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pág. 240
3.ª
Sydney, 3 de Fevereiro de 1854
Minha mãe e mano Bento
Do Rio de Janeiro escrevi para aí duas cartas, uma
datada de 11 de Junho, em que mandava dizer que tínhamos
chegado àquela cidade no dia 7 de Junho para consertar as avarias duma
abalroação, e outra de 27 do mesmo, que escrevi
somente para saberem se no meio da febre amarela eu teria
escapado, o que, felizmente para mim, assim aconteceu. Eu
mandava dizer que sairíamos no dia 29 (dia de S. Pedro);
porém só saímos no dia dois de Julho, pelas 8 horas da
manhã dum dia lindíssimo dos trópicos. O primeiro dia
parecia querer prognosticar-nos uma feliz viagem, e a proa
do nosso brigue cortava o mar velozmente, dirigindo-se ao
cabo da Boa Esperança. Transportámos a nosso bordo dois
passageiros franceses para Melbourne, e um alemão para
Sydney. Durante os primeiros sete a dez dias de viagem, o mar engrossava
um pouco por vezes, e as noutes tornavam-se dignas de atenção; mas não havia receio algum de
tormenta. É verdade que, ainda que o tempo se tornasse
tempestuoso, não havia que estranhar, porque estávamos
então em princípios de Agosto e fins de Julho, tempo em
que o Inverno é mais rigoroso. À maneira que nos íamos
afastando do trópico de Capricórnio e avançávamos por a temperada do Sul, seguindo para o Cabo, o tempo se tornava
mais áspero, a atmosfera coberta de nuvens dum amarelado aterrador, e as noites escuríssimas. Algumas vezes, o vento
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soprava tão violento, e o mar crescia tanto, que nos obrigava a correr
em popa; e, como o navio não era grande coisa para isto, nestas ocasiões
metia mares, que, posto não muito grandes, contudo faziam recear alguma fatalidade, porque, em
consequência da inexperiência do capitão, toda a nossa aguada vinha em
cima do convés, que eram umas vinte pipas, e isto jamais se pratica
nestas viagens. Ora, se um grande mar, lavando-nos o convés, nos levasse
a aguada pela borda fora? Enquanto não dobrássemos o Cabo, havia o
recurso de arribar à cidade do Cabo ,(imensa colónia inglesa), porque
trazíamos na câmara duas pipas de água, que nos chegava ainda para isso,
ou mesmo depois de dobrar o Cabo podíamos
arribar a Moçambique ou a alguma colónia francesa de Madagáscar. Porém,
sucedendo-nos a falta de água fora destas alturas, não havia mais onde
arribar. Era isto o que bastante nos inquietava. Com mar e ventos
progressivamente tempestuosos, chegou o dia 9 de Agosto. Estávamos,
porém,
três a quatro dias a dobrar o Cabo, com trinta e nove de viagem. Então
o vento soprou horrorosamente, e o mar agitava-se de uma maneira
extraordinária. De dia, íamos correndo sempre em popa, e com a mesma
tenção de correr de noute. Chegou finalmente esta. A tempestade não
diminuía; crescia, pelo contrário. O capitão gemia, deitado no camarote
com erisipela numa perna, e eu e o piloto, embrulhados nos nossos oleados, vigiávamos o quarto. Eram
10 horas e meia. O marinheiro do leme, homem velho,
era de vista cansada; na escuridade da noite não pôde ver um escarcéu
como uma montanha, que crescia do lado, para lhe dar a popa do navio; e,
quando nós a vimos, já não era tempo. A vaga veio em cima do navio, e
com duas atrás dela deixou o navio coberto de água. Arrombaram-se
portinholas para escoar; alijou-se bastante carga para aliviar o navio;
porém da água (coisa principal) nem uma só pipa se
perdeu! A noite assim continuou até ao dia seguinte, em
que ainda perdemos um bote. Passados, porém, dois dias,
o tempo tornou-se sereno, e passámos pela altura do cabo da Boa Esperança magnificamente. Por pouco: dentro em três dias, o mar
tornou-se outra vez furiosíssimo, e o vento atrevido. No dia 17 do mesmo
mês de Agosto, vendo que não podíamos continuar a seguir daquela
maneira, pusemos
de capa, e foi então que um furacão, muito frequente naqueles mares, nos
quebrou o pau de bujarrona e o mastaréu de velacho, estando ambos em
árvore seca! Nenhum dos de
bordo disse que vira já tão desatinado tufão. Em seguida, com
fortíssimos ventos, mares extraordinariamente grossos, chuvas de água e
pedra, gelos, chegámos à vista da pequena ilha de Amsterdam, que está
junto à de S. Paulo, a meia viagem do Cabo para a Austrália; e, com pouca diferença no
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tempo, fomos continuando a nossa viagem, até que nos colocámos defronte
do cabo Luvin e, avançando ao longo da costa, chegámos à entrada do
estreito de Bass, temido pelos viajantes modernos, por causa das muitas
pedras que o obstruem. À entrada desta terrível passagem chegámos no dia
30
de Setembro, com noventa dias de viagem do Rio de Janeiro.
