Ercília Pinto, A Bairrada refúgio de poetas, Vol. XVI, pp. 150-153.

A BAIRRADA,

REFÚGIO DE POETAS

 

ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO

EM AGUIM, VALE DA MÓ,

CASTANHEIRA DO VOUGA E TORREIRA

EM 30 de Março de 1823 caía em Portugal a Constituição de 1820. O infante D. Miguel, apoiado pelas ordens religiosas, a maior parte do clero secular e alta nobreza, implantava, novamente, em Portugal a monarquia absoluta.

Em Coimbra, onde estava instalada em paços de reis absolutos a velha Universidade, havia, pelo menos entre os lentes, grande contentamento pelo facto consumado.

Entre esses lentes da realenga e aristocrática Universidade, contava-se o Doutor José de Castilho, pai do então jovem poeta ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO, também jovem entusiasta das ideias liberais, bem como seus irmãos, todos académicos. Deste modo, pai e filhos encontravam-se separados em ideias políticas. Apesar disso, o Reitor da Universidade insistia com o Doutor José de Castilho para que obrigasse os filhos a irem recitar versos seus nos outeiros com que a Universidade festejava a restauração do regime absoluto.

Mas os filhos do Dr. José de Castilho, embora obedientes em tudo ao pai, recusavam-se a isso, inabaláveis e firmes.

Foi então que o moço poeta ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO pediu ao pai que o deixasse sair de Coimbra naqueles dias de festas universitárias e lhe consentisse passar esses dias na quinta do Tanque, em Aguim, para salvar aparências. E, de facto, o jovem poeta lá partia, cheio de desgosto, para a sua quinta da Bairrada, depois de ter recebido, muito a custo, a respectiva licença paterna. / 151 /

Todavia, esta dissidência doméstica, esta rebelião dos filhos não ficava bem ao brio dum pai absolutista como era o Doutor José de Castilho. E então incumbe o intruso da casa e amigo comum de pai e filhos, António Joaquim de Aguiar, de ir a Aguim convencer o filho António a regressar a Coimbra. E o notável poeta lá voltou, na verdade, com o seu amigo, para a cidade universitária, pois a sua posição de filho aconselhava-o a ir, o que fez sem quebra de seus sentimentos liberais que com tanta paixão defendia.

Nos três outeiros que se realizaram na Universidade, nessa altura, em obediência ao pai, lá recitou três poesias da sua autoria, uma em cada noite. Mas qual não fora o espanto de todos, quando, na última noite, o jovem recitava um soneto intitulado «Todos Livres», em que, com muitas reticências e meias palavras, celebrava a Liberdade, numa festa genuinamente absolutista. Por aqui se vê que, neste momento agitado em que começaram em todo o país as lutas liberais, a briosa mocidade académica de Coimbra, de natureza irrequieta, ia na vanguarda, na defesa do pendão da Liberdade.

Daí as perseguições sofridas pela maior parte da academia de Coimbra; entre os estudantes perseguidos, contavam-se os irmãos Castilhos.

Foi então que ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO, desgostoso por ver o absolutismo definitivamente a reviver, deixou de se interessar pela política e passou a refugiar-se na Bairrada, onde estudava e fazia versos. É deste tempo a sua ode à Fonte Fria do Buçaco, onde o poeta cego deixava transparecer a indiferença que lhe ia na alma pelas coisas públicas.

Assim desabafava:

«Castas sombras, pacífico retiro
Tão velho como os montes!
.   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .  .
Aqui só reina a paz, viverei com ela
As austeras virtudes;
É destes cumes solitários, tristes,
Que o mundo se despreza...


A briosa de Coimbra, cheia de tristeza pela desilusão sofrida, tira a capa e batina. E o poeta cego, refugiado na sua quinta de Aguim, inspirado no bucolismo da paisagem bairradina, vai escrevendo As Flores, que se supõe terem sido compostas num mirante retirado da quinta, onde o poeta passou então, sozinho, as melhores horas da sua inspiração profundamente lírica.

E deste modo, ora na Bairrada, na quinta de Aguim, ora em Coimbra, no palacete de Almedina, conhecido pela casa dos Castilhos e onde se supõe que o poeta escrevera As Cartas de Eco a Narciso, fora ANTÓNIO FELICIANO DE / 152 / CASTILHO vivendo, até que seu irmão Augusto, nomeado prior de Castanheira do Vouga, o levara consigo para esse presbitério da Montanha no bispado de Aveiro, onde haviam de viver juntos para a vida e para a morte.

