uma tentativa de reparação, em consciência devida pelos aveirenses a um dos que, andando ousada mente a acender luzeiros pelos negros caminhos do continente africano e de lá trazendo punhados de informações que despertaram o maior interesse e, por felicidade, aumentaram as esperanças da realização de um sonho, mais, eficazmente contribuíram para a descoberta do caminho da Índia.

Ao menos por agora, deixo de lado aquele João Afonso de Aveiro que repousadamente escrevia, sobre laudas de papel, lindos versos, para ocupar-me do outro João Afonso de Aveiro que arriscadamente traçava, sobre ondas de mar, luminosas rotas − este bem lavado de qualquer simples suspeita de traição ao Rei de Portugal D. João II, que devotadamente serviu, acrescentando em muito as suas glórias e preparando outras maiores para o seu afortunado sucessor.

ANTÓNIO CHRISTO

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(1)JOAQUIM DE MELO FREITAS, Violetas, Porto, 1878, págs. 311 e seg.

(2)No estudo do Dr. MELO FREITAS, pág. 314, vem indicado o ano de 1476, evidentemente por lapso. 

(3) − TEÓFILO BRAGA, Poetas palacianos, Porto, 1871, págs. 263, 271, 272, 286 e 369.

(4)JOÃO AUGUSTO MARQUES GOMES, Memórias de Aveiro, Aveiro, 1875, pág. 189. 

(5)Idem, O Districto de Aveiro, Coimbra, 1877, págs. 149 e 150.  

(6)Idem, Exposição Districtal de Aveiro em 1882, Aveiro, Grémio Moderno, MDCCCLXXXIII, pág. 8.

(7)Idem, Subsídios para a historia de Aveiro, Aveiro, 1899, págs. 19, 73 e 74.

(8)Idem, 1498-1898 − Centenário do Descobrimento do Caminho Marítimo da Índia − A Vasco da Gama, o Campeão das Províncias, Aveiro. 1898, op. de 32 págs. 

(9) JOSÉ REINALDO RANGEL DE QUADROS OUDlNOT, João Affonso de Aveiro, o poeta, e João Affonso de Aveiro, o marinheiro, artigos publicados no semanário "O Districto de Aveiro".  

(10)JOÃO AUGUSTO MARQUES GOMES, Subsídios para a história de Aveiro, Aveiro, 1899, pág. 74.

(11)ÁLVARO FERNANDES, Recordações de Aveiro, no Arquivo do Distrito de Aveiro, vol. XII, pág. 129, nota.

(12)JOSÉ PEREIRA TAVARES, Literatos do Distrito − João Afonso de Aveiro, estudo publicado no "Arquivo do Distrito de Aveiro", Vol. V, págs. 9 e segs. No seu estudo, pág. 10, nota I, o senhor DR. JOSÉ TAVARES afirma que, antes de MARQUES GOMES, já o ilustre escritor aveirense Dr. JOAQUIM DE MELO FREITAS tinha tratado de João Afonso de Aveiro na sua obra Violetas, Porto, 1878. A afirmação resulta do facto de MARQUES GOMES ter organizado, em 1898, o folheto sobre João Afonso de Aveiro a que o senhor Dr. JOSÉ TAVARES se refere. Muito antes, porém, já MARQUES GOMES se tinha ocupado do piloto João Afonso, pelo menos por duas vezes: nas Memórias de Aveiro, em 1875, e no Districto de Aveiro, em 1877.

(13)Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. III, pág. 811. Ver no vol. I, pág. 515. a referência a um outro João Afonso, «navegador e descobridor, natural de Aveiro, que foi um dos mais arrojados do seu tempo, sendo dos primeiros que alcançou a Terra Nova».

(14)Os Drs. TEÓFILO BRAGA e MELO FREITAS dizem D. Diogo 4.º Duque de Beja, o que parece engano. D. Diogo foi 3.º Duque de Beja e 4.º e último Duque de Viseu. O 4.º Duque de Beja foi, por morte daquele, seu irmão D. Manuel, mais tarde Rei.

(15)GARCIA DE RESENDE, Cancioneiro Geral, Coimbra, Imprensa da Universidade, MDCCCCX, tom. I, págs. 186 e segs. Reporto-me a esta edição em todas as minhas referências.

(16)Prof. ÂNGELO RIBEIRO, A conspiração dos nobres, na História de Portugal, Barcelos, MCMXXXI, vol. lII, págs. 183 e segs. e págs. 186 e segs. Quanto à data da prisão, na altura em que o Duque de Bragança foi ao paço para se despedir de D. João II, o ilustre professor fixa-a em 30 de Maio de 1483, uma sexta-feira, corrigindo o erro de RUI DE PINA e GARCIA DE RESENDE, que dão o facto como ocorrido em 29.  