Jamais a atmosfera se tinha mostrado tão ameaçadora e, o que era pior, a
aproximação da terra cobria tudo de nevoeiro espesso; e, como estávamos
quase em calma, receávamos
que a corrente nos arrastasse para a terra. O Sol, Lua e
estrelas faltavam havia dois dias; nada se sabia, com certeza, da nossa
latitude e longitude. O único recurso era abrigarmo-nos no porto mais
próximo dali e esperar bom tempo.
A noite chegou; toda foi passada em atrapalhação, porque nada se via com
a névoa, e o navio estava em calma. Chegou finalmente a manhã; cápulos
não havia; éramos obrigados
a navegar debaixo do estúpido sistema da barca. A terra não aparecia; o
vento refrescava bastante, e pusemos a proa onde nos parecia que ela
deveria estar. Daí a três horas apareceu e fomos navegando ao longo
dela; porém ninguém tinha conhecimento da sua configuração. Que fazer?
Eu e o piloto estudámos no mapa o desenho dela e, sentados na verga do
joanete, íamos confrontando a costa com o mapa, até que ao meio-dia
julgámos descobrir a entrada de Porto Filipe. Pôs-se-lhe a proa; mas
dentro em meia hora reconhecemos que aquilo que nos parecia barra era
uma ponta em forma de
enseada. Que ponta seria? Observámos segunda vez o mapa
atentamente e lá descobrimos a mesma com igual configuração e, um pouco
adiante, a entrada de Porto Filipe. Os peitos se dilataram então,
porque a ocasião tinha sido terrível; e, debaixo sempre de temporal,
entrámos daí a meia hora por a barra dentro, onde demos fundo às 2
horas da tarde do dia 3 de Outubro. Como tínhamos alijado carga, desarvorado, perdido um bote e abalroado, e ultimamente arribado ali
segunda vez forçadamente, era mister protestar em juízo naquele porto,
segundo o código. Ora tinha-me esguecido dizer que desde Amsterdam o
navio começara a fazer água, o que também nos inquietou bastante, por
causa da distância da terra. Porto Filipe é o nome duma imensa baía que
tem,
no seu maior comprimento, cerca de 30 milhas e 15 na sua
maior largura. Ao fundo dela está edificada a cidade de Melbourne, que
não tem mais de doze anos, mas que tem progredido espantosamente depois
da descoberta do ouro em 1851, por isso que a maior parte dele tem
saído das minas que lhe ficam próximas. Nas circunvizinhanças desta
cidade se têm
modernamente feito grandes povoações, que crescem diariamente com a
emigração europeia. Da barra onde fundeámos a Melbourne eram, pois, 30
milhas. O capitão meteu-se num
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dos navios, que aos vinte e trinta entram diariamente naquele
comercialíssimo porto, e foi a Melbourne tratar dos seus negócios de
avarias. Por lá se demorou oito dias, e nós entretanto íamos todos os
dias à terra, que ali nos ficava próxima, passear por essas imensas
florestas de que tanto abunda este país. Ali perto só havia uma pequena
aldeia, junto do farol. As árvores que as formam são todas cedros, não
como
o cedro do Líbano, de ramos pendentes, porém semelhantes aos nossos pinheiros, posto que com muito maior vegetação e tão juntos,
que se não pode andar sem abrir caminho com os braços. Neste país não há
serpentes, se exceptuarmos o alicanço aquático, nem tão pouco animais
bravios. Alguns lugares há onde se encontram cães silvestres, mas um só
não é temível. Cabe aqui dar-lhe notícia dum animal indígena do país,
chamado «Kangaroo»,(1) na língua dos selvagens, e que os Ingleses
adoptaram. Este animal é semelhante a
uma grande cabra, mas sem cornos. As suas pernas têm o duplo
comprimento dos braços; é por isso que eles não podem andar senão com
muita dificuldade. Em recompensa, eles saltam, firmando-se sobre a parte
posterior, a uma distância de vinte pés, com a maior facilidade. O seu
ouvido é finíssimo, e a sua caça, que é feita com galgos, muito difícil.
Quando o Kangaroo é surpreendido de perto, logo que ele dá fé por uma
série de saltos desaparece admiravelmente através das campinas. A sua
carne é muito preferível à de boi, e a pele muito boa para calçado, de
que há muito.
Assim, estivemos na entrada de Porto Filipe oito dias,
em que voltou o capitão, e no dia seguinte, 12 de Outubro,
nos fizemos de vela para Sydney. Atravessámos o estreito de Bass com um
dia magnífico, observando, de trezentos passos talvez, todos esses
rochedos que tanta vítima têm feito com mau tempo. Finalmente, no dia 24
de Outubro fundeámos dentro de Porto Iackson (é assim que se chama
esta baía), e daí a quatro horas defronte da fortaleza de Sydney.
