B. Xavier de Magalhães, Aventuras de um aveirense ilustre, Vol. XV, pp. 249-267.

AVENTURAS DE UM

AVEIRENSE ILUSTRE

◄◄◄ − Continuação da pág. 240


3.ª

Sydney, 3 de Fevereiro de 1854

Minha mãe e mano Bento

Do Rio de Janeiro escrevi para aí duas cartas, uma datada de 11 de Junho, em que mandava dizer que tínhamos chegado àquela cidade no dia 7 de Junho para consertar as avarias duma abalroação, e outra de 27 do mesmo, que escrevi somente para saberem se no meio da febre amarela eu teria escapado, o que, felizmente para mim, assim aconteceu. Eu mandava dizer que sairíamos no dia 29 (dia de S. Pedro); porém só saímos no dia dois de Julho, pelas 8 horas da manhã dum dia lindíssimo dos trópicos. O primeiro dia parecia querer prognosticar-nos uma feliz viagem, e a proa do nosso brigue cortava o mar velozmente, dirigindo-se ao cabo da Boa Esperança. Transportámos a nosso bordo dois passageiros franceses para Melbourne, e um alemão para Sydney. Durante os primeiros sete a dez dias de viagem, o mar engrossava um pouco por vezes, e as noutes tornavam-se dignas de atenção; mas não havia receio algum de tormenta. É verdade que, ainda que o tempo se tornasse tempestuoso, não havia que estranhar, porque estávamos então em princípios de Agosto e fins de Julho, tempo em que o Inverno é mais rigoroso. À maneira que nos íamos afastando do trópico de Capricórnio e avançávamos por a temperada do Sul, seguindo para o Cabo, o tempo se tornava mais áspero, a atmosfera coberta de nuvens dum amarelado aterrador, e as noites escuríssimas. Algumas vezes, o vento / 250 / soprava tão violento, e o mar crescia tanto, que nos obrigava a correr em popa; e, como o navio não era grande coisa para isto, nestas ocasiões metia mares, que, posto não muito grandes, contudo faziam recear alguma fatalidade, porque, em consequência da inexperiência do capitão, toda a nossa aguada vinha em cima do convés, que eram umas vinte pipas, e isto jamais se pratica nestas viagens. Ora, se um grande mar, lavando-nos o convés, nos levasse a aguada pela borda fora? Enquanto não dobrássemos o Cabo, havia o recurso de arribar à cidade do Cabo ,(imensa colónia inglesa), porque trazíamos na câmara duas pipas de água, que nos chegava ainda para isso, ou mesmo depois de dobrar o Cabo podíamos arribar a Moçambique ou a alguma colónia francesa de Madagáscar. Porém, sucedendo-nos a falta de água fora destas alturas, não havia mais onde arribar. Era isto o que bastante nos inquietava. Com mar e ventos progressivamente tempestuosos, chegou o dia 9 de Agosto. Estávamos, porém, três a quatro dias a dobrar o Cabo, com trinta e nove de viagem. Então o vento soprou horrorosamente, e o mar agitava-se de uma maneira extraordinária. De dia, íamos correndo sempre em popa, e com a mesma tenção de correr de noute. Chegou finalmente esta. A tempestade não diminuía; crescia, pelo contrário. O capitão gemia, deitado no camarote com erisipela numa perna, e eu e o piloto, embrulhados nos nossos oleados, vigiávamos o quarto. Eram 10 horas e meia. O marinheiro do leme, homem velho, era de vista cansada; na escuridade da noite não pôde ver um escarcéu como uma montanha, que crescia do lado, para lhe dar a popa do navio; e, quando nós a vimos, já não era tempo. A vaga veio em cima do navio, e com duas atrás dela deixou o navio coberto de água. Arrombaram-se portinholas para escoar; alijou-se bastante carga para aliviar o navio; porém da água (coisa principal) nem uma só pipa se perdeu! A noite assim continuou até ao dia seguinte, em que ainda perdemos um bote. Passados, porém, dois dias, o tempo tornou-se sereno, e passámos pela altura do cabo da Boa Esperança magnificamente. Por pouco: dentro em três dias, o mar tornou-se outra vez furiosíssimo, e o vento atrevido. No dia 17 do mesmo mês de Agosto, vendo que não podíamos continuar a seguir daquela maneira, pusemos  de capa, e foi então que um furacão, muito frequente naqueles mares, nos quebrou o pau de bujarrona e o mastaréu de velacho, estando ambos em árvore seca! Nenhum dos de bordo disse que vira já tão desatinado tufão. Em seguida, com fortíssimos ventos, mares extraordinariamente grossos, chuvas de água e pedra, gelos, chegámos à vista da pequena ilha de Amsterdam, que está junto à de S. Paulo, a meia viagem do Cabo para a Austrália; e, com pouca diferença no / 251 / tempo, fomos continuando a nossa viagem, até que nos colocámos defronte do cabo Luvin e, avançando ao longo da costa, chegámos à entrada do estreito de Bass, temido pelos viajantes modernos, por causa das muitas pedras que o obstruem. À entrada desta terrível passagem chegámos no dia 30 de Setembro, com noventa dias de viagem do Rio de Janeiro. Jamais a atmosfera se tinha mostrado tão ameaçadora e, o que era pior, a aproximação da terra cobria tudo de nevoeiro espesso; e, como estávamos quase em calma, receávamos que a corrente nos arrastasse para a terra. O Sol, Lua e estrelas faltavam havia dois dias; nada se sabia, com certeza, da nossa latitude e longitude. O único recurso era abrigarmo-nos no porto mais próximo dali e esperar bom tempo. A noite chegou; toda foi passada em atrapalhação, porque nada se via com a névoa, e o navio estava em calma. Chegou finalmente a manhã; cápulos não havia; éramos obrigados a navegar debaixo do estúpido sistema da barca. A terra não aparecia; o vento refrescava bastante, e pusemos a proa onde nos parecia que ela deveria estar. Daí a três horas apareceu e fomos navegando ao longo dela; porém ninguém tinha conhecimento da sua configuração. Que fazer? Eu e o piloto estudámos no mapa o desenho dela e, sentados na verga do joanete, íamos confrontando a costa com o mapa, até que ao meio-dia julgámos descobrir a entrada de Porto Filipe. Pôs-se-lhe a proa; mas dentro em meia hora reconhecemos que aquilo que nos parecia barra era uma ponta em forma de enseada. Que ponta seria? Observámos segunda vez o mapa atentamente e lá descobrimos a mesma com igual configuração e, um pouco adiante, a entrada de Porto Filipe. Os peitos se dilataram então, porque a ocasião tinha sido terrível; e, debaixo sempre de temporal, entrámos daí a meia hora por a barra dentro, onde demos fundo às 2 horas da tarde do dia 3 de Outubro. Como tínhamos alijado carga, desarvorado, perdido um bote e abalroado, e ultimamente arribado ali segunda vez forçadamente, era mister protestar em juízo naquele porto, segundo o código. Ora tinha-me esguecido dizer que desde Amsterdam o navio começara a fazer água, o que também nos inquietou bastante, por causa da distância da terra. Porto Filipe é o nome duma imensa baía que tem, no seu maior comprimento, cerca de 30 milhas e 15 na sua maior largura. Ao fundo dela está edificada a cidade de Melbourne, que não tem mais de doze anos, mas que tem progredido espantosamente depois da descoberta do ouro em 1851, por isso que a maior parte dele tem saído das minas que lhe ficam próximas. Nas circunvizinhanças desta cidade se têm modernamente feito grandes povoações, que crescem diariamente com a emigração europeia. Da barra onde fundeámos a Melbourne eram, pois, 30 milhas. O capitão meteu-se num / 252 / dos navios, que aos vinte e trinta entram diariamente naquele comercialíssimo porto, e foi a Melbourne tratar dos seus negócios de avarias. Por lá se demorou oito dias, e nós entretanto íamos todos os dias à terra, que ali nos ficava próxima, passear por essas imensas florestas de que tanto abunda este país. Ali perto só havia uma pequena aldeia, junto do farol. As árvores que as formam são todas cedros, não como o cedro do Líbano, de ramos pendentes, porém semelhantes aos nossos pinheiros, posto que com muito maior vegetação e tão juntos, que se não pode andar sem abrir caminho com os braços. Neste país não há serpentes, se exceptuarmos o alicanço aquático, nem tão pouco animais bravios. Alguns lugares há onde se encontram cães silvestres, mas um só não é temível. Cabe aqui dar-lhe notícia dum animal indígena do país, chamado «Kangaroo»,(1) na língua dos selvagens, e que os Ingleses adoptaram. Este animal é semelhante a uma grande cabra, mas sem cornos. As suas pernas têm o duplo comprimento dos braços; é por isso que eles não podem andar senão com muita dificuldade. Em recompensa, eles saltam, firmando-se sobre a parte posterior, a uma distância de vinte pés, com a maior facilidade. O seu ouvido é finíssimo, e a sua caça, que é feita com galgos, muito difícil. Quando o Kangaroo é surpreendido de perto, logo que ele dá fé por uma série de saltos desaparece admiravelmente através das campinas. A sua carne é muito preferível à de boi, e a pele muito boa para calçado, de que há muito.