(17)Suponho poder afirmar-se que João Afonso de Aveiro já havia tomado parte na expedição de Diogo de Azambuja à costa da Mina. JOÃO DE BARROS, nas Décadas, menciona entre os capitães dos navios da frota um João Afonso, «que depois mataram em Arguim sendo capitão daquela fortaleza»; LUCIANO CORDEIRO, no seu estudo sobre Diogo d'Azambuja, afirma que no comando dos navios figuram nomes dos mais prestigiosos nas descobertas e aventuras marítimas do tempo e emite o parecer de que o João Afonso que capitaneava uma das caravelas era o arrojado navegador aveirense. Este ponto, que procurarei esclarecer no meu estudo, só interessa ao problema de que agora me ocupo na medida em que possa ter servido a D. João II como índice ou garantia da competência de João Afonso de Aveiro, contribuindo para determinar o monarca a confiar-lhe a expedição ao Rio Formoso. Em nada influi quanto ao resto, pois a frota de Diogo de Azambuja partiu do reino em 11 de Dezembro de 1481 e alcançou a Mina em 19 de Janeiro de 1482 (Cf. ANTÓNIO GALVÃO, Tratado dos descobrimentos, na colecção dirigida pelo VISCONDE DE LAGOA, 3.ª ed., pág. 130, nota I) − muito anteriormente, portanto, à prisão do Duque de Bragança, em 30 Maio de 1483.

(18) −  Prof. Doutor DAMIÃO PERES, História dos descobrimentos portugueses, Porto, 1943, págs. 188 e 190.

