Foi o grande geólogo PAUL CHOFFAT quem assinalou, na Carta Geológica de 1899 e em várias referências à orla sedimentar ocidental, a existência, entre Condeixa
e
Aveiro, de uns penedos que classificou de erráticos,
certamente por os ter considerado absolutamente estranhos aos terrenos superficiais em que assentam e às formações geológicas
infrajacentes, e por nada conhecer que o autorizasse a tomá-los como
residuais de qualquer camada desaparecida.
A designação, até aí aplicada, apenas, a casos de morfologia glaciar,
foi adoptada pelos geógrafos e geólogos que posteriormente se ocuparam
dos aspectos geológicos da região, ou da sua paleogeografia, mas o
problema da génese, ou seja o problema da origem e da viagem desses
blocos, não foi nunca objecto de estudo sistemático e completo, nem se
encontra ainda resolvido.
A falta desse estudo tem dado causa, mesmo, na respectiva literatura, a
uma certa confusão entre os elementos mais
volumosos das calhoeiras, derivados de rochas quartzozas e
quartzíticas e que por vezes se encontram isolados ou associados nos
depósitos arenáceos ou à superfície do solo, e os verdadeiros penedos
erráticos que são de volume muito maior, diferente configuração e
diversa filiação genética, embora o elemento dominante no agregado das
suas partículas seja também o silicioso.
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4 /
Classificando-os de erráticos, CHOFFAT ajuizou, sem
dúvida, do processo glacial ou flúvio-glacial da sua migração e, mencionando-os em vários trabalhos posteriores, nunca
modificou a designação aplicada, embora nada nos
dissesse sobre a origem que lhes atribuía.
Em «Le Portugal au Point de Vue Agricole», falou,
porém, claramente no seu transporte: − «o transporte dos grandes
blocos de arcose dispersos entre Condeixa e
Aveiro», − o que implica a ideia de erradio dos mesmos
blocos.
Em 1929, o conhecido professor alemão, com parentes
em Portugal, dr. HERMAN LAUTENSACH, a quem se devem
valiosíssimos trabalhos científicos sobre questões de geografia e geologia do
nosso País, publicou um «Estudo dos
Glaciares da Serra da Estrela», originariamente dedicado
ao grande geólogo e glaciólogo ALBRECHT PENCK e que, traduzido pelo professor sr. Dr. CUSTÓDIO DE MORAIS, foi inserto
no n.º 6 das Memórias e Notícias do Museu Mineralógico e Geológico da Universidade de Coimbra, dirigido
pelo prestigioso mestre da moderna geografia portuguesa − sr. Dr. ANSELMO FERRAZ DE CARVALHO.
LAUTENSACH, nessa notável monografia, ao contrariar a
hipótese posta por NERY DELGADO, de uma expansão glaciar
nos vales do Ceira e do Mondego, referiu-se ao problema
dos blocos erráticos da Beira-Mar, mas, como o fez incidentalmente, não se deteve no seu estudo, nem se propôs
resolvê-lo.
Transcrevo a passagem da sua dissertação a tal respeito,
pois convém conhecê-la na íntegra:
«Choffat tinha duvidas na apreciação dos blocos gigantescos, de quartzito e arcoses,
que aparecem dispersos entre
o Vouga e o Mondego, ou antes entre Aveiro e Condeixa,
sobre a superfície de erosão com cotas que raras vezes
excedem 100 metros, a qual está coberta pelo Plioceno.
Num livro facilmente acessível (refere-se ao volume
jntitulado «Le Portugal au Point de Vue. agricole»), apresenta num desenho um grupo destes e chama-lhes blocos
erráticos, enquanto que no texto também admite um transporte flúvio-glacial: «C'est peut-être
à la même époque qu'il faut atribuer le transport de grands blocs d'arkose
dispersés entre Condeixa e Aveiro».
Pesquisei alguns mas não os encontrei.
Aparecendo em regiões arenosas, desprovidas de materiais de
construção, eles constituíram para os seus habitantes dádivas da natureza, sendo aproveitados como
pedreiras.
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Estes blocos são certamente de origem glacial ou,
flúvio-glacial.
A cobertura de areias e de arenitos de fraca consistência que se estende sobre esta região (segundo os
geólogos
portugueses) foi considerada do Pliocénio sobretudo no seu extremo S.,
perto de Leiria, porque contém linhites
(Marrazes) e margas (Carvide) com fósseis do Pliocénio.
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6 /
Não se compreende pois, como forças
quaternárias teriam transportado tão grandes blocos, sem deixarem na vizinhança
outros vestígios da
sua acção.
A existência de blocos de quartzito de Aveiro a Condeixa está em
relação genética com uma espessa camada
de blocos que se encontra imediatamente na base NW da Meseta
Ibérica, a cerca de 35 quilómetros a E da linha Aveiro-Condeixa, e em
altitudes que vão de 200 a 600 metros, próximo de Góis e Arganil.»
Façamos desde já reserva quanto aos blocos de quartzite que me parece
não existirem na mesopotâmia da Beira-Mar, e pensemos, somente, nos blocos de grés ou arenito que são
os que se vêem entre Aveiro e Cantanhede.
O ilustre professor germânico não encontrou
os blocos marcados na
Carta Geológica certamente porque se preocupou com o volume
excepcional que era de supor eles tivessem, para serem anotados nessa
Carta; mas a verdade é que, ao sul de Aveiro, os pequenos e médios
blocos de grés contam-se por centenas e esses pertencem, sem dúvida
alguma, à série dos autênticos penedos erráticos à que CHOFFAT se
referiu e são, em qualquer caso, elementos inteiramente anómalos no ambiente geológico em que se encontram.
Em estudo recentemente publicado, o sr. Dr. GASPAR
SOARES DE CARVALHO, assistente da Universidade de Coimbra,
brilhante colaborador deste Arquvo e incansável observador da petrografia e da
tectónlca do distrito de Aveiro e de muitos outros aspectos geológicos do baixo Vouga, dando notícia
de
grande quantidade de blocos desta natureza que se lhe depararam entre
os paralelos de Arazede e Condeixa-a-Nova, atribuiu-lhes uma génese
fluvial e pelo que observou num corte
da estrada Ribeira de Frades-Vila Pouca, concluiu tratar-se de
depósitos fluviais pliocénicos. Da mesma forma pensara já em 1948.
Em 1940, o professor sr. Dr. CARRINGTON DA COSTA, na notabilíssima
memória que apresentou ao 1.º Congresso do Mundo Português sobre a
«Evolução do Meio Geográfico
na Pré-história de Portugal» assinalou-lhes uma idade vila-franquiana.
Por seu turno o geólogo sr.
