A. S. de Sousa Baptista, Cavalarias do Vouga, Vol. XVI, pp. 175-188.

CAVALARIAS DO VOUGA

APÓS o desastre, em 711, da batalha de Guadalete, em que se acabaram os dias da monarquia visigótica, a ocupação da península pelos árabes fez-se com pequena resistência de seus habitantes. De uma maneira geral, pode dizer-se que estes aceitaram pacificamente os conquistadores. Deste modo, os homens livres que, à maneira dos actuais proprietários rurais, viviam do cultivo de suas terras, sujeitando se às exigências tributárias que o vencedor lhes impôs, foram mantidos na posse de seus bens, respeitados nas suas crenças, nas suas leis, usos e costumes particulares. Os godos chamavam a estes homens privados; os novos conquistadores chamavam-lhes moçárabes.

Começada, dez ou onze anos depois do desembarque, a reacção contra os invasores por Pelágio, nas Astúrias, foi-se esta desenvolvendo lentamente durante mais de sete séculos, até à libertação completa do solo peninsular em 1492.

À medida que as fronteiras do reino cristão das Astúrias se dilatavam, os seus reis, proprietários de todas as terras apresadas, por uma nova concepção do direito de propriedade e de soberania, iam-nas distribuindo pelos seus homens ou confirmavam-nas aos que com sua autoridade e seu nome as apresavam. Chamaram-se estes proprietários livres − presores e depois herdadores. Sobre estes não pesava outro encargo além do de serviço militar. Este serviço era o do fossado, isto é, o de acompanharem o rei, a cavalo, com escudo e lança, nas incursões em terras de infiéis, que se faziam todos os anos na Primavera, e eram destinadas a colher os inimigos de surpresa, aprisionando-os, talando-lhes os campos e carregando a maior presa possível. Por estarem sujeitos a este serviço chamavam a estes homens cavaleiros vilãos.

Este tributo era pessoal, mas com o andar do tempo e com o avanço da reconquista, como a sua base era a propriedade, foi o encargo pouco a pouco ligando-se a esta. / 176 /

E quando pela distância não foram mais necessários os serviços destes vilãos cavaleiros de Além Douro, substituíram-se estes por um tributo em géneros ou dinheiro que onerava as propriedades, as quais, por isso, se chamavam afosseiradas.

Para o Sul do Douro, e sobretudo do Vouga, ou porque ali fosse mais duradoura a luta de fossado ou porque a este encargo se juntassem outros de diversa natureza, predominou o nome de cavalaria em vez de fossado ou fossadeira. E chamavam-se terras de cavalaria aquelas que suportavam este encargo.

O escritor ROCHA MADAHlL publicou no Arquivo do Distrito de Aveiro, vol. VIII, o Rol das Cavalarias do Vouga, depois de o ter lido através de fotografia que mandou tirar na Torre do Tombo, onde se encontra o original.

«O documento não se encontra datado» − diz aquele erudito escritor − «é constituído por dois pequenos pedaços de pergaminho cosidos um ao outro; no verso, em letra muito mais recente, foi assim sumariado: − Declaração dos foros que se haviam de pagar a Elrei dos lugares de Vouga, Avellans e outros nomeados.

«A isto se acrescentou a data de 1328 a tinta diferente, restando ainda averiguar se ela se deve entender como era de César ou como ano de Cristo; portanto, 1328 ou 1292, reinado de Afonso IV ou de D. Dinis.»

Para elucidar o leitor sobre o que deve entender-se por Cavalarias, ROCHA MADAHlL recorre às Inquirições de Afonso III, ao Elucidário de VITERBO e a HERCULANO. Este último não achou melhor definição de Cavalaria do que a passagem do referido Rol:

«Hoc est forum quod debent facere quando dominus rex fuerit in fossado, vel in hoste vel in anuduva; debent ire cum suo corpore et debent levare unum poldrum et unum scutum et unam lanceam et debent stare cum suo corpore septem domas.»