Assim, estivemos na entrada de Porto Filipe oito dias, em que voltou o capitão, e no dia seguinte, 12 de Outubro, nos fizemos de vela para Sydney. Atravessámos o estreito de Bass com um dia magnífico, observando, de trezentos passos talvez, todos esses rochedos que tanta vítima têm feito com mau tempo. Finalmente, no dia 24 de Outubro fundeámos dentro de Porto Iackson (é assim que se chama esta baía), e daí a quatro horas defronte da fortaleza de Sydney. Depois que esta baía foi descoberta, há sessenta anos, goza da reputação de ser a melhor do mundo. Com efeito, ela é admirável. Parece um vasto rio que entra por a terra dentro, num comprimento de 50 milhas, todo bordado por enseadas que mais parecem docas artificiais que naturais, tanta é a comodidade que oferecem para o comércio. Sydney é a capital das colónias inglesas na Austrália, e é uma cidade termo médio entre Lisboa e Porto, aproximando-se mais àquela que a esta. Aqui, tudo é caríssimo, porém não tanto como em Melbourne, onde cortar cabelo custa 1 shelling, fazer a barba / 253 / 1 shelling, lavar um lenço 1 shelling, lavar um par de meias ou coturnos 1 shelling, e, se não tudo, ao menos a maior parte na mesma proporção; porque em ambas as partes os ganhos são relativos, porque em Melbourne quase todos os ofícios mecânicos têm de jornal 1 libra até libra e meia, e quanto mais os ofícios são de primeira necessidade, mais ganham, como carpinteiros, pedreiros (isto é: canteiros), alfaiates, sapateiros, etc. − Nesta cidade, os jornais daqueles ofícios montam também a uma libra, e mesmo em qualquer coisa que um homem se ocupe ganha dinheiro. − Muitos vão trabalhar para as minas sem distinção de classes; o trabalho delas é duríssimo e proveito incerto. É uma verdadeira lotaria; pode-se ter muito dinheiro em pouco tempo e pode-se andar por lá toda a vida sem ter podido fazer fortuna; porém ouro para a sustentação diária todos encontram. As minas estão espalhadas pelas montanhas do Ofir e Montes Azuis. Quer-se trabalhar nas minas? Arrenda-se uma porção de pés quadrados ao governo por bagatela e cava-se ali perpendicularmente como um poço (porque não pode fugir dos seus limites), até encontrar ouro. Este sai umas vezes em pó, outras em pedra, já puro e da cor amarela que lhe é própria; de maneira que não precisa conhecimentos mineralógicos alguns para o conhecer. A pedra maior que se tem tirado nas minas de Ofir pesava 130 arráteis. Elas vão sempre produzindo mais ou menos, e calcula-se em 100.000 pessoas a população das minas. Ainda há pouco se descobriu outra que parece dar ouro bastante. Nas minas e mesmo na maior parte da cidade de Melbourne as casas são tendas de guerra, isto é, de lonas e oleados. Os Ingleses mesmo não lhe chamam outra coisa que «tents». − As comidas nas minas são sofríveis. As águas potáveis são, porém, tão nocivas, que se não bebem senão fervidas com chá, que aqui é baratíssimo: custa um arrátel 12 pence. − Quanto ao clima, é muito mais quente que o nosso, e menos frio de Inverno. Quando faz calor demasiado, é infalível fortíssima trovoada de tarde ou de noite; mas são trovoadas de que nós aí não fazemos ideia, porque nunca as vi lá semelhantes. A atmosfera torna-se dum vermelho carregado e azulado; a claridade do dia enfraquece com as camadas de nuvens, tão grossas algumas vezes, que parecem tocar os edifícios mais elevados. Uma chuva miúda se segue; depois um tufão continuado, e a electricidade começa então duma maneira espantosa. Numa destas trovoadas, um raio caiu sobre o tope do mastro grande duma galera dinamarquesa que estava junto de nós na doca, entrou no porão, estando as escotilhas fechadas, e saiu por o costado, fazendo um buraco na madeira e no cobre. É raro que alguma destas trovoadas não faça mais ou menos estragos, mas no Inverno são raras. − Falando agora da fertilidade / 254 / do país, creio que a natureza não se mostrou tão grande e liberal em outra parte como aqui. Encontram-se os vegetais e as frutas de todos os climas. Até mesmo se faz já ali um vinho, ainda que pouco. Um rapaz, meu conhecido, filho dum negociante português em Londres (sobrinho da Baronesa de Ancede, do Porto), mandou ao pai um pequeno presente de vinho colonial de três qualidades, que muito pouco descombinavam do vinho do Porto, Bordeaux e Reno. Por falar de bebidas, cabe aqui dizer que se bebe nesta cidade horrivelmente, creio que muito mais do que em Londres (proporção guardada). É espantoso o número de Public Houses (tavernas) que há nesta cidade, e todos fazem grande negócio. A razão disto é porque todos os mineiros perdulários que fazem alguma fortuna aqui vêm todos parar, e tudo dissipam principalmente com as mulheres do país, que são em geral formosas, mas também desmoralizadas em último grau. − Aqui há um teatro dramático inglês e uma irrisória companhia de cavalinhos. Se exceptuarmos os mineiros de classe rústica e marinheiros, que ganham aqui de soldada 10 a 12 libras por mês (!), todos pensam só em trabalhar e ganhar dinheiro para procurarem suas pátrias. Julgo que é a razão que mais concorre para a carência de divertimentos públicos. − Usam-se aqui muito as regatas, como em Veneza. As melhores e mais respeitáveis casas são de desterrados que o governo para aqui mandava em outro tempo, e alguns dos quais fizeram imensas fortunas na descoberta das minas com diferentes especulações. Os indígenas do país, que são negros, de formosos cabelos negros corredios, são mui dados ao trato, ainda que inteiramente selvagens. Encontram-se nas matas, pelo interior, a distância de dez léguas para cima, e mesmo habitam junto às pequenas baías onde os Ingleses vão fazer com eles seu negócio de permutação. O governo tem colónias em quase toda a beira-mar do continente. Esta, porém, que é a beira-mar do Sul e Este, se chama Nova Gales do Sul; divide-se em três províncias: Nova Gales do Sul, propriamente dita, de que é capital Sydney, que também o é das colónias e porque aqui reside o governo; província de Vitória, capital Melbourne; e província do Rei Jorge, capital Albany. Além disto, há muitas outras cidades e grandes povoações, tanto na costa como no interior. Ao sul da costa, do outro lado do estreito de Bass, está a grande e fertilíssima ilha de Van Diemen, toda povoada também debaixo da jurisdição do Governo Geral das Colónias e que já pode abastecer a grande parte do continente com seus cereais. As duas grandes ilhas de Nova Zelândia, a dez dias de viagem daqui, também colonizadas, são proveitosas por as suas madeiras indígenas de construção naval e doméstica, além dalguns lacticínios, cereais, etc. Os naturais dela são muito capazes / 255 / de indústria, e trabalhadores. Julgo que não haverá cidade onde se encontrem em tanta variedade diferentes habitantes do globo. O geral da população são Ingleses e, mais que tudo, Irlandeses. Depois destes, o maior número é de Alemães, de todos os estados da Confederação; em seguida, Franceses, e depois é uma vasta mistura de Chinos, índios, Persas, Árabes do Mar Vermelho-Norte, Americanos, Peruvianos, Mexicanos, Chilenses e, enfim, também se encontram bastantes Portugueses, a maior parte das nossas colónias do Atlântico e da índia. − As únicas exportações deste país, como é sabido, são ouro, riquíssimas lãs, sebo, e pouco mais. Julgo, porém, que, na falta do ouro, a lã poderá sustentar, se não tão grande, ao menos sempre um respeitável comércio. São estes, pouco mais ou menos, os conhecimentos que por ora tenho deste país.