Depois que esta baía foi descoberta, há sessenta anos, goza da reputação
de ser a melhor do mundo. Com efeito, ela é admirável. Parece um vasto
rio que entra por a terra dentro,
num comprimento de 50 milhas, todo bordado por enseadas que mais parecem
docas artificiais que naturais, tanta é a
comodidade que oferecem para o comércio. Sydney é a capital das colónias
inglesas na Austrália, e é uma cidade termo médio entre Lisboa e Porto,
aproximando-se mais àquela que a esta. Aqui, tudo é caríssimo, porém não
tanto como em
Melbourne, onde cortar cabelo custa 1 shelling, fazer a barba
/
253 / 1 shelling, lavar um lenço 1 shelling, lavar um par de meias
ou coturnos 1 shelling, e, se não tudo, ao menos a maior
parte na mesma proporção; porque em ambas as partes os
ganhos são relativos, porque em Melbourne quase todos os
ofícios mecânicos têm de jornal 1 libra até libra e meia, e
quanto mais os ofícios são de primeira necessidade, mais
ganham, como carpinteiros, pedreiros (isto é: canteiros),
alfaiates, sapateiros, etc. − Nesta cidade, os jornais daqueles
ofícios montam também a uma libra, e mesmo em qualquer
coisa que um homem se ocupe ganha dinheiro. − Muitos vão
trabalhar para as minas sem distinção de classes; o trabalho
delas é duríssimo e proveito incerto. É uma verdadeira
lotaria; pode-se ter muito dinheiro em pouco tempo e pode-se
andar por lá toda a vida sem ter podido fazer fortuna; porém
ouro para a sustentação diária todos encontram. As minas estão
espalhadas pelas montanhas do Ofir e Montes Azuis.
Quer-se trabalhar nas minas? Arrenda-se uma porção de pés
quadrados ao governo por bagatela e cava-se ali perpendicularmente como um poço (porque não pode fugir dos seus
limites), até encontrar ouro. Este sai umas vezes em pó,
outras em pedra, já puro e da cor amarela que lhe é própria; de maneira
que não precisa conhecimentos mineralógicos
alguns para o conhecer. A pedra maior que se tem tirado
nas minas de Ofir pesava 130 arráteis. Elas vão sempre produzindo mais
ou menos, e calcula-se em 100.000 pessoas a
população das minas. Ainda há pouco se descobriu outra
que parece dar ouro bastante. Nas minas e mesmo na maior parte da cidade de Melbourne as casas são tendas de guerra,
isto é, de lonas e oleados. Os Ingleses mesmo não lhe chamam outra coisa
que «tents». − As comidas nas minas são sofríveis. As águas potáveis
são, porém, tão nocivas, que
se não bebem senão fervidas com chá, que aqui é baratíssimo: custa um arrátel 12
pence. − Quanto ao clima, é muito
mais quente que o nosso, e menos frio de Inverno. Quando
faz calor demasiado, é infalível fortíssima trovoada de tarde ou de
noite; mas são trovoadas de que nós aí não fazemos
ideia, porque nunca as vi lá semelhantes. A atmosfera torna-se dum vermelho carregado e azulado; a claridade do dia
enfraquece com as camadas de nuvens, tão grossas algumas
vezes, que parecem tocar os edifícios mais elevados. Uma
chuva miúda se segue; depois um tufão continuado, e a electricidade começa então
duma maneira espantosa. Numa
destas trovoadas, um raio caiu sobre o tope do mastro
grande duma galera dinamarquesa que estava junto de nós
na doca, entrou no porão, estando as escotilhas fechadas, e
saiu por o costado, fazendo um buraco na madeira e no cobre. É raro que alguma destas trovoadas não faça mais ou menos
estragos, mas no Inverno são raras. − Falando agora da fertilidade
/ 254 / do país, creio
que a natureza não se mostrou tão grande e
liberal em outra parte como aqui. Encontram-se os vegetais e as frutas
de todos os climas. Até mesmo se faz já ali um vinho, ainda que pouco.
Um rapaz, meu conhecido, filho dum negociante português em Londres
(sobrinho da Baronesa de Ancede, do Porto), mandou ao pai um pequeno
presente de vinho colonial de três qualidades, que muito pouco
descombinavam do vinho do Porto, Bordeaux e Reno. Por falar de bebidas,
cabe aqui dizer que se bebe nesta cidade horrivelmente, creio que muito
mais do que em Londres (proporção guardada). É espantoso o número de Public
Houses (tavernas) que há nesta cidade, e todos fazem grande negócio. A
razão disto é porque todos os mineiros perdulários que fazem alguma fortuna aqui vêm todos parar, e tudo
dissipam principalmente com as mulheres do país, que são
em geral formosas, mas também desmoralizadas em último
grau. − Aqui há um teatro dramático inglês e uma irrisória companhia
de cavalinhos. Se exceptuarmos os mineiros de classe rústica e
marinheiros, que ganham aqui de soldada 10 a 12 libras por mês (!),
todos pensam só em trabalhar e ganhar dinheiro para procurarem suas
pátrias. Julgo que é
a razão que mais concorre para a carência de divertimentos
públicos. − Usam-se aqui muito as regatas, como em Veneza.