Antes de entrar no exame detalhado das Cavalarias do Vouga, importa definir melhor o que eram as Cavalarias e as modalidades que apresentam em face dos documentos. ALEXANDRE HERCULANO começa por estabelecer alguma diferença entre a propriedade sujeita à fossadeira e a que suportava o encargo da Cavalaria. É que aquela só estava sujeita àquele tributo, fossado, isto é, o proprietário dela era obrigado na Primavera de cada ano a ir ao fossado, a cavalo, com escudo e lança. Nenhum outro tributo pesava sobre ela. Quando este serviço se tornou desnecessário, pelo avanço da reconquista, o encargo transformou-se, como já disse, num tributo em géneros ou dinheiro. Na Cavalaria, além / 177 / [Vol. XVI - N.º 63 - 1950] do fossado, o senhor da terra era obrigado à anúduva e ainda a outros tributos, de diversa natureza, como a colheita, lutuosa, etc. O que era a anúduva di-lo ainda HERCULANO baseado numa outra passagem do Rol das Cavalarias do Vouga: «et quando fuerint in anuduva non debent facere nisi mandare cum una vara in sua manu. Et si forte non fuerint cum illa debent pectare 7 bragales (e quando forem ao serviço das muralhas nada mais devem fazer que mandar com uma vara na mão. E se porventura não forem, devem pagar sete bragais)».

O fossado transformou-se num imposto sobre a propriedade e de tal maneira definitivo que no século XIII quase estava perdida a origem dele.

Na Cavalaria, a obrigação do serviço militar manteve-se e só o da anúduva era substituído por um tributo, quando dispensado.

ALEXANDRE HERCULANO atribui a diferença entre as propriedades fossadeiras e as de Cavalaria à circunstância histórica de serem aquelas as dos presores, isto é, dos cristãos que as tomaram com o sacrifício de guerra, na reconquista, enquanto as Cavalarias correspondiam às terras dos moçárabes que passavam à zona cristã por virtude da mesma reconquista que os respeitava na posse delas, sem nenhum sacrifício de guerra por parte deles.

Além destas Cavalarias havia outras, com outros encargos além dos indicados, às quais o mesmo historiador atribui uma origem diversa: foram os reis que as criaram elevando alguns dos seus colonos voluntários à categoria de herdadores, dando-lhes as terras e impondo-lhes a obrigação do cavalo para o fossado e anúduva, e ainda outros encargos. Os reis, nos séculos da reconquista, eram os maiores proprietários de seus estados. Era com os réditos dessa fazenda que eles pagavam os encargos gerais da administração pública.

No século XIII, quando chegava ao fim a grande transformação lenta dos servos da gleba em colonos voluntários, os bens do rei dividiam-se em dois grandes grupos: prédios reguengos e aforados. Nos primeiros não havia o direito de sucessão. Se os filhos eram continuadores dos pais na habitação e cultivo das terras, era porque ali tinham nascido e por uma questão de conveniência deles e do senhorio, mas este podia removê-los sem que eles pudessem legalmente opor-se-lhe; igualmente eles podiam abandonar as terras sem que ao senhorio ficasse o direito de reconduzi-los a elas, como acontecia com os servos da gleba. A prestação era certa quanto à razão, mas incerta na quantidade, visto pagarem uma medida por cada tantas de produção. A razão era estabelecida de acordo com a fertilidade das terras e outras circunstâncias. / 178 /

Os cultivadores de casais ou terras aforadas tinham o direito de sucessão. Estas propriedades passavam de pais a filhos, podiam ser partidas, doadas ou vendidas, ainda que juridicamente constituíssem um todo, encabeçando um deles a obrigação desse todo. Nos casais reguengos também se falava em foro, mas ali este representava o tributo imposto à habitação. Terra reguenga, que não tivesse casa, não pagava foro.

Feitas estas considerações gerais, sem nos determos nas numerosas modalidades que aquelas duas grandes categorias tomavam, nas suas divergências de terra para terra, o que não teria maior interesse para o nosso caso, podemos fazer a pergunta:

− Que natureza tinham as Cavalarias do Vouga? Viriam da presúria, da imposição em terras de moçárabes? É um problema complexo e de difícil resposta. Só o estudo de cada uma delas nos habilitaria a dá-la. Podem ter origens diversas. Esse estudo, porém, torna-se quase impossível, à falta de documentos. As considerações que vou fazer são apenas uma contribuição. Outros as farão melhores.