Agora é tempo de falar de mim; mas para isso preciso de lançar mão de outro princípio. Alucinados com as palavras minas de ouro de Austrália, o dono e capitão do brigue Amália, que também nele tem parte, às cegas receberam uma carga de vinhos, arranjada por um tal inglês do Porto, Carlos Coverley, e com um pequeníssimo frete deu o navio à vela para Sydney, confiados, segundo lhe tinham dito, num frete vantajosíssimo de lã e ouro, e sem terem conhecimento algum desta praça. Eu menos o sabia que eles, por a pouca prática do comércio. O resultado desta ignorância foi chegar aqui e nada encontrar. É certo que aqui há fretes de subido preço; só, porém, para uns cem navios que andam na carreira de Inglaterra para aqui, todos de apuradíssima construção, e dentre 1000 a 3000 toneladas de lotação, e alguns de 3500. Ora um pobre brigue português de 300 toneladas que podia valer no meio desta extraordinária navegação? Como é de supor, o consignatário ou agente do navio declarou logo que fretes daquela qualidade não haviam (sic), mas que se arranjava ir buscar à Cochinchina uma carga de guano para ir levar à Améríca do Norte. O capitão, porém, não tinha ordens francas e, ainda que as tivesse, dizia ele que tal carga não iria buscar, porque lhe estragava o navio; e, na verdade, não há navio e tripulação de guano que não fiquem mais ou menos estragados, em consequência da sua natureza ardentíssima. A sua carta de ordens lhe ordenava primeiro que vendesse o navio até ao preço de 3000 libras, ou pouco menos; na falta disto, carregar lã e sebo por conta, até um certo preço, e na falha de tudo ir em lastro para Pernambuco. A carga de lã e sebo era impraticável, tanto por carência de dinheiro, como por a altura dos preços. Seguia-se vender o navio. O agente logo disse que ele não dava o preço requerido, mas que daria de libras 2000 a 2500. Ora o capitão é homem muito desconfiado com o seu tanto de / 256 / estúpido; começou logo a desconfiar que o queriam comer. Começaram desinteligências entre ele e o consignatário, que puseram tudo em miserável estado. O navio foi duas vezes à praça e de ambas as duas dava um ridiculíssimo preço. O capitão ainda mais desconfiava de trama do agente e chegou a tal estado de loucura, que o vi algumas vezes, de alucinado, prestes a lançar-se pela borda fora. Uma das razões que concorria para isto era que ele não falava nada inglês, e o agente nada português; por consequência, desconfiava sempre, apesar dos intérpretes. Afinal, foi resolvido que o navio saísse daqui, porque felizmente puderam-se arranjar marinheiros portugueses para o levarem a Pernambuco por 45 libras cada um, porque aqueles que no brigue tinham vindo, a esses o capitão tinha despedido (quando tencionava vender o brigue) e já tinham saído todos para Londres, fazendo parte da tripulação dum vapor. O navio foi empenhado nas soldadas, porque já não havia dinheiro! Enfim, foi uma desgraça para o navio, já por fatalidade, já por a nenhuma prática e experiência que o capitão tinha destes negócios, porque é de notar que nunca navegou senão no tráfico da escravatura de África, que não teve relação de qualidade alguma com os negócios de navegação lícita. À vista, pois, do último destino do navio, eu comuniquei logo ao capitão a minha decisão de ficar por aqui, e ele prontificou-se a abonar-me o dinheiro que o seu malfadado negócio lhe permitisse. Emprestou-me, pois, libras esterlinas 30, de que lhe passei recibo; e, como não tinha outra pessoa do conhecimento dele, de quem as pudesse receber, senão o Joaquim da Costa Leite, foi a ele que o enviei, prevenindo agora o mano disto, para dar as ordens mais convenientes. 30 libras esterlinas em Portugal é um dinheirão; neste país pode-se calcular na proporção de 30 pintos. Eu resolvi ficar aqui, porque alguma coisa me diz que ganharei aqui mais dinheiro que em outra qualquer parte. Tenho de lutar a princípio com um inconveniente, que é a língua; essa, porém, em três meses se fala inteligivelmente. Não sei, por ora, ainda aquilo que me fará mais conta; é certo, porém, que, seja qual for o modo de trabalhar, em tudo se ganha mais ou menos dinheiro. − Em relação à soma que pedi, pode o mano dispor do pouco que tenho do pai, porque sabe perfeitamente que a nossa amizade não é de admitir chicanas em qualquer tempo, e mesmo sobre isto o mano tem muito que dizer, e eu muito que calar. (Mulheres! Alucinaram-me já; hoje rio delas!). Eu não estou resolvido a voltar à pátria sem poder viver sem trabalhar, porque a fortuna se deve procurar onde é mais fácil encontrá-la; até mesmo − quem sabe? − me tentarei a experimentar a sorte das minas, o que faz a maior parte da gente de todas as classes. Trabalham seis meses ou um ano. / 257 / [VoI. XV - N.º 60 - 1949] Se encontram fortuna, bem está; se não, lançam mão doutros recursos. O país é saudável a mais não desejar. O gás existe aqui há alguns anos já, e está começado um caminho de ferro daqui para Melbourne (na distância de cerca 200 léguas portuguesas), para cujos trabalhos chegam constantemente navios carregados com 300 e 400 engajados do governo. Enfim, este país cresce prodigiosamente cada dia. A navegação inglesa tem chegado a aquirir (sic) uma rapidez fabulosa nas comunicações europeias com a Oceania. É muito ordinário chegarem aqui navios de vela de Inglaterra com 70 a 80 dias, pouco mais do que a mala do correio por o istmo de Suez, que se demora 60 a 70 dias. Que diriam hoje os nossos navegadores de bons séculos, quando levavam um ano a fazer uma viagem à Índia? A religião mais seguida aqui é a católica romana, que tem um bispo e uma catedral muito decente, enquanto se não conclui outra, que se está edificando com sumptuosidade. É verdade que a religião do governo é a protestante; porém a outra é a mais seguida, por causa das muitas missões. É admirável ver as cerimónias da igreja romana aqui, que são feitas com o melhor gosto e respeito possíveis, e de que aí não se pode fazer ideia nos nossos templos imundos. Eu emprego esta palavra, porque nenhuma acho mais própria, à vista do que aqui vejo. − Esta carta já vai longa, posto que equivalente à distância de 4000 léguas que nos separam. Não é, porém, por hoje sermos antípodas que se me afrouxam as lembranças desse canto de Portugal. O pensamento é imenso, e as saudades da minha família são sempre as mesmas. Eu hei-de escrever sempre que puder e desejo sempre receber cartas daí. Eu recebi uma sua, que tenho diante de mim, em que toda a família me escreve. Sensibilizou-me bastante, e agora mesmo estou chorando ao relê-la. Occasio aegre offertur, facile amittitur(2) − diz o mano na sua carta. É por isso que aqui me demoro, a ver quod fortuna offert (3); mas tenho fé que morrerei em Aveiro. − Quando as pequerruchas Beatriz(4) e Elosinda(5) começarem a compreender alguma coisa, que repartam também algum bocadinho de afeição com um tio que não conhecem. A mana Ana pedia-me uma procuração de padrinho, mas calculou mal o tempo da resposta. A todos agradeço muito / 258 / as suas lembranças e peço recomendações para quem se lembrar de mim, e aqui nomeio especialmente José e João Roque, Mesquita, Reinaldo(6), Jerónimo, Crispiniano, e os meus antigos condiscípulos Daniel, e Barbosa, Luís Cipriano, etc., etc.