Dr. GEORGES ZBYSZEWSKI e o professor sr.
Dr. ORLANDO RIBEIRO, sugeriram o carácter torrencial dos cursos de água
que os teriam transportado.
*
* *
O caso dos curiosos blocos prendera já a minha atenção nos trabalhos
de campo para os apontamentos sobre as «Origens da Ria de Aveiro».
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Nesse volume, publicado em 1923, estabeleci distinção
entre «as miríades de quartzites arredondadas, achatadas, polidas, sub-angulosas, entre as quais surge, de onde em onde, um calhau de
granito», e os «blocos erráticos do
pequeno Planalto de Mamodeiro, já assinalados por CHOFFAT, bem como os das terras a poente de Vagos, que eu
constatei em excursões por ali feitas».
Quanto aos pequenos calhaus, sem dúvida oriundos dos
dominios da Meseta, pensei na acção transportadora das
«águas caudalosas, torrenciais e violentas que no Quaternário se precipitaram, vindas do maciço antigo, sobre
a Planura do fundo cretácico emerso».
Em vez de Quaternário, diria hoje Plio-Pleistoceno,
mas deve notar-se que a referida monografia data de 1923
e que a noção do Quaternário da região era, ao tempo, incipiente, desprovida de estudos
locais e inusitada pelos escritores.
Quanto aos blocos erráticos, ousei afirmar que «eles
foram deixados sobre os terrenos Pliocénicos ou post-pliocénicos, quaternários mesmo já, por uma invasão
glaciária que intervalou dois ciclos de inundação torrencial».
Devo dizer que durante alguns anos depois da publicação desses meus apontamentos sobre as Origens da Ria de
Aveiro, insisti, em vários escritos, pelo reconhecimento de
acções quaternárias que tivessem modelado as formas pliocénicas e dado, em muitos pontos, o arranjo presente aos
materiais terciários.
A expressão «invasão
glaciária» é que não foi inteiramente feliz, nem correspondeu, tão pouco, à imagem hipotética dos fenómenos que eu tinha em mente e que, talvez
não longe da verdade, julgava responsáveis pelo transporte
a distância de pedras de tal tamanho e conformidade.
Depois de 1923, e sobretudo na última
década, vários,
valiosos e muito esclarecedores trabalhos se publicaram em Portugal
sobre o Quaternário, quebrando, o ponto morto em
que o haviam deixado os gloriosos mestres do século XIX.
Estes últimos dez anos foram, realmente, de grande
proveito científico no âmbito da investigação sobre a paleogeografia não só do Pleistoceno, mas do Plio-Pleistoceno nacionais.
Novas ideias e modernos critérios abriram horizontes
inopinados ao estudo da geologia da nossa orla sedimentar.
Esta renovação dos estudos do Antropozoico e da morfologia e fenomenologia do Plio-Pleistoceno, altamente profícua para a interpretação
das formas holocénicas e dos aspectos presentes, permite-nos, também, segundo penso,
novas vistas sobre o problema constante deste artigo. Ela
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9 /
será objecto de mais larga referência minha, na parte tocante à Beira-Vouga-Litoral,
em outro trabalho que destino a próxima publicidade.
'O que, agora, desejo afirmar, é que a reconsideração
sobre as acções
quaternárias que actuaram na mesopotâmia
aveirense, em especial, e em todo o compartimento geográfico da
Beira-Mar, em geral, me levou a pensar de novo, ultimamente, no problema
dos blocos erráticos do sul de Aveiro e a fazer uma tentativa para o
resolver.
No presente artigo venho rectificar as minhas palavras de 1923,
explicando melhor a hipótese, desenvolvendo-a e integrando-a, tanto
quanto me é possível, no quadro geral dos conhecimentos ultimamente
adquiridos pela geologia do nosso Plio-Pleistoceno.
*
* *
Das pesquisas a que procedi neste novo ciclo de investigações, resultou
a verificação da existência de muitas dezenas de exemplares de blocos
anómalos, desde os arredores de Aveiro até às proximidades de
Cantanhede.
Caso curioso: com excepção de um pequeno grupo em Salreu, não têm sido
assinalados blocos com as características externas dos blocos erráticos
que se vêem na mesopotâmia ocidental dentre Cértima e mar, para oriente
da linha Cértima-Baixo-Vouga, ao norte do paralelo da Mealhada,
parecendo que a sua dispersão se fez no sentido de
noroeste-oeste-sudoeste, a partir de um centro genético que seria o
das proximidades do Buçaco, com imobilização a distâncias
de dezenas de quilómetros.
Deve notar-se, também, que a altitude a que se encontram, segundo o
meu conhecimento, não excede os 70 metros, ao norte de Cantanhede.
Muitas vezes passara eu por esses blocos arrumados ao longo das
estradas e caminhos das aldeias, sem a preocupação de os identificar e,
assim, se me tornavam despercebidos, quando é certo que eles se topam,
servindo de marcos das
propriedades e de defesa das 'paredes e ângulos dos muros e servidões
contra o embate dos carros e os abusos dos vizinhos e transeuntes.
Alguns, estacionavam perto da minha própria residência, sem que, durante
muito tempo, eu os considerasse no seu valor de testemunhas, que são,
de espantosos fenómenos físicos, quase que inacreditáveis, ocorridos à
face da terra da região, em tempos anteriores a toda a história ou
existência humanas, fenómenos esses a que se deve, em grande parte, a
fisionomia geográfica, impressionantemente planiforme, que hoje
caracteriza esta zona vouguense do litoral.
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* *
Nos princípios de 1949, fui com ROCHA MADAHIL, ilustre director do
Arquivo do Distrito de Aveiro, em visita de
estudo, à solitária Capela da Senhora de Vagos, de afamado
nome no calendário das grandes romarias.
E enquanto o meu distinto amigo e companheiro se inclinava a ler as inscrições tumulares da pitoresca ermida, eu
lançava os olhos para uma série de pedregulhos informes
que ali em frente e nos campos vizinhos me recordavam as pedras soltas
que em 1923 encontrara ao oeste da vila e no caminho das dunas e que já
então, sob o ensinamento de CHOFFAT, classifiquei de penedos erráticos.
O erudito ROCHA MADAHIL, já conhecedor do problema, concordou
inteiramente comigo na identificação dos pedregulhos, bem visíveis e salientes ao redor do local e cuja presença era inexplicável à flor dum solo arenoso, horizontal e planáltico,
sem intromissão de formações rochosas nativas
e a cuja parentela geológica são absolutamente estranhos e,
de tal forma, que ninguém conhece ou explica a sua origem.