Estas são as Cavalarias mencionadas pelo Rol:

«...in arcus una. in auelaas. duas. / Jn Oes una. et est de martino laurêcij. Magofores. una. in alfelas. una. / boralia. duas. Açiquiss. duas. Reqardanes quĩque in spiel. septem. Jn paradela / duas in quasaio. duas Jn orone. duas. Jn Sagadães tres Jn bbrunido. duas. et fuit / una de. p. menendj Jn laeses. duas. et fuit una de martino petri et alia de paiam / in cristello. una. Jn ualle maiorj una. et fuit doruilido, Jn soutello. una. Jn arinus. una. Jn maciata. duas J (sic) lamas. una. et fuit de laurẽcio / et fontes. una. et fuit de petro budel. Jn caluanes. una. et fuit de irmigia / Jn lauri. una. et fuit de batalia. Jn ourol. una in agueta. Jn auca. una. / in illauo. duas. et fuit una de formã et villa de milio. una. et fuit / de michaele de sereẽs. Jn aueiro. tres. et fuit una de pelagio da / poza in sáá. una. in isgeira. tres. villario. una. Jn exxio, tres. / Jn Oes. dagada. una.. hoc est forũ quod / debẽt facere quando Dominus. Rex fuerit in fosado uel // in oste uel in anudoua debẽt ire cum suo corpore et debẽt / leuare unum. poldrũ et unũ scutũ, et unã lãceam et debent / stare cõ suo corpore. septem. domaas et debẽt cõtare post / quam exeãt de sua casa et quando fuerít inn (sic) anudoua nõ / debẽt facere nisi mãdare cõ una uara in sua manu / et si forte nõ fuerit cõ illa. debẽt pectare. septem. braga / es quas tãtum solebãt pejtare in tẽpore de uestro patre / et modo. posuerũt pro. decem.» / 179 /

Todos estes povoados existem ainda com a excepção do Cristelo, que me parece ser o de Valongo do Vouga e não o da Branca, como supôs ROCHA MADAHIL.

Pela sua situação, vê-se que eles se estendem por todo o termo do velho Julgado de Vouga, obedecendo a sua indicação ao mesmo critério que orientou a Inquirição de D. Dinis, de 1282. A localização de Cristelo na Branca estenderia a esta freguesia a terra de Vouga, o que se me afigura não ser possível por pertencer a Branca ao território portucalense.

Comecemos por Valmaior. Na Inquirição de Afonso II de 1222 − metade da vila pertencia aos herdadores e outra metade ao rei.

Da Inquirição de D. Dinis de 1282 consta: «Item Joham Martis disse que a quintha ẽ que mora Pedro Piriz e o quinõ hy cõparou steuã rudrigit que ouuiu disser que est caualaria». Por aqui se vê que a Cavalaria estava incluída na metade dos herdadores.

Em Segadães:

«Item disse petro iohannis neto que a ĩ seghadaes III Caualarias e tẽ nas os erdadores» −


Também Recardães era metade reguenga e metade de herdadores.

«Item da freighesia de Regardães Jojanne Aluo disse que a ĩ Regardães V Caualarias e dis que tem inde duas peças e Egreia de Agada que li mandárõ da Caualaria de Joanne aluo e dise que tem a Egreya de Reguardaes hũa peça desta Caualaria e dise que ergreya despiel outra peça..........»

Mas quem eram estes herdadores? Seriam descendentes ou representantes dos primitivos presores, dos moçárabes confirmados após a reconquista na posse de suas terras, ou serão antigos colonos voluntários, elevados à categoria de cavaleiros?

A circunstância de em algumas freguesias os inquiridores de 1282 terem identificado as cavalarias sem grandes dificuldades pode levar a supor que elas fossem de instituição recente. Este argumento tem muito pouco valor. Os casais reguengos, como os dos mosteiros e igrejas e outros, conservavam-se através dos séculos como base da organização da propriedade. Os seis casais reguengos que a Inquirição de 1227 menciona em Crastovães, ainda foi possível identificá-los num tombamento de 1749. Outro tanto aconteceu com as cavalarias. É minha opinião que elas vêm de / 180 / muito longe; vêm do tempo de Afonso V e do imperador Fernando.