Esta carta está escrita há dezoito dias, à espera da mala do correio, e durante este tempo tenho algumas correcções a fazer, vindas de pessoa bastantemente habilitada para isso: é um engenheiro, sobrinho também da mesma baronesa de Ancede, de quem acima falei. − As árvores que abundam neste país não são cedros, porém mui semelhantes a eles. Há, porém, uma extraordinária abundância da árvore-ferro, como aí lhe chamam os marceneiros. Os cedros são em abundância em New Zeeland. As serpentes são, com pequena diferença, como as que há em Portugal, tanto em número, como em tamanho, porém mui venenosas. − As colónias, além da divisão das províncias, estão divididas em condados, exactamente como a Inglaterra. São 17. − Há entre as tribos selvagens uma rara originalidade que não se encontra em outra parte do mundo habitado. Eles não conhecem arma de qualidade alguma senão a azagaia, muito conhecida já, e o bumareign. Esta arma e o seu uso é a originalidade de que falo. O seu feitio é o seguinte [uma lua em quarto crescente, o mesmo que boomerangue], e é nada mais do que um bocado de pau-ferro. Quando querem, arremessam-na sobre qualquer objecto, e a arma vai, girando, tocar no corpo indicado e volta a cair no lugar onde o selvagem quer. Ainda mais. Uma ave vai voando ao longe, junto à terra. O selvagem arremessa o bumareign. O pássaro é morto e envolvido na arma (e) vem cair com ela aos pés do atirador ou onde ele quer. O maior espanto é que a arma, depois de despedida, não tem mais contacto físico com o atirador, de corda, ou de arame ou doutra qualquer coisa. É desconhecida ainda para os colonos a maneira de usar desta arma, cujo uso deve basear-se certamente em algum princípio físico muito pouco conhecido. Nem mesmo todos os selvagens sabem fazer uso perfeito desta arma, porque tem o perigo de poder a arma, na sua volta, matar o mesmo que a atirou.