Passados dias voltei ali para os fotografar. As fortes
marteladas que apliquei às saliências de alguns, para lhes tirar
amostras, logo me permitiram verificar a sua constituição e, por esta, determinar a sua bem provável procedência.
Os pedregulhos, muitos dos quais haviam sido, há
pouco
partidos para deles fazerem pequenos marcos, eram blocos
de grés do Buçaco e alguns deles talvez do conglomerado
mais grosseiro que o acompanha na assentada do alto dessa serra.
Da mesma rocha são todos os outros que tenho examinado, depois disso, desde Verdemilho, ao norte, até proximidades
de Cantanhede, ao sul.
Na Carta Geológica de 1899, CHOFFAT e DELGADO apenas
localizaram ao norte do Mondego, ou quatro exemplares ou
quatro grupos de exemplares, sendo um deles a leste de Covôes e perto de
Ceadouro, e três ao sul de Cantanhede.
Tratar-se-ia, nessa notação, de
indivíduos, isto é, de
penedos únicos, de excepcional volume e que pelo seu volume merecessem
anotação, e que sofreram, depois, a
sorte entrevista por LAUTENSACH, sorte idêntica à dos esteios
dos dólmens desmantelados pelos vizinhos cobiçosos de grandes lajes, ou tratar-se-ia de grupos de penedos?
Procurando o penedo dos Covôes, não consegui encontrá-lo, nem haver dele
qualquer notícia.
Mas o que encontrei foram dezenas de blocos, alguns de
considerável tamanho, numa impressionante densidade de
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distribuição no meio de aldeias e ao longo das estradas e caminhos, à volta do ponto indicado.
Em face da sua multiplicidade, numa superfície arenácea,
de subsolo argiloso, e em plena Gândara, onde os únicos afloramentos
verdadeiramente rochosos, muito raros, são dos calcários mesozóicos, fui
forçado a conjecturar que o asterisco
/
12 / da notação da Carta, Geológica se referia, não a
um
único penedo como se tem suposto, mas a um conjunto de blocos mais ou
menos próximos uns dos outros.
E reflectindo um pouco, temos de convir em que era
impraticável fazer figurar numa carta de escala de 1:500.000
todos os exemplares de pedras anómalas quem em número de
muitas dezenas, se nos deparam no centro do lugar de Covões e no seu
arredor.
É de aceitar, portanto, que a Carta Geológica tenha
empregado um único sinal convencional para designar um
conjunto e não um simples indivíduo.
A gravura inserta por CHOFFAT no
Aperçu du Portugal au Point de Vue Agricole, de 1900, não representa um
só penedo, mas um grupo de blocos de diferentes dimensões
e, no entanto, ali em Formoselha, na margem sul do Mondego, a Carta empregou igual notação, ou sinal de um só asterisco, que
empregou ao lado de Covões e próximo do
afloramento típico daquela formação que CHOFFAT baptizou
de Grés do Ceadouro na sua magistral monografia sobre o Cretácico.
Na Serra da Estrela, a mesma carta geológica assinala
com dois asteriscos os locais onde se encontram numerosos
blocos erráticos de origem glaciar.
* *
Os penedos erráticos do planalto ribeirinho da
Senhora
de Vagos, bem como todos os que examinei, são de Grés do Buçaco(1).
Ocorre esclarecer o que se entende por Grés do Buçaco
na nossa literatura geológica.
É ainda PAUL CHOFFAT quem nos elucida neste trecho
que, da referida monografia, me permito traduzir:
«Quando examinamos a nova carta geológica de Portugal, vemos
que o limite entre as áreas paleozóica e mesozóica é formada por uma linha quase recta entre o Vouga
e Tomar. A Este desta linha, pelas alturas de Coimbra, encontra-se um
grande afloramento de Senoniano em parte
recoberto pelo Quaternário, estendendo-se desde Miranda
do Corvo até além de Arganil.
Este afloramento prolonga-se por uma delgada banda
interrompida que passa a Leste de Poiares e que se dirige
para N. O. até ao cimo do Buçaco.
/ 13 /
O conhecimento da idade cretácica deste
afloramento passou por uma série de fases que é interessante seguir e
que vou expor rapidamente.
O ponto mais em evidência
foi sempre o Buçaco, por
isso eu conservei ao conjunto destes grés a designação de Grés do Buçaco, empregada para a minuta da carta geológica de Portugal
que figurou em 1888 no Congresso geológico de Londres e na pequena
carta que acompanhava a notícia de WENCESLAU DE LIMA sobre as
camadas permo-carbónicas do Buçaco.
Na sua grande espessura, este cretácico é formado por
arenitos caolínicos, brancos ou rosados, envolvendo geralmente calhaus de quartzites
negras ou brancas.
Sobre as alturas do Buçaco e sobre as de S. Pedro,
perto da Ponte da Mucela o cimento é duro, a rocha tem
uma fractura vitrosa, quase incolor, amarelada ou vermelha, geralmente
opaca e branca como a porcelana. Não se pode porém considerá-la como porcelanite produzida
por uma acção metamórfica, porque repousa, em bancos regulares, sobre
camadas de arenitos caoliníferos.
De resto, já mencionei grés análogo no Cretácico de
Torres Vedras.»
CHOFFAT transcreve depois a descrição dada por NERY DELGADO em 1895,
quando supôs a existência de vestígios de antigos glaciares no vale do
Mondego, e que é a seguinte:
«Este grés tem um aspecto caolínico; é ordinariamente branco com
manchas vermelho-violeta e algumas vezes também, com raios
vermelhos, cor devida ao óxido férrico anidro. Em alguns pontos ele é
cinzento, ou cinzento esverdeado claro, até mesmo zonado de violeta e avermelhado;
encerra sempre grande abundância de detritos feldspáticos e mesmo muitos
cristais rolados de ortose que põem em evidência a sua origem granítica.
Tem uma estratificação
pouco distinta; é, ordinariamente, grosseiro e friável em grandes espessuras, sendo
composto de grãos irregulares de quartzo, cimentados por argila
feldspática; contém acessoriamente alguns leitos argilosos em que os
fósseis vegetais se mostram de preferência, e outros bancos, pelo contrário,
muito duros em
que o cimento se encontra porcelanizado, ligando intimamente os grãos
de quartzo, de sorte que a rocha apresenta
fractura vitrosa.
Conhecemos o grés assim
caracterizado não somente no cume da serra do Buçaco e sobre as vertentes da
serra da Mucela, mas também sobre muitos
outros pontos, principalmente na colina rochosa em que está situada a capela
/
14 / da Senhora da
Candosa, na margem esquerda d rio Ceira. Encontramo-lo também perto do Olho-Marinho, sobre a estrada de Coimbra
a Góis, onde é largamente explorado como pedra para mós de moinho e
para cantarias de portas e janelas.»