Aqueles herdadores eram realmente os herdeiros ou sucessores dos antigos presores ou dos moçárabes. É certo que os reis fizeram doações a colonos voluntários, elevando-os à categoria de cavaleiros, mas estes homens, que descendiam dos antigos servos da gleba, não se chamavam herdadores. Era ainda muito cedo para que as duas classes sociais se confundissem. Também as propriedades destes cavaleiros se não chamavam cavalarias.

Mas não era só com doações a servos voluntários ou homens livres que os reis conseguiam cavalos e cavaleiros para o fossado e para a hoste. Os séculos XI e XII foram o grande período de constituição e renovação dos municípios, pequenos laboratórios onde nasceram os grandes princípios da liberdade dos povos; onde o homem, cansado de lutar sozinho com os que o escravizavam, começou a sentir a força do agregado quando este enfrentava, como pessoa jurídica, o bispo, o nobre ou mesmo o rei. E todos aqueles que no município podiam, por seus haveres, sustentar cavalos, eram vilãos cavaleiros e deviam servir o rei no fossado e hoste, de acordo com o que estatuía a carta de constituição. Também as terras destes vilãos cavaleiros se não chamavam cavalarias.

Já em artigos anteriores me referi algumas vezes e com propósitos diferentes a Egas Erotis. Este homem vivia, no fim do século X, nas suas terras dentre o Douro e o Vouga. Veio Almançor e ele fugiu para o Norte, deixando as propriedades com os servos que as cultivavam. Mas quando, em 1017, Afonso V, rei de Leão, levou as suas armas vitoriosas até Montemor, logo ali se lhe apresentou o filho do mesmo Egas Erotis, D. Gonçalo Viegas, a mostrar-lhe a relação das suas propriedades e a pedir-lhe que lhas confirmasse. E o rei mandou fazer a destrinça das que tinham sido adquiridas e das que vinham de avoenga. Esta divisão tornava-se necessária, porque certamente eram diferentes os encargos que haviam de pesar sobre elas. Um encargo seria, porém, certo para umas e para outras se dele não fossem expressamente isentas: era o do serviço militar.

Em 1064 D. Fernando retomou Coimbra. Também a ele correm os filhos de D. Gonçalo a pedir-lhe confirmação do inventário confirmado por Afonso V. E este fê-la; mas mais tarde, em 1077, um descendente do velho Gonçalo, teve de voltar à carga, porque Sisenando, governador geral de toda a terra entre Douro e Mondego, a Ocidente de Lamego, parece que não estava disposto a respeitar algumas das terras que Pelaio Gonçalves alegava serem suas. É que Sisenando dava aos seus apaniguados vilas ermas e terras incultas para / 181 / edificar, povoar e cultivar. É possível que quisesse dar algumas de Pelaio Gonçalves, Por este inventário verifica-se que lhe pertenciam, na região do Vouga, as seguintes vilas: Sala (Sá - Aveiro); Sagadanes 1/4. (Segadães); Santa Maria de Lamas 1/2; Recardanas 1/2 (Recardães); Farelanes 1/2 (Cavadas); Castrelo 1/2 (Cristelo); Arraval 1/4. (Arrabel); Feramontanos 1/3 (Fermentões); Vale Longun 1/3 (Valongo); Casal de Lausato (Águeda); Iafafi 1/2 (Jafafe); Cristoualannes 1/4 (Crastovães); Faramontanelos (Fermentelos); Paredela (Paradela); Aurentana (Ourentã); Alavario 1/3 (Aveiro); Padaranes (Pedaçães).

Com excepção de Fermentelos, Pedaçães, Arrabel, Crastovães, Jafafe, Fermentões, todas as outras tinham cavalarias. Mas justificam-se estas excepções.

Fermentelos, ou por compra, ou por troca ou por qualquer outro motivo, tinha passado a reguengo. É nesta situação que a encontramos na inquirição de 1222.

Pedaçães: O velho Gonçalo Viegas tinha-a comprado ao conde D. Diogo. Era terra de nobre e por isso imune. (P. M. H., Doc. DXLIX).

Crastovães: Não figurava no inventário de 1050 e, na inquirição de 1222, com excepção dos casais de Grijó e Santa Maria de Vagos, todo o restante era reguengo.

Arrabel e Cristelo: Devem ter formado uma só cavalaria, porque são ligados.