As melhores e mais respeitáveis casas são de desterrados que o governo
para aqui mandava em outro tempo, e alguns dos quais fizeram imensas
fortunas na descoberta das minas com
diferentes especulações. Os indígenas do país, que são negros,
de formosos cabelos negros corredios, são mui dados ao trato, ainda que
inteiramente selvagens. Encontram-se nas matas, pelo interior, a
distância de dez léguas para cima, e mesmo habitam junto às pequenas baías onde os Ingleses vão fazer com eles seu negócio de permutação. O governo tem colónias em quase
toda a beira-mar do continente. Esta, porém,
que é a beira-mar do Sul e Este, se chama Nova Gales do
Sul; divide-se em três províncias: Nova Gales do Sul, propriamente dita, de que é capital Sydney, que também o é
das colónias e
porque aqui reside o governo; província de
Vitória, capital Melbourne; e província do Rei Jorge, capital
Albany. Além disto, há muitas outras cidades e grandes
povoações, tanto na costa como no interior. Ao sul da costa,
do outro lado do estreito de Bass, está a grande e fertilíssima
ilha de Van Diemen, toda povoada também debaixo da jurisdição do Governo Geral das Colónias e que já pode abastecer
a grande parte do continente com seus cereais. As duas
grandes ilhas de Nova Zelândia, a dez dias de viagem daqui,
também colonizadas, são proveitosas por as suas madeiras
indígenas de construção naval e doméstica, além dalguns lacticínios, cereais, etc. Os naturais dela são muito capazes
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de indústria, e trabalhadores. Julgo que não haverá cidade
onde se encontrem em tanta variedade diferentes habitantes do globo. O
geral da população são Ingleses e, mais que tudo, Irlandeses. Depois
destes, o maior número é de Alemães, de todos os estados da
Confederação; em seguida, Franceses, e depois é uma vasta mistura de
Chinos, índios, Persas, Árabes do Mar Vermelho-Norte, Americanos,
Peruvianos, Mexicanos, Chilenses e, enfim, também se encontram
bastantes Portugueses, a maior parte das nossas colónias
do Atlântico e da índia. − As únicas exportações deste país,
como é sabido, são ouro, riquíssimas lãs, sebo, e pouco mais.
Julgo, porém, que, na falta do ouro, a lã poderá sustentar, se não tão
grande, ao menos sempre um respeitável comércio. São estes, pouco mais
ou menos, os conhecimentos que por ora tenho deste país.
Agora é tempo de falar de mim; mas para isso preciso de lançar mão de
outro princípio. Alucinados com as palavras minas de ouro de Austrália,
o dono e capitão do brigue
Amália, que também nele tem parte, às cegas receberam
uma carga de vinhos, arranjada por um tal inglês do Porto, Carlos
Coverley, e com um pequeníssimo frete deu o navio à vela para Sydney,
confiados, segundo lhe tinham dito, num frete vantajosíssimo de lã e
ouro, e sem terem conhecimento algum desta praça. Eu menos o sabia que
eles, por a pouca prática do comércio. O resultado desta ignorância foi
chegar aqui e nada encontrar. É certo que aqui há fretes de subido
preço; só, porém, para uns cem navios que andam na carreira de
Inglaterra para aqui, todos de apuradíssima construção, e dentre 1000 a
3000 toneladas de lotação, e alguns de 3500. Ora um pobre brigue
português de 300 toneladas que podia valer no meio desta extraordinária
navegação? Como é de supor, o consignatário ou agente do navio declarou
logo que fretes daquela qualidade não haviam (sic), mas que se
arranjava ir buscar à Cochinchina uma carga de guano para ir levar à Améríca do Norte. O capitão, porém, não tinha ordens francas e, ainda
que as tivesse, dizia ele que tal carga não iria buscar, porque lhe
estragava o navio; e, na verdade, não há navio e tripulação de guano que
não fiquem mais ou menos estragados, em consequência da sua natureza
ardentíssima. A sua carta de ordens lhe ordenava primeiro que vendesse
o navio até ao preço de 3000 libras, ou pouco
menos; na falta disto, carregar lã e sebo por conta, até um
certo preço, e na falha de tudo ir em lastro para Pernambuco. A carga de lã e sebo era impraticável, tanto por carência de
dinheiro, como por a altura dos preços. Seguia-se vender o navio. O
agente logo disse que ele não dava o
preço requerido, mas que daria de libras 2000 a 2500. Ora
o capitão é homem muito desconfiado com o seu tanto de
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256 /
estúpido; começou logo a desconfiar que o queriam comer.
Começaram desinteligências entre ele e o consignatário, que puseram tudo
em miserável estado. O navio foi duas vezes
à praça e de ambas as duas dava um ridiculíssimo preço.