Segundo comunicação verbal do Sr. Dr. CARLOS TEIXEIRA, o hoje ilustre catedrático da Universidade de Lisboa, constatou
uma camada gresosa desta natureza, fortemente consolidada, entre Coimbra e Condeixa.
Outro retalho testemunha que idêntica formação foi pelo
mesmo distinto geólogo descoberto na margem direita do
Mondego por alturas de Montemor-o-Velho.
Quem tenha examinado na cumeada do Buçaco a formação destes grés e tenha lido em CHOFFAT e DELGADO a definição acima transcrita, não se engana ao examinar a fractura dum bloco dessa
rocha em qualquer parte em que o encontre.
Seja qual for o seu campo genético(2), os
penedos erráticos da
mesopotâmia aveírense e planalto de Covões, de Cantanhede, correspondem perfeitamente às características apontadas e não
devem nem podem confundir-se com quaisquer calhaus de quartzo ou quartzite, por vezes com volume maior
do que o da cabeça humana, que, de longe em longe, se encontram à superfície, ou nas cascalheiras, ou disseminados
nas areias do subsolo, nem com algumas «pedras» das formações jurássicas da Bairrada e da Gândara, ou do grés vermelho do pseudo-triássico das margens do Vouga e do
Cértima, que, a miúdo, encontramos nas proximidades das
formações originárias e cuja deslocação, a pequena lonjura, é quase sempre devida à acção do homem.
/ 15 /
*
* *
Trata-se, porém, de verdadeiros blocos erráticos, dispersos por causas glaciais ou flúvio-glaciais, como eu supus
em 1923 e como LAUTENSACH admitiu, ou trata-se de restos de depósitos
locais?
Continuo a supor que se trata de blocos anómalos e erráticos e não de fragmentos de uma camada autóctone de que
não existem vestígios a norte do maciço de Cantanhede e cujos documentos deviam encontrar-se por baixo da camada
plio-pleistocénica, em níveis do Cretácio Superior a cujas
formações se ligam os Grés do Buçaco.
Ora o Cretácio Superior é subjacente e em nenhum dos
seus afloramentos da Mesopotâmia aveirense se encontrou, até hoje, grés
assim consolidado.
Admitindo, pois, que tenha sido a zona, profundamente
alterada, de Buçaco-Cantanhede-Condeixa o centro da dispersão destes blocos emigrados, temos de verificar a hipótese
da sua migração e do seu depósito.
Como foi possível a deslocação destes blocos e o seu
depósito a 25, 30, 40 quilómetros da sua presumível origem
e sobre uma planície de fraquíssima inclinação, separada da
zona genética, da cumeada e dos pendores onde ainda hoje repousam as
camadas gresosas, por um largo fosso como é
o do vale do Cértima que nasce pelas alturas do Buçaco e da
Pampilhosa do Botão e se continua até à Ria pelo vale do
Vouga inferior, seu esteiro e estuário?
Esta pergunta congloba vários problemas, e bem dificultosos, no estado actual dos nossos conhecimentos, sobre a
evolução da morfologia geográfica de toda a Beira-Litoral
durante o Plio-Pleistoceno. E digo de toda a Beira-Litoral,
porque a fácies do sul do Mondego a Leiria é idêntica à do
distrito sedimentar ao norte do mesmo rio, restando, apenas,
averiguar se teria havido sementeira de blocos de erradio, para o sul e
para grande distância da margem esquerda,
/
16 /
como houve para o norte até à Ria de Aveiro e como
houve até Condeixa-a-Nova, conforme nos acaba de noticiar
o sr. Dr. SOARES DE CARVALHO em Les Dépôts des Terrasses
et la Paléogéographie du Pliocène dans La Bordure Méso-Cenozoïque Occidentale du Portugal (entre le Vouga et le
Mondego), Coimbra, 1949.
Afastada por completo a hipótese, aliás
nunca posta, de
uma intervenção humana, a resolução do problema consiste
essencialmente na determinação do mecanismo do transporte pelos agentes naturais, o que implica, necessariamente, a
reconstituição de um cenário geográfico desaparecido, em
que as águas ocupariam áreas muito diversas da actualidade
e oscilariam em mais elevados níveis, e em que o clima,
para a hipótese que apresento, teria sofrido, neste ocidente
da Europa, um abaixamento de temperatura que provocaria
a congelação da superfície do mar, semelhante ao que se dá
nos invernos dos países europeus de mais alta latitude.
Existiram, e quando existiram, no nosso litoral essas
condições de clima e esses níveis marinhos?
Na obra acima citada, o sr. Dr. SOARES DE CARVALHO traça
assim o quadro da evolução paleogeográfica da orla meso-cenozóica ocidental, na zona entre Vouga e Mondego, em
correlação com a génese dos blocos que se lhe depararam
em grande quantidade e que, com a devida vénia, aqui transcrevo:
1.º) Depois do levantamento do, continente, contemporâneo do da «Serra do Buçaco» (provavelmente durante os movimentos áticos),
formaram-se espessos depósitos «Piedmont»
durante o Pontiano.
2.º) Durante o Plaisanciano uma transgressão avançou sobre estes depósitos, conservando-os em
certas zonas.
3.º) A regressão vilafranquiana estendeu sobre depósitos plaisancianos um manto de depósitos fluviais pertencendo a uma planície aluvial de
«piedmont» em que corriam cursos de água
que teriam tido carácter torrencial ou pelo
menos a possibilidade de transportar! blocos
de Grés do Buçaco a algumas dezenas de quilómetros do afloramento.
4.º) Movimentos tectónicos deformaram os
depósitos vilafranquianos (provavelmente movimentos valáquios).
Àparte pormenores derivados do caso especial dos blocos
e do estudo próprio do autor, este esquema coincide, de um
/
17 /
[Vol. XVI
- N.º 61 - 1950]
modo geral, com esquemas estabelecidos pelo sr. Dr. ZIBYSZWESKI e pela colaboração deste ilustre geólogo com o eminente abade
H. BREUIL e, ainda, com as ideias do professor sr. DR. CARLOS TEIXEIRA
e com os princípios postos pelo professor sr. Dr. CARRINGTON DA COSTA,
quanto à ordem dos grandes fenómenos plio-pleistocénicos no ocidente
europeu que é, no caso, o nosso ocidente.
Também, com todos os autores que se têm ocupado do assunto, exceptuando
LAUTENSACH cuja dúvida e cujo parecer tivemos ocasião de verificar, o sr.