Esta coincidência de recaírem as cavalarias sobre aquelas vilas de que foi senhor na totalidade ou em parte Gonçalo Viegas é que fundamenta no meu espírito a conjectura de que as respectivas cavalarias fossem impostas nas partes que lhe pertenciam, como encargo militar. E o que se diz das terras de Gonçalo Viegas, diz-se de outras, porque nas condições desta havia naturalmente outras.

Se inquirirmos das outras terras do Termo de Vouga em que há cavalarias, deparamo-nos como uma origem semelhante à daquelas, isto é, confirmação aos seus possuidores, que as tinham por si e por seus antepassados desde o tempo dos mouros, ou aos que as tinham de presúria, ou aos que as receberam quando apresadas pelo rei ou em seu nome, para povoação, edificação e cultivo.

Em 1103 o presbítero Inácio fez doação ao bispo Maurício, de Coimbra, de uma propriedade que tinha em Esgueira, na qual se incluía a Igreja. Diz o documento «...omni mea racione quod in ipsa predicta ecclesia heredito vel in ipsa uilla parentum meorum vel de apresuria temporibus Sesnandi consulis Colimbriensis.» (Doc. Med. n.º 100).

Veio-lhe, pois, a propriedade de herança dos pais e a estes por presúria no tempo de Sesinando. Como, porém, / 182 / Esgueira, ao tempo de Sesinando, já há muito estava em poder dos cristãos, não deve tratar-se de uma presúria desta época, mas duma daquelas muitas doações daquele cônsul de terras que foram de presúria, revertidas por qualquer circunstância ao domínio real, e então por ele de novo dadas a gente sua com aqueles encargos a que me venho referindo. E em 1282 havia cavalarias em Esgueira.

As cavalarias de Ílhavo e Aveiro deverão ser anteriores a Sisenando, talvez constituídas em tempo de Afonso V.

Disse, quando tratei do julgado de Vouga, que este fôra, no período que decorre da tomada de Coimbra em 987 pelos mouros à sua retomada pelos cristãos em 1064, o grande campo das correrias árabes e cristãs. Era natural que esta região sofresse, por isso, grande despovoamento, que os matagais crescessem e se multiplicassem as feras.

Em 1088, Sisenando fez doação de terras entre Ílhavo e Sôza a certo presbítero de nome Rodrigo, para ele edificar e plantar, segundo a sua vontade e posses, podendo deixá-las a quem quisesse. A leitura do documento relativo (Port. Mon. H., doc. DCXXXXIX) pode levar-nos a supor que o presbítero foi chamado por Sisenando e que só depois da doação é que começou a edificação e plantio. É o próprio Rodrigo que nos diz que assim não foi, num documento de doação que fez à Sé de Coimbra, em 1095, daquelas mesmas terras (P. M. H., doc. DCCCXV). Chama-lhes ele Ripas Altas. Por este nome, que corresponde ao actual lugar de Ribas Altas, e por outras indicações do documento, vê-se que era grande o trato de terras doadas, as quais, a Ocidente, vinham até Ílhavo. Ora diz Rodrigo, que já então não era presbítero, porque tinha sido lançado fora daquela dignidade (de ea dilfnitate dejectus) que depois que o rei Fernando tomou Coimbra, restituiu aos cristãos as suas propriedades e deu-lhes liberdade de as apreender, edificar e plantar; que, à morte do rei Fernando, seu filho Afonso VI confirmou aquela concessão. Confiado nela, o presbítero entrou naquela densíssima floresta (?) que desde antigos tempos era habitação de feras (...ista igitur auctoritate confissus ingressus sum et ego densissimam silliam que ab antiquis temporibus habitaculum erat bestiarum...) e lá gastou quanto tinha em edificações e plantações de todo o género.

Receoso da inveja dos homens e da possibilidade de ser prejudicado, tratou de conseguir carta de segurança de Sisenando, que lha deu pelo documento referido. Deste modo, quando Sisenando lhe fez a doação, já a grande obra de plantação e edificação estava pronta. Ribas Altas tinha surgido com a sua igreja daquela espessa floresta habitada por feras. Não creio que Fernando e Sisenando tivessem dado aquelas terras sem o encargo das cavalarias, que / 183 / sempre se impunha e até presumia, se não houvesse declaração contrária.