Esta carta vai duplicada por outra via, porque não é muito raro o extraviarem-se. Segunda vez, adeus, e adeus até um dia, em que eu espero tornar a abraçar toda a nossa família. A mãe lance de lá a bênção ao seu saudoso filho, e o mano e manas e seus maridos recebam as saudades também do

Seu filho e irmão afectuoso,

Bernardo

/ 259 /

Eu hei-de escrever todas as vezes que tiver ocasião, e o mesmo desejo que de lá façam. Como pode acontecer que quando aqui chegar alguma carta, que eu esteja noutra parte, devem dirigir as suas cartas para Londres, desta maneira: Mr. M. J. Soares − Esq.re n.º 34, Great Tower Street − London; isto é, assim deve ser a direcção, envolvendo a carta que vier para mim, a qual deve ser sobrescritada com o meu nome, com a competente direcção para Sydney − New South Walles, à casa do Sr. M. I. Soares - Esq.re. Isto é preciso assim, porque o tal Soares de Londres, que é pai do daqui, tem muitos negócios e pode esquecer-se, sem estas especificações, da direcção das cartas.

No dia 20 de Janeiro se receberam aqui as primeiras notícias do rompimento da guerra turco-russa, e diariamente vêm notícias, que se não sabe se verdadeiras ou falsas. Ultimamente, diz-se que se sublevara parte da Pérsia, o Belouchistan e os Afgans; e, há coisa de oito dias, soube-se a morte da rainha de Portugal, que o rei era regente, e suspeitas de revoltas. Esta carta é concluída hoje, 24 de Fevereiro, porque sai amanhã a galera Wooloomooloo com a mala do correio por cabo Hom. É verdade: falei antes de ontem com o rei das ilhas, Tange Taboo, que fala bem espanhol. E um quidam que deixou a nação (!) entregue ao seu Cuaquiamo (espécie de ministro), para vir ver a cidade de Sydney! É uma originalidade aí, mas muito trivial aqui, em que estes pobrezitos chefes de ilhas do Pacífico. que se intituIam reis, andam passeando com todo o mundo. Aquele outro era um homem bem sensato e de bom pensar. Esta cidade é uma babilónia de raças. Quem mais línguas fala ganha bastante dinheiro como intérprete. Os telhados das casas todos são ou de madeira ou de lousa, o que mostra muito melhor resultado do que a telha. As casas, como em Inglaterra, são ou de tijolo ou de pedra. Há edifícios bons, mas não se pode dizer que haja nenhum de merecimento. Para estes ou é ainda cedo, ou será costume de colónias. A única coisa admiravelmente extraordinária é o jardim público, não tanto por a arte, que não tem nenhuma, mas por os pontos de vista, arvoredos e prodigiosa vegetação de toda a espécie. Muito diria mais, mas guardo para um outro período, em que possa dizer de mim, mais positivamente. Adeus, e não se esqueçam de mim. − Última novidade. Um capitão americano descobriu, há coisa dum mês, um pequeno novo arquipélago aqui, ao sudeste, no Pacífico. / 260 /


Creswick, 10 de Setembro de 1856

Mano Bento

A última carta que lhe escrevi foi aquela que levou o meu bom amigo Dinis Gago da Câmara. Como tenciono ser bastante largo nesta, dir-lhe-ei o que sei acerca dele e de seu irmão Simplício, que aqui reside perto(7). No princípio de Agosto de 1853, Simplício Gago da Câmara saiu de S. Miguel para Geelong (Austrália), com uma sociedade de 44 homens e 4 mulheres. Ele abonou a maior parte das despesas, seu irmão Dinis abonou mil e tantos mil reis, e assim um outro. Simplício era o caixa da companhia, e com tais e tais condições a escritura de contrato os obrigava a conservarem-se reunidos durante três anos, que concluiriam no dia correspondente ao do seu desembarque na Austrália, e só nessa ocasião o caixa era obrigado a dar contas e reservaria para si um terço dos produtos. Eu vi a escritura, que mostra bastante parcialidade a favor do Simplício, o que naturalmente assim devia acontecer, porque todos os sócios eram trabalhadores de enxada, caseiros do mesmo Simplício, etc., que ele julgava fariam o que lhes fosse mandado. Realmente, era uma fortuna segura que fazia com 44 trabalhadores, ou fosse nas minas, estradas públicas, ou outros semelhantes trabalhos. Porém aquilo com que ele não contava foi o que realmente lhe sucedeu. Os homens, pouco depois de chegarem aqui, aconselhados por marinheiros portugueses, que por cá encontravam, começaram a abandonar a sociedade uns após outros, até que afinal o Simplício valeu-se do seu grande tacto para apalpar aquela qualidade de gente (que o tem), e soube conservar uns 16 até 20 com contrato mais favorável a eles, contrato que acabará dentro de quatro meses. Desde o principio, Simplício e sua gente pouco têm feito. Durante todo o tempo da sociedade, o único bom golpe de fortuna foi o arranjarem, em dois a três meses, 2 ou 3000 libras esterlinas, mas isso tudo se vai embora no tempo em que nada se faz. Eu não sei a razão por que o Dinis se foi embora; mas creio que para isso muito concorreu algum desgosto com o irmão, e aborrecimento de aturar os brutos dos homens deles, que aqui faziam de iguais, se não de senhores... Ainda não há muitos dias que eu falei com / 261 / o Simplício (eu resido a uma légua de distância dele), como quase todos os sábados falo, e ele me disse, conversando sobre os seus projectos, que, concluído em Novembro o seu contrato, no caso de lhe ficarem 500 libras ou daí para cima, ainda ia tentar por mais dois anos uma especulação sobre cultivo de terrenos. − Basta a respeito de Simplício e sua gente.