Dr. SOARES DE CARVALHO atribui o transporte dos blocos erráticos aos
cursos de águas torrenciais que atravessavam a planície aluvial,
transporte que se teria produzido durante a regressão vilafranquiana,
como opinou o sr. professor Dr. CARRINGTON.
Sem quaisquer pruridos de originalidade, de crítica ou divergência que
seriam deselegância com que não desejo arcar, proponho uma revisão do
problema.
Admite-se e concebe-se perfeitamente toda a acção revolvente,
anarquizadora e transportadora das águas em regressão do mar
vilafranquiano e das torrentes que o seguiram até ao nível de base que o sr. engenheiro FREIRE DE ANDRADE presume esteja marcado no fundo
do mar
actual pela isóbata de 150 metros e que o sr. professor Dr. JOÃO
CARRINGTON DA COSTA identifica com a plataforma submarina das isóbatas
de − 500 e − 1.000.
Mas o que não se concebe é como águas, mesmo torrenciais, poderiam
transportar, a distâncias de 20-40 quilómetros, blocos de pedra de meia
tonelada, de tonelada e de mais de uma tonelada de peso, através de uma
planície nivelada pelas areias de fundo e pelo mar anterior, planície
que, ainda hoje, apesar das deformações experimentadas pela zona
marginal do continente e pela alteração dos níveis marinhos, se nos
mostra quase horizontal e se caracteriza por uma extensão de 40
quilómetros no sentido meridiano, com 70 metros de desnível, o que dá um
declive médio de 1 metro por 571,5 m ou 0,175 %.
Já LAUTENSACH, como vimos, estranhou a explicação e sugeriu; por isso, a
origem glacial.
Temos de convir em que, por muito carregadas de detritos e vasas que
fossem as águas do mar ou das torrentes que no Plioceno superior ou nos
primórdios do Pleistoceno tiveram por fundo este trato da orla
sedimentar, a sua velocidade tinha de ser moderada pela horizontalidade
e extensão do percurso sobre a plataforma e que, portanto, a sua acção
transportadora era visivelmente deficiente para o peso e volume de tais
blocos.
A cerca de 4 quilómetros ao sul de Aveiro tenho eu encontrado, aliás
com pouca frequência em relação ao número
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18 /
de calhaus de petrosilex e quartzo negro e leitoso, alguns
calhaus de Grés do Buçaco, muito bem rolados com curvaturas esferoidais, calhaus estes do tamanho geral de punhos
e que durante muito tempo tomei como sendo de granito.
Menos boleados já os encontrara, há anos, nas calhoeiras
da Pampilhosa e nos altos terraços e solifluxões do Vale da Mó, a leste
da Anadia, onde os assinalou também o sr. Dr. SOARES DE CARVALHO.
A sua presença nessas calhoeiras e fanglomerados, é compreensível pela proximidade da rocha originária, na zona
crítica do rebordo da mezeta e das grandes dejecções torrenciais.
A sua deslocação até às proximidades de Aveiro (o que
nos serve para datar os depósitos em que se encontram, como posteriores
ao Cretácio superior e anteriores à escavação do vale do Cértima) é fácil de compreender em ciclos
torrenciais sucessivos ou em ciclos de acção torrencial seguidos de abrasão de mares regressivos.
Porém, grande diferença há entre os seus peso, volume
e forma, e os peso, volume e forma dos blocos erráticos, sendo certo que
estes que, por vezes, se apresentam angulosos e mal boleados, não estão
envoltos em quaisquer depósitos, mas simplesmente «pousados» sobre a superfície e ao
nível da terra arável.
É também possível que, em tempos recuados da exploração agrícola, alguns dos blocos tenham sido «desenterrados» pela acção do homem e que, em alguns casos, em tempos
ainda muito mais recuados, um ou outro tenha sido «isolado»
do material detrítico, arenáceo ou pulverulento, pela ablação.
Mas o que é um facto a considerar, é que não há memória de se ter extraído algum do subsolo, nem de ter aparecido um só que seja, quando da abertura de poços para rega,
que são aos milhares e que, frequentemente, atingem as
camadas argilo-calcárias do Mesozóico.
O caso dos grandes blocos de quartzite, e também de
Grés do Buçaco, publicado pelo sr. Dr. SOARES DE CARVALHO
no seu mencionado estudo de precioso contributo, é diverso,
porque esses blocos encontram-se, em grande parte, envoltos
na massa terrosa circunjacente e têm todo o carácter de um
depósito de sopé, mais ou menos recoberto.
Esses blocos, aliás interessantíssimos, estão todos a nascente do meridiano médio
do vale do Cértima e do vale seu correspondente
que passa em Fornos, na margem direita do
Mondego, e a pequena distância das alturas da montanha
Buçaco-Penacova. Irmãos gémeos dos irridentos e longínquos, não contradizem os últimos. Estão no mesmo caso os
blocos encontrados e publicados pelo mesmo distinto investigador na sua memória de 1948, sobre os
Depósitos detríticos
/
19 / pliocénicos dos arredores de Coimbra. O problema dos blocos a
distância de 20, 30, 40 quilómetros, na Gândara e nos plainos do sul de
Aveiro subsiste. Importa determinar o processo e a causa da dispersão.
*
* *
Vejamos rapidamente, para tanto, a evolução paleogeográfica da Mesopotâmia de
entre Mondego, Cértima e aparelho lagunar, na sua parte a norte de
Cantanhede, a partir do Plioceno superior.
O facto mais importante que temos a considerar, é a fossilização da
plataforma e do relevo mesozóicos pelos depósitos marinhos e
flúvio-marinhos plio-pleistocénicos.
Esses depósitos consistem em grandes massas de areias com intercalações
de calhaus, lentículas argilosas mais ou menos extensas e grés
esboroadiços, saibros, cascalhos e pedregaços dunares e pseudo-loess.
As areias de fundo carregam-se de cor amarelo-ferruginosa para o sul, e
de rubro para nascente, e mostram-se de branco caolínico para o norte. A
superfície ocorrem tratos de aparência dunar; a oeste dunas
verdadeiras.
De tal modo estes depósitos arenosos e argilo-arenosos
fossilizaram a
base mesozóica do Cretácico e do Jurássico, que de Aveiro até Cantanhede
se faz um trajecto em estrada quase rectilínea, totalmente assente em
formações arenáceas e de pseudo-loess, sem se dar a menor conta dos
acidentes tectónicos subjacentes, tais como os anticlinais da Palhaça,
Mamarrosa, Mogofores, Tocha, horst. As argilas cretácicas mostram-se nas
depressões causadas pela erosão das ribeiras, sobretudo do lado do rio
de Vagos.
Os afloramentos do fundo mesozóico são raros e escassos na parte central
da planura e as pedreiras exploradas para fabrico de cal são
«desaterradas» e «aterradas» conforme se exploram ou se abandonam.