O capitão ainda mais desconfiava de trama do agente e chegou a tal estado de loucura, que o vi algumas vezes, de alucinado,
prestes a lançar-se pela borda fora. Uma das razões
que concorria para isto era que ele não falava nada inglês, e o agente
nada português; por consequência, desconfiava sempre, apesar dos
intérpretes. Afinal, foi resolvido que o
navio saísse daqui, porque felizmente puderam-se arranjar marinheiros
portugueses para o levarem a Pernambuco por
45 libras cada um, porque aqueles que no brigue tinham
vindo, a esses o capitão tinha despedido (quando tencionava vender o
brigue) e já tinham saído todos para Londres,
fazendo parte da tripulação dum vapor. O navio foi empenhado nas
soldadas, porque já não havia dinheiro! Enfim, foi uma desgraça para o
navio, já por fatalidade, já por a
nenhuma prática e experiência que o capitão tinha destes negócios,
porque é de notar que nunca navegou senão no tráfico da escravatura de
África, que não teve relação de qualidade alguma com os negócios de navegação lícita.
À vista,
pois, do último destino do navio, eu comuniquei logo ao
capitão a minha decisão de ficar por aqui, e ele prontificou-se
a abonar-me o dinheiro que o seu malfadado negócio lhe
permitisse. Emprestou-me, pois, libras esterlinas 30, de que lhe passei
recibo; e, como não tinha outra pessoa do conhecimento dele, de quem as pudesse receber, senão o Joaquim
da Costa Leite, foi a ele que o enviei, prevenindo agora o mano disto,
para dar as ordens mais convenientes. 30 libras esterlinas em Portugal é
um dinheirão; neste país pode-se calcular na proporção de 30 pintos. Eu
resolvi ficar aqui,
porque alguma coisa me diz que ganharei aqui mais dinheiro
que em outra qualquer parte. Tenho de lutar a princípio
com um inconveniente, que é a língua; essa, porém, em três meses se
fala inteligivelmente. Não sei, por ora, ainda aquilo
que me fará mais conta; é certo, porém, que, seja qual for o
modo de trabalhar, em tudo se ganha mais ou menos dinheiro. − Em relação
à soma que pedi, pode o mano dispor do pouco que tenho do pai, porque
sabe perfeitamente que a nossa amizade não é de admitir chicanas em
qualquer tempo, e
mesmo sobre isto o mano tem muito que dizer, e eu muito que calar.
(Mulheres! Alucinaram-me já; hoje rio delas!).
Eu não estou resolvido a voltar à pátria sem poder viver sem trabalhar,
porque a fortuna se deve procurar onde é mais fácil encontrá-la; até
mesmo − quem sabe? − me tentarei a
experimentar a sorte das minas, o que faz a maior parte da
gente de todas as classes. Trabalham seis meses ou um ano.
/
257 /
[VoI. XV
- N.º 60 - 1949]
Se encontram fortuna, bem está; se não, lançam mão doutros recursos. O
país é saudável a mais não desejar. O gás existe aqui há alguns anos já,
e está começado um caminho de ferro daqui para Melbourne (na distância
de cerca 200 léguas portuguesas), para cujos trabalhos chegam
constantemente navios carregados com 300 e 400 engajados do governo.
Enfim, este país cresce prodigiosamente cada dia. A navegação inglesa
tem chegado a aquirir (sic) uma rapidez fabulosa nas comunicações
europeias com a Oceania. É muito ordinário chegarem aqui navios de vela
de Inglaterra com 70 a 80 dias, pouco mais do que a mala do correio por
o istmo de Suez, que se demora 60 a 70 dias. Que diriam hoje os nossos
navegadores de bons séculos, quando levavam um ano
a fazer uma viagem à Índia? A religião mais seguida aqui
é a católica romana, que tem um bispo e uma catedral muito decente,
enquanto se não conclui outra, que se está edificando com sumptuosidade.
É verdade que a religião do governo é a protestante; porém a outra é
a mais seguida, por causa das muitas missões. É admirável ver as
cerimónias da igreja romana aqui, que são feitas com o melhor gosto e
respeito possíveis, e de que aí não se pode fazer ideia nos nossos
templos imundos. Eu emprego esta palavra, porque nenhuma
acho mais própria, à vista do que aqui vejo. − Esta carta já vai longa,
posto que equivalente à distância de 4000 léguas que nos separam. Não
é, porém, por hoje sermos antípodas que se me afrouxam as lembranças
desse canto de Portugal. O pensamento é imenso, e as saudades da minha
família são sempre as mesmas. Eu hei-de escrever sempre que puder e
desejo sempre receber cartas daí. Eu recebi uma sua, que tenho diante de
mim, em que toda a família me escreve. Sensibilizou-me bastante,
e agora
mesmo estou chorando ao
relê-la. Occasio aegre offertur, facile amittitur(2)
− diz o mano na
sua carta. É por isso que aqui me demoro, a ver quod fortuna offert
(3);
mas tenho fé que morrerei em
Aveiro. − Quando as pequerruchas Beatriz(4) e Elosinda(5) começarem a
compreender alguma coisa, que repartam também algum bocadinho de
afeição com um tio que não conhecem. A mana Ana pedia-me uma procuração
de padrinho, mas calculou mal o tempo da resposta. A todos agradeço
muito
/
258 / as suas lembranças e peço recomendações para quem se lembrar de mim, e
aqui nomeio especialmente José e João Roque, Mesquita, Reinaldo(6),
Jerónimo, Crispiniano, e os meus antigos condiscípulos Daniel, e
Barbosa, Luís Cipriano, etc., etc.