O mano havia de estranhar o resumido da minha carta antecedente; mas tão mal tinha a contar do meu passado, tão pouco do presente e tão poucas esperanças do futuro, que o meu desejo era escrever o mais resumidamente possível. Agora, contarei o que daí por diante me tem acontecido. Depois que Dinis Gago da Câmara saiu daqui, eu deixei o lugar que verdadeiramente se chama Creswick e fui para um pequeno lugar, distante duas léguas e meia, onde me conservei desde Maio do mesmo ano (1855) até fins de Setembro. Aí alguma coisa arranjei. Esgotando-se, porém, o terreno aurífero ali, passei-me sete léguas mais distante, onde estive até Fevereiro deste ano. Neste último lugar, nada adiantei e voltei para Creswick, resolvido a mudar o sistema de trabalho. Aqui, pude arranjar o associar-me a uma companhia de mineiros(8), cujo método de trabalho terei ocasião de mostrar no que passo a dizer.

Eu desejo dar-lhe alguma ideia do que são hoje as minas de ouro de Austrália, e do que foram. A cerca de 100 milhas de Melbourne se descobriram os primeiros campos auríferos da colónia. Milhares de pessoas correram ali, e como por / 262 / encanto as imensas planícies de Bendigo se cobriram de homens de todas as nações, não em meses, mas em algumas semanas. Muito foi o ouro que se tirou em quatro ou seis meses naquela localidade. As escoltas do governo nunca levavam para Melbourne, semanalmente, menos de 80.000 onças de ouro (peso). Logo em seguida, o grande Monte Alexandre, que é junto a estas planícies, entrou em cena, e para aqueles sítios, vales e outeiros, campinas, margens de ribeiros, etc., todos se desfaziam em ouro. Ninguém se contentava com um trabalho que lhe rendesse menos de 5 até 10 libras esterlinas diárias, porque se via frequentemente companhias de duas ou três pessoas tirarem em meio dia dezenas e mesmo centenares de onças de ouro. Como é de supor, todas as tripulações dos inumeráveis navios entrados diariamente desertavam e corriam às minas. Eis a razão por que ainda hoje uma grande porção do corpo de mineiros consta de marítimos. Esta e iguais classes da sociedade, desvairadas com a profusão do ouro, juntavam uma sofrível fortuna em um mês, ou mesmo em um dia (!), corriam à beira-mar, às cidades, ali consumiam tudo em dissipações de todo o género, e por fim, sem real, voltavam às minas, a enriquecer-se de novo, o que a muitos acontecia. Chegava a tanto o desprezo da riqueza entre aquelas estúpidas cabeças transtornadas, que muitas vezes, para luxo, acendiam seus cachimbos com notas de 5 ou 10 libras, etc.! Na verdade, quem chegava naquele tempo fazia fortuna quase certa, se tivesse boa cabeça. No tempo em que eu aqui cheguei, já estava acabando, para assim dizer, a idade de ouro dos mineiros: o ouro diminuía, e os mineiros aumentavam. Nos sítios onde mais ouro se tinha tirado, povoações fixas se estabeleceram, que serão as futuras cidades e vilas de Austrália, e neste andamento de tal forma tem crescido a população no interior, que já hoje é difícil atravessar um ou dois dias nas florestas sem encontrar alguma povoação ou estabelecimento de proprietários de carneiros. Digo proprietários, porque são estes os maiores capitalistas da colónia.

Antes de dizer alguma coisa acerca do método de trabalhar nas minas, é preciso dar uma ideia da posição geológica do ouro, porque da sua formação somente conjecturas se podem fazer. Nos terrenos onde há ouro acha-se primeiro uma camada, na superfície, de terra vegetal, ou húmus, cuja profundidade varia de um até oito pés, misturada com areia e quartzo. Depois, segue-se uma camada de barro, com quartzo igualmente, e por fim uma outra que em geral é composta de cascalho, argila, algumas vezes areia fina e sempre muito quartzo. É nesta camada (que) está misturada a maior porção do ouro, porque toda a terra o tem mais ou menos. Por baixo desta última, encontra-se aquilo a que / 263 / nós chamamos fundo, isto é, uma camada compacta de fino e puro barro, abaixo da qual nada se encontra, por mais que (se) profunde através dela, e assim progressivamente vai endurecendo até tal ponto, que nada a pode vencer, nem mesmo o rompimento com pólvora. Esta é, pois, uma camada primitiva do solo, que se estende por baixo de todos os terrenos supostos auríferos; e é este chamado fundo aquilo que todos procuram, atingido o qual, o mineiro ali observa se há ouro. Algumas vezes, estas camadas primitivas são compostas de pedra de lousa, em folhas perpendiculares, ou duma espécie de granito, igualmente impenetráveis. A profundidade em que se encontra este fundo é inteiramente variável, porque muda, para assim dizer, de um pé abaixo da superfície até duzentos (no que está explorado).

Ora diferentes são os métodos de trabalhar, conforme as circunstâncias do terreno. Se o fundo não se encontra a mais de quatro ou cinco pés da superfície, ordinariamente toda a terra é lavada para extrair o pouco ou muito ouro que tem; se o fundo é mais abaixo de cinco ou seis pés, já não vale a pena aproveitar todo o terreno, e então o mineiro abre um buraco ou poço redondo, de quatro pés de diâmetro, bastante para trabalhar dentro, e perpendicularmente o vai profundando, até que chega ao fundo; e ali procura ouro; se o não encontra, abandona este e procura outro lugar. Porém, se no fundo do seu buraco viu ouro, começa então a minar, isto é, faz corredores ao nível do fundo, extraindo tanta altura de terra quanta lhe parece que tem ouro. É preciso notar que, quando se descobre um novo lugar, uma regular companhia de mineiros (entre 6 e 10) não pode tomar para si mais de 24 pés quadrados, ou 36, conforme a dificuldade do trabalho; e, quando começa, marca o seu terreno, no centro do qual abre o poço. Assim, se no fundo dele encontra ouro, pode trabalhar subterraneamente o seu terreno, marcado à superfície. Sobre isto há muitas questões nos tribunais.