Isto significa que os depósitos terciários preencheram,
cobriram, nivelaram e uniformizaram todo o relevo anterior, desde o
rebordo do horst do sul, até às colinas de leste e norte e as terras desaparecidas
a oeste e noroeste.
As depressões que se notam lateralmente ao grande eixo
da mesopotâmia e nos dão sensação de relevo, são erosivas e
quaternárias. Resultaram da erosão e do encaixe da rede hidrográfica.
Esta planície foi, indubitavelmente, o fundo de um mar, bem provavelmente plaisanciano, que atingiu o rebordo da Meseta em altitudes
próximas dos 130 metros e, talvez, superiores.
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20 /
Pela regressão vilafranquiana, que nos foi revelada pelo sr. Dr. CARRINGTON DA COSTA no seu trabalho basilar de 1940,
deve-se ter dado a emergência de toda a plataforma dos
100 metros médios que tão bem se divisa dos montes de
Leste e se perde nos confins de Espinho e Cabo Mondego
e sob as dunas do poente.
O mar retirou-se lentamente dessa plataforma e lentamente voltou a cobri-la, em parte, a. oeste, quando de novo
transgrediu, porque as oscilações e alterações de níveis não
deixaram terraços marítimos escalonados e a terra voltada
ao mar tem o aspecto de um grande terraço marinho ou de
uma larga praia única soerguida, ou melhor, abandonada pelo
mar, formando como que uma plataforma de abrasão, abaixando-se para a Ria.
O mar Siciliano deve ter deixado emersa uma ilha com
recifes calcários a sul de Cantanhede, onde se notam cotas
superiores a 100 metros, porque as suas ondas não devem
ter batido praias superiores a 80-90 metros, adoptando-se
o critério altimétrico clássico de DÉPERET.
Tem de concluir-se que, depois do ciclo pliocénico, a
actual planura, levemente inclinada para norte, oeste e
noroeste, de Cantanhede, alta-Bairrada, Aveiro, Ílhavo,
Vagos, Mira, num segundo ciclo de idênticos fenómenos,
deve ter constituído o fundo de um novo mar transgressivo,
que deve ter sido o mar Siciliano e que invadiu o vale do
Cértima já esboçado na regressão vilafranquiana.
E agora podemos dizer que, apesar do Siciliano, o processo geral e ininterrupto da evolução das formas topográficas regionais após o Plioceno, consiste no entalhe contínuo
da rede hidrográfica, embora haja paragens e recidivas, como
as do Tirreniano e post-Tirreniano, e tudo termine no Holocénico por uma transgressão que ainda parece progredir
− a Flandriana.
Desse longo processo que decorre durante o Quaternário, isto é, durante as glaciações nórdicas e os seus intervalos,
resultam erosões, ravinas, depósitos arenáceos e argilosos,
cascalheiras, terraços interiores, nateiros, campos, mas tudo
isso fica sempre abaixo do nível de elevações calcárias em
cujo extremo setentrional se encontra a vila de Cantanhede.
O vale do Cértima profunda-se; o pequeno riacho de
hoje capta o caudaloso Vouga e desvia-o para noroeste;
a grande planície da plataforma de fundo do mar plaisanciano que tocava
os montes da Boa-Viagem, Coimbra, Lorvão, Buçaco, Boialvo, Talhadas, Albergaria, Branca, Azeméis,
S. Ovídio, evoluciona e torna-se peneplanície; o compartimento a oeste
do Cértima, separa-se, individualiza-se, torna-se em mesopotâmia; instala-se um golfo na frente do
escoadoiro do Vouga, onde vem a formar-se a Ria; etc.
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21 /
A planície de Cantanhede-Aveiro, essa, permanece, mantém a sua quase
horizontalidade, defendida pelos depósitos arenosos ao longo do seu
eixo norte-sul, porque faltam precipitações atmosféricas e águas
correntes que a desmantelem na parte central, embora a mordam e ravinem
a formar vales e ribeiras na parte periférica.
Quando isto sucede, porém, como nas depressões que levam ao Mondego, ao
Cértima, ao Vouga, à Ria, às lagoas costeiras, é fácil encontrar o
horizonte da plataforma primitiva que se acha sempre ao mesmo nível na mesma zona, embora descendo
sempre para norte e oeste, nos pequenos planaltos individualizados pelo
ravinamento ou nos digitiformes, nas «agras», nas «chousas», nas
esplanadas de cultivo, onde os saibros e os cascalhos, e os depósitos de
pseudo-loess amarelado e seco, hostilizam os cereais e a horticultura e
se denunciam pelos maciços de reserva de pinhal e mato que intermeiam as
«terras» e os povoados.
O resultado geral é a planície, a «ainda planície», ao longo do eixo Aveiro-Cantanhede, levemente inclinada a norte, oeste e noroeste, de
suave declive, maneira branda, aqui e ali passando a formas peneplânicas.
Num dispositivo destes, que provém dos tempos ante-vilafranquianos, dos
fins do Terciário, não parece passível um transporte fluvial ou
flúvio-marinho, simplesmente, fluvial ou flúvio-marinho, capaz de
conduzir a distâncias de 20, 30, 40 quilómetros da matriz, por arraste
ou rolamento, esses curiosos e estranhos blocos que, apesar de
perseguidos pela marreta, numa região pobre de pedra e que edifica as
habitações em adôbe, ainda se vêem em Verdemilho, Bonsucesso, Quintãs,
Eixo, Costa do VaIado, Mamodeiro, Mamarrosa,
Covões, Gândara, Vagos.
A viagem desses penedos angulosos e mal rolados na sua maior parte, não
se pode ter efectuado sem intervenção de qualquer agente flutuador e
este, a meu ver, só pode ter sido o gelo, o gelo flutuante de um mar,
de um estuário ou de um sistema de canais naturais, como grandes
esteiros, comunicando com o oceano.
NOTA. −
No volume Les Glaciers, da muito conhecida e divulgada
Bibliothèque des Merveilles, Paris, Hachette & C.ie, 1870, encontramos a
seguinte descrição do fenómeno de dispersão de blocos erráticos:
«Dans l'hemisphére septentrional, et pour les fleuves qui coulent du sud
au nord, la débâcle, on le comprend, se produit d'abord dans la partie supérieure
de leur cours.