Assim se começou a separar a família dos Castilhos.

Enquanto o pai ficava em Coimbra, no seu mister de lente, os dois filhos, António e Augusto, partiam em direcção às faldas agrestes da serra do Caramulo. E os dois irmãos inseparáveis, que até ali tinham vivido na suavidade da paisagem coimbrã e bairradina, lá partiam para um eremitério entre serras e tojos.

Na Castanheira do Vouga viveram os dois irmãos Castilhos sete anos: um a pastorear numa paróquia, outro a poetar, apesar de cego.

E lá pelas margens do Alfusqueiro, do Agadão, e do Águeda, foram, o Prior e o Poeta, fazendo as suas romagens de Caridade e Poesia, ao mesmo tempo que iam fazendo também um apostolado intenso dos ideais liberais.

Mas porque o eremitério da Castanheira, por vezes, dava guarida a outros liberais perseguidos, aquela residência paroquial era suspeita, a ponto de, muitas vezes, os dois irmãos terem de fugir de casa para se irem esconder nos montes onde passavam noites refugiados. O que lhes valia, muitas vezes, era serem geralmente estimados pelos paroquianos e terem a protecção do prelado de Aveiro, D. Manuel Pacheco de Resende, que, sob a desconfiança do governo absoluto, auxiliava com pão quotidiano os liberais perseguidos e martirizados nas prisões.

Este prelado de Aveiro era lente de Teologia e fora vice-reitor da Universidade de Coimbra.

Uma ocasião, para fortalecimento do poeta cego, que havia sofrido uma grave doença, foram os dois irmãos para a praia da Torreira passar uns dias. Mas daí a pouco, eram avisados, por amigos, que fugissem, pois havia ordem para os ir ali prender.

Outra vez, indo o Prior, a conselho do médico, passar uma temporada a Vale da Mó, lá apareceram uns voluntários de Trancoso à busca dos dois irmãos «malhados» para os prender.

− Há por aí «malhados»? − gritavam, farejando às portas de todos os casebres daquele lugarejo das faldas do Buçaco, que, nesse tempo, o mundo desconhecia. E porque descobrissem os dois irmãos lá numa casa de Vale da Mó, prenderam-nos, ficando algum tempo detidos lá, num barracão, até que aparece o capitão-mór de Anadia, Joaquim Afonso, que, apesar de só conhecer, por tradição, os irmãos Castilhos, obtém do comandante da escolta a libertação dos presos sob sua inteira responsabilidade. / 153 /

Nessa altura, valeu aos dois irmãos serem filhos dum absolutista...

De novo livres, o Prior e o Poeta voltam para a Castanheira e aí resolvem, então, organizar uma guerrilha para irem em auxílio dos liberais do Porto. E pela persuasão e pela propaganda, lá conseguiram alistar camponeses e constituir a guerrilha, da qual fazia parte também o bacharel Agostinho de Oliveira Coelho, de Aguada de Cima.

Mas, sabendo-se em Aveiro que os irmãos Castilhos tinham organizado uma guerrilha para irem em auxílio dos liberais do Porto, o juiz de fora de Aveiro, como delegado da Intendência, abriu uma devassa terrível contra o prior da Castanheira, seu irmão António, e muitos liberais dos arredores.

Nesta altura achava-se ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO em Coimbra, onde tivera de ir disfarçado. Mas, breve volta à Castanheira e aí resolve com a família sair dali, visto a residência paroquial já não oferecer segurança. E os irmãos Castilhos, ao verem que todos os liberais entusiastas se dirigiam para o Porto, resolvem segui-los para a terra firme da Liberdade.

Assim, depois de mandarem para Aguim a mãe sexagenária, que passara a viver com eles mais a irmã, depois que o pai faleceu, para a velhinha se acolher à sombra de Joaquim Barreto, que não era liberal, o prior, o Poeta e a irmã, D. Maria Romana Castilho, dirigiram-se disfarçados para o Porto.

O prior deixara encabelar a coroa e vestira-se de serrano, marchante de gado, capote de camelão, chapéu desabado, bota alta e cinta vermelha; o poeta cego vestira-se de camponês com óculos azuis e um barrete de lã preta; a irmã ia de tricana, capoteira, socos, saia rodada e chapéu de abas grandes.

E desta maneira, mascarados, deixavam para sempre Castanheira do Vouga o Prior e o Poeta, depois de ali terem vivido desde 1826 até 1834.

ERCÍLIA PINTO

Página anterior

Índice

Página seguinte