Há um lugar, distante daqui quatro léguas, chamado BaIlarat, onde o método de trabalhar difere muito deste. Em 1851, em seguida às descobertas do Monte Alexandre e Bendigo, se descobriu ouro em BaIlarat na superfície, e até 30 pés de profundidade; mas, à maneira que se foi trabalhando o terreno, os fundos foram descendo progressivamente, até que formaram linhas em diferentes direcções, cuja profundidade é hoje de 150, 200 e 220 pés. Estas linhas são como estreitíssimos vales, que correm naquela profundidade, e é nelas que se encontra acumulado mais ouro; mas as suas direcções são tortuosas, de forma que podem afundar-se dois buracos à distância de 40 ou 50 pés um do outro, e um deles encontrar o fundo em 150 pés, e o outro, a quem / 264 / a sorte destinou que caísse sobre a linha, somente chegar ao fundo em 200, que é a diferença da linha para as encostas dos outeiros subterrâneos que a bordam, Que trabalho, porém, não é aquele! Descreve-se um paralelogramo de cinco pés de comprimento por três de largura no solo, e este se começa afundando, segurando-o todo com fortes tabuões que encaixam uns nos outros de certa maneira. Em geral, todos os buracos, chegando a certa profundidade, são assaltados por imensa quantidade de água que, subterrada, naturalmente se acha embebida em camadas de cascalho e areia, não raras vezes de 50 pés de espessura. Esta água é quase toda tirada hoje a vapor. Muitas vezes se encontram também camadas subterrâneas de rocha, algumas vezes tão dura, que mesmo com pólvora não se afunda mais de seis polegadas por dia! É o trabalho mais perigoso e violento que tenho visto. Contudo, tal tem sido a riqueza extraída de BaIlarat, que não conta menos de 30 a 40.000 mineiros, afora o número de pessoas doutras ocupações, o que faz hoje uma sofrível cidade da colónia. O ouro é quase todo em bocados, e é frequente encontrarem-se de 10, 20 e mais arráteis. Em 1853, se tirou em BaIlarat o maior pedaço das minas de Austrália, e creio que de todas as conhecidas: 134 libras e 11 onças, peso de boticário.

Contudo, nunca me tentei a tais minas, porque conheço o perigo delas. Como não se têm descoberto lugares muito ricos modernamente, e a população das minas é mui grande − 300 a 400.000 habitantes −, tem-se ensaiado há tempos o método de extrair do terreno todo o ouro que se puder no mais curto espaço de tempo possível. Porém a Austrália é mui pouco cruzada de rios, e esses que tem são pobres. Quem, pois, se quiser dedicar a este método de extrair ouro tem algumas vezes de vencer obstáculos, como é, por exemplo, o conduzir água de rios por meio de longos canais a lugares onde o terreno é aurífero, e que ali não tem água. A água é indispensável para o que passo a dizer. Diferentes são as maneiras de extrair ouro do terreno, por o único meio que é a água. Se o ouro se encontra a olho, nada há mais a fazer do que pegar-lhe; se se vê, mas tão miúdo que não é possível tirá-lo à mão, lava-se na bacia. A bacia é uma espécie de peneira, com um fundo também chato, de lata ou estanho, com bordas, em vez de perpendiculares, oblíquas para o lado de fora. Esta se enche de terra, e assim se mergulha na água, segurando-a e vascolejando-a como quem peneira. De vez em quando, lança-se fora a água, que vai levando consigo parte da terra. Isto se faz repetidas vezes, até que a bacia tem lançado fora toda a terra, e no fundo aparece o ouro (se é que o há), que, em virtude do seu peso específico, tem, com a ajuda da água, passado para o fundo / 265 / da bacia através da terra. É isto o que se faz, quando o ouro é muito e a terra pouca; quando, porém, a terra é muito mais do que o ouro, a bacia, só por si, é insuficiente. Usa-se então duma dorna, na qual se deita terra até pouco mais de meia; acaba de se encher com água e depois, com uma pá de ferro de certo feitio, se mexe muito bem, no fim do que se tomba a dorna de lado para despejar a água e parte da terra de envolta com ela. Isto se repete tantas vezes quantas são necessárias para no fundo da dorna ficar uma pequena porção de terra, que se vaza numa pequena máquina, chamada berço, onde se lhe extrai todas as pedras que contém, e dali, passando-se à bacia, se conclui a operação, como acima disse. Hoje, porém, como já contei, o mineiro tem procurado diferentes meios para lavar grandes quantidades de terra em pouco tempo, e inquestionavelmente o mais rápido é o dos «slurices», ou canejas de água. É mui simples: canejas de madeira com um fundo chato se colocam, encaixadas umas nas outras, do comprimento que se quer (100 ou 200 pés), e com um pequeno declive. De espaço a espaço se coloca, atravessada no fundo das canejas, uma tabuinha de três ou quatro polegadas de altura. Uma sofrível quantidade de água corre constantemente dentro das canejas, e assim toda e qualquer porção de terra que se lhe lance dentro corre com a água, que a vai desfazendo; sai toda nas últimas canejas e deixa ficar o ouro depositado no fundo, encostado às tabuinhas. Isto é mui simples, como disse, mas é muito dificultoso o arranjar uma boa quantidade de água corrente, e bastantes vezes é preciso ir buscar correntes de rios a léguas de distância. Para isto, é indispensável o formar associações, grandes ou pequenas. Eu reuni-me a uma companhia destas (sete Portugueses e um espanhol). A nossa água tem meia légua de encanamento, e espero que o resultado não será mau.

Com a recepção das suas cartas, muito penhorado fiquei e confesso que todas as razões que me dá são demais para me convencer, e a mais forte de todas é a de nossa boa mãe. Mas eu hoje estou um pouco melhor e com mais esperanças e tenciono experimentar isto mais algum ano. Pode ser que a fortuna encarreire; e assim, ou bem ou mal, mais ano, menos ano, eu volverei com a esperança de os encontrar a todos vivos, satisfeitos e felizes. Se eu hoje abandonasse a parte que tenho nesta empresa, decerto que perderia, por isso que no princípio pouco valor tem, mas, acreditando-se, valem muito. Entendo por acreditar-se correr fama de que todos os terrenos que aquela água pode lavar são bastantemente auríferos. Eu muito quereria dizer da Austrália, suas minas, comércio, agricultura, artes e geral progresso, porque hoje estou habilitado para isso, se não como muitos, ao menos / 266 / como a maior parte dos colonistas; mas conheço que não é assunto para encerrar em umas poucas de cartas. Não obstante, eu cá vou vendo, nas minhas horas de ócio, se arremendo alguma coisa a esse respeito, porque sei que deve ser curioso para quem for estranho à Austrália. Muita gente se persuadirá que ainda hoje se vive por aqui no centro das florestas como em meio de selvagens. Engano. O ouro é milagroso. Não há lugar de minas onde não hajam (sic) escolas de instrução pública, templos de diferentes religiões, hospitais, associações filantrópicas, bancos, teatros, hotels (sic), livrarias, etc. Músicos, cantores, dançarinos de ambos os sexos, todos gostam de aqui vir admirar o metal luzente, e levá-lo, se podem. Ainda não há muitos meses que num dos teatros de BaIlarat esteve a célebre LaIa Montes. Enfim, a civilização vai penetrando através das florestas, e os aborígenes do país vão-se internando no interior, fugindo dela. Mui poucos aparecem nas povoações e esses, em vez de seguirem as virtudes do homem branco, só seguem os seus vícios. Inimigos do trabalho, vendem peles de animais indígenas, papagaios de diferentes espécies, para com o produto se embriagarem, fumar, etc. É raríssimo encontrar um que tenha ocupação, e mesmo, neste caso, é só a de pastor de carneiros. − Muito quisera contar; mas, por mais que diga, mais me há-de ficar inda por dizer(9). Por isso, irei dizendo alguma coisa nas minhas cartas, que espero sejam muito mais frequentes do que até agora. Peço respeitosos e afectuosos cumprimentos para minha muito prezada mana, que não tenho o gosto de conhecer, e toda a sua família. Muitas saudades aos amigos, com particularidade sempre Crispiniano e Jerónimo, e o mano acredite-me sempre o etc.