A este tempo também Ílhavo já existia e era terra de herdadores. A inquirição de 1222 não menciona ali nenhum reguengo ou foro. Em tempo do rei Fernando, um tal Recemundo filho de Maurele e Baselissa fez doação do que tinha, em vários lugares, ao mosteiro de Vacariça. São esses lugares: Nigreles − MarneI onde chamam Arravel − Ílhavo  − Tarouquela − Recardães − Carvalhaes − Antolini e Nespereira − Ferreirolos e Castro − Seixoselo.

O facto dos descendentes do velho Gonçalo Viegas terem quinhões em todas estas terras menos em Ílhavo levou-me a crer que este Recemundo talvez fosse um seu parente. Esta suspeita avolumou-se com os nomes que confirmaram o documento que parecem ser os mesmos descendentes de Gonçalo Viegas − Pelágio ou Pelaio Gonçalves, Ero Gonçalves e Sueiro Gonçalves.

Poderia continuar com mais algumas indagações sobre as terras que o Rol nos aponta como sujeitas a cavalarias, mas tal não é necessário visto o meu propósito ser apenas a justificação da natureza que lhes atribui e a determinação da época em que foram constituídas.

Da inquirição de Afonso II de 1222 e da de D. Dinis de 1282 tiram-se duas conclusões:

a) As cavalarias não se tinham transformado, como o fossado, num tributo em dinheiro ou géneros sobre a terra. Elas mantiveram a sua natureza primitiva de serviço pessoal com base na terra.

Ao Norte do Douro o fossado, isto é, a obrigação do serviço militar de cavalo, à medida que se tornou desnecessário pela maior distância do inimigo, foi-se convertendo num tributo de géneros ou dinheiro, que recaía sobre a propriedade do vilão cavaleiro. E este tributo foi-se pouco a pouco desligando da pessoa e aderindo à terra, e de tal maneira que a tradição da sua origem em muitos lugares desapareceu.

b) O serviço das cavalarias não foi certamente exigido durante os primeiros reinados, pois de outra maneira ficariam sem justificação as inquirições de Afonso III e D. Dinis.

Os inquiridores de D. Dinis foram especialmente incumbidos de inquirir sobre as cavalarias e sobre reguengos e foros «os quais sõn ascõdudos e aleados e mal parados». Que o fim principal foi indagar das cavalarias, mostra-o o trabalho feito em que se vê que essa foi a maior preocupação dos inquiridores. A inquirição de D. Dinis não é um trabalho isolado, antes deve considerar-se como uma continuação das inquirições de Afonso II e sobretudo de Afonso III. / 184 /

É conhecida a carta mandada por Afonso III, em 1265, ao Juiz, Tabelião e Rico Homem de Viseu, ordenando-lhes que inquirissem das terras foreiras ou reguengas que homens daquele julgado tivessem vendido, dado ou testado a Ordens, nobres ou outros homens, com perda dos foros ou direitos reais; das herdades daqueles que as abandonaram, para irem viver em terras de nobres ou das Ordens; e dos casais despovoados; e que fizessem reverter os primeiros ao cabeça do casal e os segundos e terceiros para serem dados a homens que pagassem o foro e direitos que pagavam em tempo de seu pai e avô.

E diz mais a carta:

«Item mando quod milites qui a tempore patris mei et auuy mei abuerunt aliquas meas hereditates de caualaria quod serviant eas de collecta et de caballo et de iugada sicut vilani et ordines similiter et dent unde mihi omnes alias meos foros et directos quos inde dederunt tempore patris mei et auuy mei ad dies assignatos de anno ad quos eos mihi dare debuerint.»

Esta última parte da carta de Afonso III, que HERCULANO diz ser certamente uma carta circular, deixa-nos ver com muita exactidão o que eram as cavalarias: Propriedades sujeitas a encargos vários em géneros ou dinheiro e ao serviço pessoal a cavalo; mostra-nos ainda que algumas destas propriedades tinham sido dadas no todo ou em parte a cavaleiros (fidalgos), igrejas e Ordens, isto é, a pessoas isentas, razão por que não pagavam nem foros, nem direitos, nem serviço pessoal a cavalo. E ordenava que os seus possuidores, quaisquer que fossem, pagassem pelas propriedades, como estas pagavam em tempo de seu pai e avô.