Esta carta está escrita há dezoito dias, à espera da mala do correio, e
durante este tempo tenho algumas correcções a fazer, vindas de pessoa
bastantemente habilitada para isso: é um engenheiro, sobrinho também da
mesma baronesa de Ancede, de quem acima falei. − As árvores que abundam
neste país não são cedros, porém mui semelhantes a eles. Há, porém, uma
extraordinária abundância da árvore-ferro, como aí lhe chamam os
marceneiros. Os cedros são em abundância em New Zeeland. As serpentes
são, com pequena diferença, como as que há em Portugal, tanto em número,
como em tamanho, porém mui venenosas. − As colónias, além da divisão das
províncias, estão divididas em condados, exactamente como a Inglaterra.
São 17. − Há entre as tribos selvagens uma rara originalidade que não se
encontra em outra parte do mundo habitado. Eles não conhecem arma de
qualidade alguma senão a azagaia, muito conhecida já, e o bumareign.
Esta arma e o seu uso é a originalidade de que falo. O seu feitio é o
seguinte ﺭ
[uma lua em quarto crescente, o mesmo que boomerangue], e é nada mais do que um bocado de pau-ferro. Quando
querem, arremessam-na sobre qualquer objecto, e a arma vai, girando,
tocar no corpo indicado e volta a cair no lugar onde o selvagem quer.
Ainda mais. Uma ave vai voando ao longe, junto à terra. O selvagem
arremessa o bumareign. O pássaro é morto e envolvido na arma (e) vem
cair com ela aos pés do atirador ou onde ele quer. O maior espanto é que
a arma, depois de despedida, não tem mais contacto físico com o atirador,
de corda, ou de arame ou doutra qualquer coisa. É desconhecida ainda
para os colonos a maneira de usar desta arma,
cujo uso deve basear-se certamente em algum princípio físico muito pouco
conhecido. Nem mesmo todos os selvagens sabem fazer uso
perfeito desta arma, porque tem o perigo de poder a arma, na sua volta,
matar o mesmo que a atirou.
Esta carta vai duplicada por outra via, porque não é muito raro o
extraviarem-se. Segunda vez, adeus, e adeus até um dia, em que eu espero
tornar a abraçar toda a nossa família. A mãe lance de lá a bênção ao seu
saudoso filho, e o mano e manas e seus maridos recebam as saudades também do
Seu filho e irmão afectuoso,
Bernardo
/
259 /
Eu hei-de escrever todas as vezes que tiver ocasião, e o mesmo desejo
que de lá façam. Como pode acontecer que quando aqui chegar alguma
carta, que eu esteja noutra parte, devem dirigir as suas cartas para
Londres, desta maneira: Mr. M. J. Soares − Esq.re n.º 34, Great Tower
Street − London; isto é, assim deve ser a direcção, envolvendo a carta que
vier para mim, a qual deve ser sobrescritada com o meu nome, com a competente direcção para Sydney
− New South Walles, à
casa do Sr. M. I. Soares - Esq.re. Isto é preciso assim, porque o tal
Soares de Londres, que é pai do daqui, tem muitos negócios e pode
esquecer-se, sem estas especificações, da direcção das cartas.
No dia 20 de Janeiro se receberam aqui as primeiras notícias do
rompimento da guerra turco-russa, e diariamente vêm notícias, que se não
sabe se verdadeiras ou falsas. Ultimamente, diz-se que se sublevara
parte da Pérsia, o Belouchistan e os Afgans; e, há coisa de oito dias,
soube-se a morte da rainha de Portugal, que o rei era regente, e
suspeitas de revoltas. Esta carta é concluída hoje, 24 de Fevereiro,
porque sai amanhã a galera Wooloomooloo com a mala do correio por cabo
Hom. É verdade: falei antes de ontem com o rei das ilhas, Tange Taboo,
que fala bem espanhol. E um quidam que deixou a nação (!) entregue ao
seu Cuaquiamo (espécie de ministro), para vir ver a cidade de
Sydney! É uma originalidade aí, mas muito trivial aqui, em que estes pobrezitos chefes de ilhas do Pacífico. que se intituIam
reis, andam passeando com todo o mundo. Aquele outro era um homem bem sensato e de bom pensar. Esta
cidade é uma babilónia de raças. Quem mais línguas fala ganha bastante
dinheiro como intérprete. Os telhados das casas todos são ou de madeira
ou de lousa, o que mostra muito melhor resultado do que a telha. As
casas, como em Inglaterra, são ou de tijolo ou de pedra. Há edifícios
bons, mas não se pode dizer que haja nenhum de merecimento. Para estes
ou é ainda cedo, ou será costume de colónias. A única coisa admiravelmente extraordinária é o jardim público, não tanto por a arte,
que não tem nenhuma, mas por os pontos de vista, arvoredos e prodigiosa vegetação de toda a
espécie. Muito diria mais, mas guardo para um outro
período, em que possa dizer de mim, mais positivamente.