(19)Refiro-me no texto à primeira viagem de Diogo Cão, única que para o meu intento importa agora considerar. Entretanto, enuncio desde já o problema de saber se João Afonso de Aveiro teria acompanhado também aquele navegador na sua segunda viagem.
      O estudo das inscrições de lelala parece confirmar a opinião, geralmente seguida, de que João Afonso seguiu com Diogo Cão na sua segunda viagem. Quando da visita deste ao rei do Congo, conforme bem fundadamente se supõe, foram gravadas numas rochas da margem esquerda do Zaire, próximo das cataratas de lelala, inscrições preciosas que ali atestam a presença do ousado navegador e de alguns dos seus companheiros. LUCIANO CORDEIRO, a quem se deve a primeira interpretação correcta das célebres inscrições, traduz uma das siglas como parecendo sugerir a leitura de Afonso de Aveiro, embora com a natural reserva do estudioso prudente e de inexcedivel escrúpulo (LUCIANO CORDEIRO, A inscrição de lelala, na revista Portugal-Brastl, 1901, cit. pelo senhor Prof. Doutor DAMIÃO PERES, ob. cit., pág. 208).
      Examinando a fotografia das inscrições reproduzida pelo ilustre Prof. Doutor DAMIÃO PERES (ob. cit., estampa LX, págs. 208-209) atrevo-me, embora muito timidamente, a lembrar uma interpretação diversa que, aliás, confirmaria igualmente a presença de João Afonso de Aveiro naquelas paragens.
      A sigla tem a forma de um A com a haste esquerda cortada por um traço rectilíneo, parecendo a LUCIANO CORDEIRO uma redundância daquele, a traduzir o nome de Afonso de Aveiro.
      É flagrante a semelhança da sigla com as letras iniciais da palavra. «Aqui:» e do nome «Alvaro» que se encontram na inscrição. A letra da sigla é, sem dúvida alguma, um A, um pouco maior e em tudo o mais igual àqueles.
      O traço que corta a haste esquerda, pode muito bem ser um J ou, melhor ainda, um I, formando com o A o monograma de Joam Alfonso ou, como então ordinariamente se escrevia, loam Affonso.
      Uma ou outra interpretação seria novo argumento a provar que João Afonso de Aveiro acompanhou Diogo Cão na segunda das suas viagens.
       Pelo que se encontra apurado, Diogo Cão partiu novamente para a África no outono de 1485; atingiu o Monte Negro ou Cabo Negro, onde assentou um padrão, em 18 de Janeiro de 1486, se é verdadeira determinada afirmação de Martin Behaim; seguiu para o sul até ao Cape Cross, onde ergueu outro padrão; e terminou a sua viagem na Serra Parda, a mil milhas do Monte Negro, como se conclui de uma legenda da carta de Martellus, atribuída a 1489 (Cf. Prof. Dr. DAMIÃO PERES, ob. cit., págs. 196 e 197).
      Nada disto colide com a afirmação de GARCIA DE RESENDE de que João Afonso de Aveiro descobriu o reino e terras de Benim em 1486. Bem podia o afamado piloto ter voltado ao reino, de regresso daquela segunda viagem, a tempo de partir novamente de Lisboa e chegar ao Rio Formoso ainda no mesmo ano de 1486.
      Sem esquecer as confusões e contradições dos cronistas JOÃO DE BARROS, RUI DE PINA, GARCIA DE RESENDE e ANTÓNIO GALVÃO e do cosmógrafo Duarte Pacheco relativamente ás datas das viagens de Diogo Cão − contradições e confusões que os historiadores dos nossos descobrimentos, durante muito mais de três séculos, não esclareceram e antes aumentaram − parece geralmente aceite que a descoberta do reino e terras de Benim foi posterior á segunda viagem daquele experimentado navegador.
      O ilustre Prof. Dr. DAMIÃO PERES, na História dos descobrimentos portugueses, diz ter João Afonso de Aveiro realizado a exploração de Benim entre 1484 e 1486 (pág. 188); num estudo publicado na História de Portugal, afirma que «pela mesma epoca em que Diogo Cão realizava a sua segunda viagem», João Afonso de Aveiro explorava o reino de Benim, sobre o golfo da Guiné» (voI. lII, pág. 566). «Pela mesma época», seria a partir do outono de 1485 e durante os primeiros meses de 1486.
      A imprecisão destas formas não quererá significar que a segunda viagem de Diogo Cão e a de João Afonso de Aveiro fossem simultâneas, nem repele o entendimento de que a deste foi posterior à daquele. Tanto mais que o douto Professor nenhuma objecção faz à hipótese, formulada por LUCIANO CORDEIRO, segundo a qual uma das siglas das inscrições de lelala revelaria ter João Afonso de Aveiro acompanhado Diogo Cão na sua segunda viagem.
      Todavia, o Senhor Doutor DAMIÃO PERES, referindo que certos indícios podem levar a crer que Martin Behaim tomou parte na exploração realizada por João Afonso de Aveiro, acrescenta: «exploração que, como já dissemos, teve lugar pelos alias de 1484 e 1485». (Cf. História dos descobrimentos portugueses, pág. 206).
      É evidente o lapso do ilustre Professor, pois em parte alguma disse que a viagem de João Afonso de Aveiro teve lugar pelos anos de 1484 e 1485. Esta última afirmação, desconforme com as anteriormente feitas, sem prejudicar o entendimento de que o audacioso navegador aveirense acompanhou Diogo Cão na sua segunda viagem, obrigaria a concluir que esta foi posterior à exploração do reino e terras de Benim.
      Tentarei esclarecer o problema, que tem tanto de curioso como de delicado, limitando-me, por agora, a manifestar o meu convencimento de que João Afonso de Aveiro acompanhou Diogo Cão na sua segunda viagem, iniciada nos últimos meses de 1485, só depois de terminada esta − em 1486, como diz GARCIA DE RESENDE − realizando a expedição ao Rio Formoso, de que resultou a descoberta do reino e terras de Benim.

(20) −  Prof. ÂNGELO RIBEIRO, est. e loc. cits., págs. 188 e 189.

(21) −  GARCIA DE RESENDE, Chronica dos valerosos, e insignes feitos Del Rey Dom Joam II, Coimbra, na Real Officina da Universidade, Anno de MDCCLXXXXVIII, pág. 97. 

(22)Prof. Doutor DAMIÃO PERES, ob. cit., págs.188 e 206. O ilustre Professor na sua História dos descobrimentos portugueses, pág. 196, afirma que Diogo Cão partiu para a sua segunda viagem no outono de 1485. No seu estudo O caminho da Índia: Do Golfo da Guiné ao Cabo da Boa Esperança, publicado na História de Portugal, edição e volume citados, pág. 562, diz semelhantemente que as duas inscrições do padrão de Cape Cross concordam em assinalar como época da partida de Diogo Cão, para a sua segunda viagem os «quatro últimos meses de 1485». Mais adiante, o douto Professor escreve, na pág. 566: «Pela mesma época em que Diogo Cão realizava a sua segunda viagem, João Afonso de Aveiro explorava o reino de Benim, sobre o golfo da Guiné». Isto vem confirmar o que exponho no texto.  

(23)JOÃO DE BARROS, Ásia, Década I, liv. lII, cap. IV. Não tendo presente a obra de JOÃO DE BARROS, servi-me da transcrição do senhor Prof. Doutor DAMIÃO PERES, História dos descobrimentos portugueses, pág. 237 e seg.

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