Nada tem que ver, portanto, estas cavalarias com os cavaleiros vilãos dos grémios municipais, porque estes tinham a sua obrigação criada e definida nos respectivos forais, e o critério era a riqueza pessoal e não esta ou aquela propriedade.

A inquirição de D. Dinis em 1282, em terras do Vouga, é, como disse, uma continuação deste trabalho. E o exame dos resultados mostra-nos como era necessária. Em Arcos as duas cavalarias estavam: uma com Santa Cruz e outra com a Sé de Coimbra. Em Oliveira do Bairro, uma com Fernão Martins e outra com o Bispo de Coimbra. Em Eixo estava uma com os filhos de D. Domingo, outra com um Conde, e outra com o mosteiro de Grijó; a de S. João de Loure estava com o bispo de Coimbra. Em Recardães andavam as terras de algumas divididas por igrejas e particulares.

E assim em quase todas. Quais seriam as providências / 185 / tomadas por D. Dinis em face das conclusões da Inquirição de 1282? Haverá alguma relação entre esta inquirição e o Rol das cavalarias? Confrontemos.


Como se vê, não há uma correspondência completa entre a inquirição e o Rol. Qual dos documentos dirá a verdade?

É possível que D. Dinis se não tenha conformado com o resultado da inquirição. O trabalho dos inquiridores foi incompleto e vago. Chega a levantar-se no espírito a suspeita de que eles tivessem interesse em contrariar este inquérito. O inquiridor Domingos Gonçalves era de Adofernando, uma quinta da freguesia de Valongo que ainda hoje mantém talvez o mesmo aspecto de outrora. É de supor que este homem conhecesse melhor a sua freguesia que as outras. Também, por outro lado, havendo ali povoados que vinham / 186 / de séculos, não era natural que neles a tradição se perdesse ou obliterasse mais que nas outras freguesias. Entretanto, foi em Valongo que os inquiridores só encontraram informações confusas, contraditórias, não tendo chegado a nenhuma conclusão segura. Vejamos:

«Pedro Martins, da Cadaveira, disse que duas leiras que lavram em Brunhido que são reguengo.»

«Domingos Pires de Valongo, disse que há em Arrancada uma cavalaria, que a tem D. Maria, viuva de Estevão Mendes da Costa; que ouviu dizer que o rei havia torto no Beco; que havia em Brunhido um casal del Rei.»

«Martin Durão de Arrancada disse que havia uma cavalaria em Brunhido e que tinha o Rei um casal ali.»

Tudo vago, tudo impreciso. Não há duas testemunhas que combinem. Uma diz que há uma cavalaria em Arrancada, outra diz que é Brunhido. Duas dizem que há em Brunhido um casal reguengo, outra que são duas leiras, e ainda outra que é só metade destas. A testemunha de Arrancada não fala na cavalaria deste povoado, mas fala da de Brunhido que é povoado vizinho.

Se compararmos esta inquirição com a de 1282 e com o Rol das cavalarias nota-se que a intenção de esconder a verdade é manifesta. Sessenta anos antes, em 1222, disseram os inquiridores que Brunhido era Reguengo e dele eram prestameiros os filhos de Fernando Brunedo. Só se referiram os inquiridores de 1282, vagamente, a duas cavalarias − uma em Arrancada, outra em Brunhido − O Rol dá-nos 5, sendo 2 em Brunhido, 2 em Lanheses, e uma em Cristelo. E todas identificadas. Como é que os inquiridores, poucos anos antes, em 1282, que eram «os mays ansiães que nós achamos» não conheciam nem nunca ouviram falar nestas cavalarias? O mesmo sucedeu noutras freguesias. Sempre incompletos. Em nenhuma eles definiram as obrigações dos detentores das terras de cavalaria. E, todavia, eles encontraram no caminho quem lhes podia dar informações seguras e precisas de toda a terra de Vouga: foi João Domingues, de Casal de Álvaro, que informou haver em todo o termo de Vouga 62 cavalarias e meia; e Martin Pires de Oronhe, antigo Juiz do julgado extinto de Ois, que indicou com exactidão todas as cavalarias deste julgado. Ora se em Ois, no antigo julgado, que era um desmembramento do de Vouga, havia conhecimento perfeito das cavalarias, como é que neste as ignoravam, quando é certo que não havia muito tempo que o porteiro dali as andou reclamando, como disseram os de Ílhavo e Verdemilho? «Gonçalo Pais disse que viu demandar a Pedro Sem Vinho duas cavalarias em / 187 / Ílhavo»; «Domingos Martins disse que viu o Porteiro de Vouga demandar esta cavalaria (Verdemilho)».