 

Minha querida mãe

É com toda a alegria e amor filial que um filho pode ter por sua mãe que pego na pena para lhe dar notícias minhas, de 5000 léguas de distância. Atègora, tenho escrito sempre à mãe e ao mano nas mesmas cartas, porque, fazendo-o separado, a ambos diria a mesma coisa, e mesmo agora lhe escrevo esta separadamente, não por o assunto ser diverso, mas porque, achando-me com mais oportunidade, é dever meu fazê-lo. Como estou certo que a mãe lerá a carta para o mano Bento, escusado é copiar o que nela digo, e por ela verá a minha querida mãe que desde que estou na Austrália é hoje que me vislumbra uma luz de esperança e que por isso tenho assentado / 267 / em me demorar mais algum tempo, a ver a face que toma o destino. Há três anos que estou na Austrália. Porque não me demorar mais algum tempo, a ver o resultado disto? Ninguém da minha família precisa de mim; ao contrário, tenho precisado eu. A minha querida mãe tem cuidados sobre mim, mas peço-lhe que não os tenha. É verdade que já aqui me achei mal e por algum tempo, apesar dos abonos que tive; mas isso mesmo me tem servido: aprende-se muito com aquilo e, além disso, já passou. Quanto a saudades, também eu tenho muitas, mas lembro-me que quanto mais me demoro, maior prazer terei quando tornar a abraçá-los. Por isso, peço muito à minha querida e boa mãe que viva sem cuidados sobre mim, para que, quando eu volte, a encontre satisfeita. E, por eu ter gastado para aqui seis meses, e falar acima em 5000 léguas, não julgue a mãe que estamos muito e muito longe uns dos outros, porque os aperfeiçoamentos dos homens fazem com que uma viagem ordinária para aqui seja hoje de 60 a 70 dias, e dentro em algum tempo será por terra (?) de 40 a 45 dias! Agora, como sei, muito bem que esta carta não é lida só por a mãe, dirijo-me à minha prezada madrinha e José Roque, expressando-lhes as minhas saudades e os meus sinceros desejos de que continuem a viver com a mesma felicidade com que sempre os conheci. Sei que têm galantes crianças e oxalá que Deus abençoe a sua família como eu desejo. O mesmo lhe peço também para a sua(10) querida mana Ana e para o Mesquita, e a Deus praza que não seja tarde o dia em que tenha o gosto de abraçar toda a minha família. Vou concluir desejando-lhes tão boa saúde como a que eu sempre tenho tido (!), e peço a minha mãe um viver livre de cuidados pela sorte do ............  S. etc.

Um saudoso abraço ao José Reinaldo e recomendações à Clara(11) e ao José(11), que não sei se ainda lá estarão.

BERNARDO XAVIER DE MAGALHÃES

_________________________________________

(1) Canguru, o mamífero marsupial, sempre estudado nos compêndios de zoologia e existente nos parques zoológicos. J. T.

(2) Tradução: A ocasião dificilmente se oferece, facilmente se perde. 

(3) − Tradução: o que a fortuna oferece. − Os dois irmãos eram versados na língua latina, especialmente o Dr. Bento de Magalhães.

(4) Filha de José Roque Machado e de D. Maria Casimira Xavier de Magalhães, e irmã, como já se disse em nota, do Dr. Edmundo de Magalhães Machado.

(5) Filha do Mesquita (Manuel António Loureiro de Mesquita), de quem abaixo se fala, e de D. Ana Augusta Xavier de Magalhães, irmã e madrinha do autor destas cartas. Notas de J. T

(6)José Reinaldo Rangel de Quadros Oudinot, literato e antiquário aveirense, nascido em 19 de Março de 1843. J. T.

(7)Entre a carta 3.ª, datada de 3 de Fevereiro de 1854, mas só acabada passados dezoito dias, e esta carta, nenhuma outra se encontra no manuscrito. É de crer, pelo que adiante se lê, que os afazeres de Bernardo de Magalhães o tenham impedido de ser mais assíduo em dar noticias, apesar da boa vontade manifestada anteriormente. J. T.

(8)A Ex.ma Senhora D. Maria da Conceição Faria de Magalhães, neta do Dr. Bento de Magalhães, facultou-nos recentemente, para estudo, várias cartas de José Estêvão, dirigidas a seu avô. Entre elas, há uma cuja primeira parte diz respeito à estada de Bernardo Xavier de Magalhães na Austrália. Apesar de datada sem indicação de ano, supomos que terá sido escrita em 1857. Ei-la:

«Bento

9 de Fevereiro

Hontem cncontrei (?) na rua do ouro um homem, que me chamou Magalhães. Chegando-se a mim pertendia (sic) que eu concordasse com elle em que tinha um Irmão na Australia. Não se mudava disso. Depois d'alguns reparos vim a conhecer que se tratava de seu Irmão.

Então apertei-o com perguntas a respeito delle. A (sic) uns meses que esteve com elle. Tem saude, não lhe falta nada e parece que ultimamente deu com um veio rico, e que está formando uma companhia para o explorar. Ainda tem vendas, e não sei mais nada. O que ha d'importante é que eu estive com quem o via. Estive para mandar o homem a Aveiro a sua may.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Amigo

José Estevam» J. T. 

(9) Palavras de CAMÕES, Lusíadas, Canto III, 5, 3-4. J. T.  

(10)No original, por lapso, tua. J. T.

(11)  − Eram por certo criados da família de Bernardo de Magalhães. J. T.

Página anterior

Índice

Página seguinte