Adeus, e não se esqueçam de mim. − Última novidade. Um
capitão americano descobriu, há coisa dum mês, um pequeno novo
arquipélago aqui, ao sudeste, no Pacífico.
/
260 /
Creswick, 10 de Setembro de 1856
Mano Bento
A última carta que lhe
escrevi foi aquela que levou o
meu bom amigo Dinis Gago da Câmara. Como tenciono ser bastante largo
nesta, dir-lhe-ei o que sei acerca dele e de seu irmão Simplício, que
aqui reside perto(7). No princípio de Agosto de 1853, Simplício Gago
da Câmara saiu de S. Miguel para Geelong (Austrália), com uma sociedade
de 44 homens e 4 mulheres. Ele abonou a maior parte das despesas, seu
irmão Dinis abonou mil e tantos mil reis, e assim um outro. Simplício
era o caixa da companhia, e com
tais e tais condições a escritura de contrato os obrigava a
conservarem-se reunidos durante três anos, que concluiriam no dia
correspondente ao do seu desembarque na Austrália, e só nessa ocasião o
caixa era obrigado a dar contas e reservaria para si um terço dos
produtos. Eu vi a escritura, que mostra bastante parcialidade a favor do
Simplício, o que naturalmente assim devia acontecer, porque todos os
sócios eram trabalhadores de enxada, caseiros do mesmo Simplício, etc.,
que ele julgava fariam o que lhes fosse mandado. Realmente, era uma
fortuna segura que fazia com 44 trabalhadores, ou fosse nas minas,
estradas públicas, ou outros semelhantes trabalhos. Porém aquilo com que
ele não contava foi o que realmente lhe sucedeu. Os homens, pouco depois
de chegarem aqui, aconselhados por marinheiros portugueses, que por cá
encontravam, começaram a abandonar a sociedade uns após outros, até que
afinal o Simplício valeu-se do seu grande tacto para apalpar aquela
qualidade de gente (que o tem), e soube conservar uns 16 até 20 com
contrato mais favorável a eles, contrato que acabará dentro de quatro
meses. Desde o principio, Simplício e sua gente pouco têm
feito. Durante todo o tempo da sociedade, o único bom golpe de fortuna
foi o arranjarem, em dois a três meses, 2 ou 3000 libras esterlinas,
mas isso tudo se vai embora no tempo em que nada se faz. Eu não sei a
razão por que o Dinis se foi embora; mas creio que para isso muito
concorreu algum desgosto com o irmão, e aborrecimento de aturar os
brutos dos homens deles, que aqui faziam de iguais, se não
de senhores... Ainda não há muitos dias que eu falei com
/
261 / o
Simplício (eu resido a uma légua de distância dele), como quase todos os
sábados falo, e ele me disse, conversando sobre os seus projectos, que,
concluído em Novembro o seu contrato, no caso de lhe
ficarem 500 libras ou daí para cima, ainda ia tentar por mais dois anos
uma especulação sobre cultivo de terrenos. − Basta a respeito de Simplício
e sua gente.
O mano havia de estranhar o resumido da minha carta
antecedente; mas tão
mal tinha a contar do meu passado, tão pouco do presente e tão poucas
esperanças do futuro, que o meu desejo era escrever o mais resumidamente
possível. Agora, contarei o que daí por diante me tem acontecido. Depois
que Dinis Gago da Câmara saiu daqui, eu deixei o lugar que
verdadeiramente se chama Creswick e fui para
um pequeno lugar, distante duas léguas e meia, onde me conservei desde
Maio do mesmo ano (1855) até fins de Setembro. Aí alguma coisa arranjei. Esgotando-se, porém, o terreno aurífero
ali, passei-me sete léguas mais distante, onde estive até Fevereiro
deste ano. Neste último lugar, nada
adiantei e voltei para Creswick, resolvido a mudar o sistema de
trabalho. Aqui, pude arranjar o associar-me a uma companhia de mineiros(8), cujo método de trabalho terei ocasião de mostrar no que passo a
dizer.
Eu desejo dar-lhe alguma ideia do que são hoje as minas de ouro de
Austrália, e do que foram. A cerca de 100 milhas de Melbourne se descobriram os primeiros campos auríferos da colónia.