Foram estas e outras razões que me levaram a dizer que D. Dinis não deve ter ficado contente com este inquérito, e daí a necessidade de outros. E estes seguramente se fizeram em terras de Alquerubim, Recardães, Águeda e outras. (Rol das Cavalarias do Vouga − ROCHA MADAHlL, pág. 10).

O Rol das Cavalarias do Vouga deve representar um resumo e parte da sentença final do longo processo da inquirição da terra do Vouga. Desta maneira o Rol será posterior à inquirição.

O Rol das Cavalarias traz a data de 1328 a tinta e letra diferente do texto. ROCHA MADAHIL hesita se se trata da era de Cristo ou de César. Sendo anos de Cristo, é o ano de 1290.

Em 1540, D. João III julgou um processo rumoroso entre a Sé de Coimbra e o seu Deão. Em 1194 Afonso Henriques tinha doado à Sé de Coimbra − Mata − Tamengos e Aguim. Em 1238, D. Sancho II coutou-lhe estas mesmas terras e acrescentou-lhes Tavonde. D. Manuel deu foral à Vila Nova de Monçarros, em cujo termo se compreendem aquelas terras. Fernão de Pina, que lavrou aquele foral, em vez de reconhecer o direito das terras à Sé, reconheceu-o somente ao Deão. D. João III julgou contra o Deão e entre as razões da sentença diz:

«E porque a ordenação no segundo livro titolo corenta dizia que as Igrejas usassem somente daquelas coisas que lhes foram concedidas e outorgadas pelas inquirições que se tiraram por mandado de El-rei D. Dinis na era de Cesar de 1328.»

Houve assim na era de 1328, ano de 1290 − uma inquirição em que foram definidos os direitos do rei − Não seria o julgamento final a que me referi e de que saiu o Rol das Cavalarias? Assim o creio. Embora o Rol das Cavalarias, definindo os encargos delas, se referira só ao serviço militar a cavalo e à anúduva, parece fora de dúvida de que sobre as propriedades chamadas de cavalaria pesavam outros encargos. É o que se deduz da provisão referida de 1265 e de outros documentos. Quando os inquiridores de 1282 bateram às portas de Aveiro a perguntar pelas propriedades de Cavalaria, ninguém quis jurar, reunindo-se o conselho para lhes dar a resposta de que o rei só tinha ali uma colheita, sendo todos os outros direitos de Pedreanes. E também os de Esgueira responderam que o rei não recebia alí nenhum fôro das Cavalarias, pois o recebia o Convento de Lorvão. Em tempo de D. Dinis, mantinha-se o serviço militar, mas / 188 / a anúduva tinha já sido convertida em géneros ou dinheiro, ao menos nos anos em que não era necessária.

Eu creio que houve em terras do Vouga muitas outras cavalarias além das mencionadas no Rol. Perderam-se, umas por abusos dos nobres e do clero, outras por honras e coutos concedidos a fidalgos, Igrejas e Ordens, pelos reis. Aguieira, Barrô, Aguada de Cima e de Baixo, Perrães, Aguim e muitas outras terras foram coutadas à Sé de Coimbra e a Mosteiros, de modo que as propriedades de Cavalaria, que porventura ali houvesse, ficaram por esse facto isentas. No princípio do século XII − diz GAMA BARROS na Hist. da Ad. Pub. em Port., voI. II, pág. 434) − «era doutrina já estabelecida que a concessão da carta de couto envolvia em si mesma a isenção de encargos certos, porque, segundo notámos a outro propósito, coutar uma terra, dizia então El-rei D. Dinis, era escusar os seus moradores do serviço militar (de haste e de fossado), dos outros serviços pessoais e de tributos pecuniários ou em géneros, directos ou indirectos (de foro), e, finalmente, das multas aplicadas ao fisco (e de toda a peita)».

AUGUSTO SOARES DE SOUSA BAPTISTA

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