Il arrive alors souvent que les grands ftagments de glace entrainés par
les eaux atteignent des parties du courant qui sont encore gelées, et
des inondations considérables sont occasionées par l'obstacle qui se
forme au point de rencontre. Lyell cite un engorgement partiel de ce
genre qui eut lieu dans la Vistule, le 31 Janvier 1840. Arretée par des
glaces empilées à un mille et demi au dessus de la ville de Dantzig, la
riviére fut forcée /
22 /
de suivre un nouveau cours sur la rive droite, et se creusa en peu de
jours
à travers des collines sabloneuses de 12 à 18 mètres de haut, un lit
profond
et large de plusieurs lieues de longueur.
Dans le Canada, où divers tributaires du Saint-Laurent commencent
aussi à dégeler dans les mêmes conditions, on voit de grandes plaques de
glace s'empiler au-dessus de celle qui n'a point été rompue, et former
de
hautes piles de fragments gelés ensemble, qui bientôt sont misses en mouvement par la force des eaux. Ces masses emportent les ponts, détruisent
les quais, arrachent et entraînent les raches situées sur les deux rives.
Dans certaines parties du Saint-Laurent, ces blocs érratiques s'accumulent après chaque hiver, et forment des amas dont la gravure
ci-jointe,
représentant une vue prise au Richelieu Rapid, donnera une idée. L'un
des
blocs déposés sur ce point ne pèse pas moins de 70 tonnes.
Les effets produits par la gelée ne sont pas moins remarquables dans
l'estuaire du Saint-Laurent, au-dessous de Québec. En ce point, où la
température descend quelquefois jusqu'à 34º cent., d'épaisses plaques de
glace
se forment au moment de la basse mer. Lorsqu'ensuite la mer monte, ces
plaques sont soulevées et jetées sur les hauts fonds qui bordent
l'estuaire.
Quand la marée se retire, la congélation donne li eu à l'agglomération
des
fragments détachés de roche ou de glace en contact avec les plaques, et
ces masses sont ensuite entrainées vers la mer par une haute marée, ou
par les eaux des fleuves grossies, au printemps, par la fonte des neiges.»
*
* *
Para ser admissível, a hipótese carece dos seguintes
elementos essenciais:
um mar cujo nível, ao norte de Cantanhede, não
fosse inferior a 70 metros, mas que podia ser mais elevado;
um clima que, pela baixa temperatura invernal,
levasse as águas marinhas ou flúvio-marinhas à congelação;
um nível de águas e de gelos costeiros que atingisse
a rocha matriz do Grés do Buçaco na cumeada ou em
qualquer outro ponto ou os seus fragmentos nos pendores ou nos campos dos depósitos de sopé para onde eles
se teriam deslocado por efeito do levantamento da própria serra ou por qualquer outro motivo que
não importa
agora discutir. (O facto é que eles existem fora da
cumeada e da encosta da montanha. É de crer que tenha
havido desmantelamento de camada muito mais extensa).
Já vimos que o mar plio-pleistocénico
existiu nestas
paragens e que esse mar se foi retirando, depois de ter
coberto e rasado com as suas águas as elevações calcárias que ainda se
divisam bem salientes nas alturas por trás de
Cantanhede e que chegaram a constituir uma verdadeira
serrania.
Mas se é certo, como suponho, que não há blocos erráticos acima da curva
de nível dos 70 metros, as águas da
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/ 24 /
época da viagem dos blocos, para nordeste, não podiam subir
muito acima desta curva de nível, aliás teriam depositado
os penedos nas elevações superiores, onde não têm sido encontradas.
Acima dos 70 metros, eu só tenho notado
pedras intencionalmente colocadas de calcário dos afloramentos autóctones.
Os blocos de Covões, Camarneira, Fonte Errada, Febres,
estão numa plataforma de 60 metros de altitude.
Contemos mais 5 ou 10 metros de água para poderem
navegar por ali gelos flutuantes capazes de transportarem
esses blocos, e teremos formado uma ideia das condições
aproximadas do mínimo e máximo de nível necessário à flutuação dos mesmos blocos e sua derivação em
banquises ou
pequenos ice-bergs que os deixassem tombar no fundo ou os
fossem encalhando na praia na ocasião do degelo, ou por
mero efeito de gravidade, ou de fusão da massa gelada na
água não congelada, e agitada de ondas e correntes.
*
* *
Quando é que a temperatura, na nossa latitude, e no
domínio de um nível marinho de 70 metros, aproximadamente, desceu tanto,
que permitiu a congelação das águas
flúvio-marinhas e a formação de campos de gelo na margem
continental do maciço antigo ou suas proximidades ou na
plataforma nerítica onde se encontrassem os blocos de Grés
do Buçaco?
É o que vamos ver, tendo na frente o quadro da correlação dos climas com as glaciações quaternárias, estabelecido,
graficamente, por RÉNÉ-NEUVILLE e ARMAND RUHLMANN na sua
muito elucidativa obra de 1941, «La Place du Paleolithique
Ancien Dans Le Quaternaire Marocain». E utilizamos esse
quadro gráfico esquemático, porque é necessário resumir.
Na curva do nível dos mares, o Siciliano desce dos
90 metros positivos no auge da glaciação de Günz.
O nível de 55 metros, coloca-se na culminação glaciária
de Mindel.
À glaciação de Riss corresponde já o Tirreniano dos 28
a 30 metros.
Deve ter sido, portanto, no fim do Siciliano e numa
repercussão da glaciação de Günz sobre o clima deste ocidente da Europa ou nos começos de
Mindel, que a temperatura deve ter baixado o bastante para se dar a congelação
invernal das águas na orla marítima ou nos aparelhos deItaicos da costa.
Segundo as modernas ideias sobre os climas e temperaturas dos períodos
glaciares, bastaria a descida de alguns
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poucos graus centígrados em relação ao clima actual médio da Europa,
para se produzir o fenómeno da glaciação.
O sr. Dr. ZIBYSZEWSKI diz-nos que, durante as crises glaciares, Portugal
teria tido um clima semelhante ao da Noruega ou da Inglaterra do Norte.
Seria o bastante para se produzir a congelação na nossa costa nos
invernos rigorosos. E no caso de coincidência com a deslocação do pólo
para muito baixa latitude, Groenlândia ou Oceano a noroeste da Europa,
como numa das curvas de BLANCHART, o nosso país não podia ainda ser
beneficiado, como é hoje, pela circulação atlântica de águas tépidas
vindas das zonas tropicais.
O fenómeno poderia ter-se repetido no ciclo das glaciações de
Riss, a que
corresponde o Tirreniano, mas seria impossível já para os blocos de
Covões.
A hipótese podia, efectivamente, verificar-se para os blocos do campo da
Senhora de Vagos, de Verdemilho, Eixo e proximidades imediatas de Aveiro, onde as cotas começam nos 10-12 metros das arribas que rodeiam a
margem da Ria
para norte de Vagos. Mas o depósito dos blocos acima da curva de nível
dos 20 metros já não era explicável.
Não é de crer, também, que em
Riss, as águas marinhas
ou de um importante aparelho litoral de canais, deltas, esteiras, ou,
estuários, atingissem o depósito de sopé dos Grés do Buçaco. Com o final
de Riss relacionou o sr. Dr. CARLOS TEIXEIRA os depósitos inferiores da
Mealhada, sob o leito actual do Cértima. O interglaciário Riss-Würm, ou
o próprio Würm, cobririam parte dos depósitos de Riss, mas sempre em
baixos níveis.
Os terraços tirrenianos das margens desse rio, do Águeda
e do Vouga, estão a 30 metros de altitude, são indiscutivelmente
fluviais e de calhaus não superiores à cabeça humana. Os mais altos
níveis atingidos não permitiriam a captação e viagem dos blocos para
muitas das cotas em que eles repousam.
Também se é certo que o frio derivado de
Würm, com os glaciares
estabelecidos na serra da Estrela, se deveria ter sentido fortemente a
esta pequena distância da nossa bem averiguada glaciação, como agora se sentem na Beira-Mar as frialdades
que acompanham sempre as quedas de neve lá nos
altos em alguns dias mais inclementes de Janeiro, certa é também a
impossibilidade absoluta da viagem dos blocos para noroeste do Buçaco
pela exposta razão da falta de águas nós níveis indispensáveis.
À glaciação Würmiense correspondem, no geral, níveis
muito baixos, da ordem dos 12-15 metros, por isso Riss e Würm ficam fora das condições de admissibilidade na correlação necessária de tempo e espaço.
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* *
A conclusão final a tirar de todas estas considerações
e dentro da hipótese apresentada, é que o mar Siciliano, na
sua fase regressiva e no domínio climático da glaciação de Günz, ou o mar do começo de
Mindel, parecem ter reunido
condições susceptíveis duma dispersão de blocos de Grés do
Buçaco na terra alta da mesopotâmia do sul de Aveiro e do
norte de Cantanhede, por intermédio de gelos flutuantes que
tomassem ou incorporassem esses blocos na margem continental e os fossem levando à deriva para noroeste, depondo-os nos remotos locais onde hoje os vemos.
− Onde hoje os vemos... como se fossem pequenas, esfinges mortas no chão
do exílio, guardando o seu segredo
perante os longos milénios que, às centenas, sobre elas o
Tempo tem dobado, sempre indiferente às vicissitudes dos
entes vivos, como às vicissitudes das próprias rochas.
NOTA. − HENRY BREUIL e ZEBYSZEWSKI no Tomo XXVI das
Comunicações dos Serviços Geológicos (1945) dizem-nos que em Portugal, ao contrário do que sucede noutros países como França e Inglaterra, as faunas
e
floras são insuficientes para se datarem os níveis geológicos do
Quaternário.
As praias e os terraços têm sido identificados uns em relação aos
outros, graças ao emprego do método morfológico clássico.
No litoral português há quatro níveis de praias.
O Homem teria aparecido no
nosso território numa época anterior a Günz e que pode ser contemporânea, pelo menos em parte, do Siciliano.
No estado actual dos nossos conhecimentos o critério arqueológico
não pode ser utilizado para destrinçar os níveis na Beira-Mar.
No quadro referente aos terraços fluviais do Tejo os A.A. acima citados estabelecem as seguintes coincidências:
|
Terraços superiores |
│
│
│ |
Pre-glaciar
Siciliano. |
Altos Terraços |
│
│
│ |
Günz −
inter-glaciário
Milaziano − parte de Mindel. |
Terraços médios |
│
│
│ |
Parte de Mindel − inter-glaciar
Tirreniano − parte de Riss. |
Terraços inferiores |
│
│
│ |
Parte de Würm
Post-glaciar flandrIano. |
|
|
Quanto à colocação das indústrias líticas portuguesas neste quadro,
resumiremos da seguinte forma, mencionando-as na ordem decrescente da
formação dos terraços em que normalmente se encontram e na inversa do
tempo:
Paleolitico
inferior:
− O Abevilense, o Clatenense e o Acheulense apresentam-se em
MindeI, mas rolados; portanto, anteriores aos níveis em que se
encontram.
/ 27 /
Tem de admitir-se, seguindo BREUIL e ZEBYSZEWSKI,
como sendo
da época de Günz, ou seja da primeira glaciação.
− O Acheulense antigo, médio e superior apresentam-se nos terraços médios do Inter-glaciar tirreniano.
− O Acheulense superior (Micoquense com elementos tayaco-musterioides) colocam-se em Riss, nos médios e baixos
terraços.
− O Musteriense e Languedocianoantigo,
no Interg-Iaciar grimaldiano e nos baixos terraços.
Paleolítico superior:
− O Musteriense e o Languedociano em Würm e nos terraços
ínferiores.
No texto não se tentou a correlação terraços-indústrias, por não
se conhecerem na Mesopotâmia a que nos estamos referindo instrumentos
do Paleolítico e por não haver praias nem terraços bem individualizados.
A destrinça das praias e terraços é um novo problema que está sendo
objecto de estudo num trabalho de conjunto sobre o Quaternarismo regional em que há anos me empenho.
Pelas razões expostas, adoptei o critério altimétrico das sínteses de
DÉPERET, relacionando as altitudes, com os níveis marinhos clássicos
relativos às glaciações alpinas de PENCK e BRUCKNER.
Também se considerou fixa toda a plataforma da grande Mesopotâmia
litoral de entre Mondego e Vouga, seguindo-se, neste ponto, a opinião
do sr. Professor Dr. CARLOS TEIXEIRA.
Desta forma e neste sistema, as oscilações verificadas no nível das
águas marinhas seriam devidas apenas a movimentos eustáticos. O sistema
facilita a resolução do problema dos penedos erráticos quanto à
verificação da hipótese apresentada, na parte relativa a níveis
possíveis e tempos prováveis, mas está sujeito a modificações se se introduzirem no sistema
fenómenos epirogénicos.
Se considerarmos a existência de estuários e praias de estuário, bem
admissíveis, temos de contar com a grande complexidade de fenómenos e
de depósitos inerentes com a inexistência de terraços no sentido morfológico do termo, que é o nosso caso, como advertem BREUIL e ZEBYSZEWSKI.
A superfície da Mesopotâmia da Beira-Mar, a que me refiro no texto, pode
ser, assim, uma série de praias, por vezes confusa, ou um complexo de
terraços esbatidos, alguns mesmo embutidos, de depósitos superficiais
poligénicos, como para as margens do Tejo propuseram os mesmos
autores.
ALBERTO SOUTO |