Milhares de pessoas correram ali, e como por
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262 /
encanto as imensas planícies de Bendigo se cobriram de
homens de todas as nações, não em meses, mas em algumas semanas. Muito
foi o ouro que se tirou em quatro ou seis meses naquela localidade. As
escoltas do governo nunca levavam para Melbourne, semanalmente, menos de
80.000 onças de ouro (peso). Logo em seguida, o grande Monte Alexandre,
que é junto a estas planícies, entrou em cena, e para aqueles sítios,
vales e outeiros, campinas, margens de ribeiros, etc., todos se
desfaziam em ouro. Ninguém se contentava com um trabalho que lhe
rendesse menos de 5 até
10 libras esterlinas diárias, porque se via frequentemente
companhias de duas ou três pessoas tirarem em meio dia
dezenas e mesmo centenares de onças de ouro. Como é de supor, todas as
tripulações dos inumeráveis navios entrados
diariamente desertavam e corriam às minas. Eis a razão por que ainda
hoje uma grande porção do corpo de mineiros
consta de marítimos. Esta e iguais classes da sociedade, desvairadas com
a profusão do ouro, juntavam uma sofrível fortuna em um mês, ou mesmo em
um dia (!), corriam à beira-mar, às cidades, ali consumiam tudo em
dissipações de todo o género, e por fim, sem real, voltavam às minas, a
enriquecer-se de novo, o que a muitos acontecia. Chegava a tanto o
desprezo da riqueza entre aquelas estúpidas cabeças transtornadas, que
muitas vezes, para luxo, acendiam seus cachimbos com notas de 5 ou 10
libras, etc.! Na verdade, quem chegava naquele tempo fazia fortuna quase
certa, se tivesse boa cabeça. No tempo em que eu aqui cheguei, já estava acabando, para assim dizer, a idade de ouro dos
mineiros: o ouro diminuía, e os mineiros aumentavam. Nos sítios onde
mais ouro se tinha tirado, povoações fixas se estabeleceram, que serão as futuras cidades e vilas de Austrália, e neste
andamento de tal forma tem crescido a população no interior, que já hoje
é difícil atravessar um ou dois dias nas florestas sem encontrar alguma
povoação ou estabelecimento
de proprietários de carneiros. Digo proprietários, porque são estes os
maiores capitalistas da colónia.
Antes de dizer alguma coisa acerca do método de trabalhar nas minas, é preciso dar uma ideia da posição geológica do ouro,
porque da sua formação somente conjecturas se podem fazer. Nos terrenos
onde há ouro acha-se primeiro uma camada, na superfície, de terra
vegetal, ou húmus, cuja profundidade varia de um até oito pés, misturada
com areia e quartzo. Depois, segue-se uma camada de barro, com quartzo
igualmente, e por fim uma outra que em geral é composta de cascalho,
argila, algumas vezes areia fina e sempre muito quartzo. É nesta camada
(que) está misturada a maior porção do ouro, porque toda a terra o tem
mais ou menos. Por baixo desta última, encontra-se aquilo a que
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263 /
nós chamamos fundo, isto é, uma camada compacta de fino e puro barro,
abaixo da qual nada se encontra, por mais que (se) profunde através
dela, e assim progressivamente vai endurecendo até tal ponto, que nada a
pode vencer, nem mesmo o rompimento com pólvora. Esta é, pois, uma
camada primitiva do solo, que se estende por baixo de todos os terrenos
supostos auríferos; e é este chamado fundo aquilo que todos procuram,
atingido o qual, o mineiro ali observa se há ouro. Algumas vezes, estas
camadas primitivas são compostas de pedra de lousa, em folhas
perpendiculares, ou duma espécie de granito, igualmente impenetráveis. A
profundidade em que se encontra este fundo é inteiramente variável,
porque muda, para assim dizer, de um pé abaixo da superfície até
duzentos (no que está explorado).
Ora diferentes são os métodos de trabalhar, conforme
as circunstâncias do terreno. Se o fundo não se encontra a mais de
quatro ou cinco pés da superfície, ordinariamente toda a terra é lavada
para extrair o pouco ou muito ouro que tem; se o fundo é mais abaixo de
cinco ou seis pés, já não vale a pena aproveitar todo o terreno, e então
o mineiro abre um buraco ou poço redondo, de quatro pés de diâmetro,
bastante para trabalhar dentro, e perpendicularmente o vai profundando,
até que chega ao fundo; e ali procura ouro; se o não encontra, abandona
este e procura outro lugar. Porém, se no fundo do seu buraco viu ouro,
começa então a minar, isto é, faz corredores ao nível do fundo, extraindo
tanta altura de terra quanta lhe parece que tem ouro. É preciso notar que, quando se descobre um novo lugar, uma regular companhia de mineiros (entre 6 e
10) não pode tomar
para si mais de 24 pés quadrados, ou 36, conforme a dificuldade do
trabalho; e, quando começa, marca o seu terreno, no centro do qual abre
o poço. Assim, se no fundo dele encontra ouro, pode trabalhar
subterraneamente o seu terreno, marcado à superfície. Sobre isto há
muitas questões nos tribunais.
Há um lugar, distante daqui quatro léguas, chamado BaIlarat, onde o
método de trabalhar difere muito deste.
Em 1851, em seguida às descobertas do Monte Alexandre e
Bendigo, se descobriu ouro em BaIlarat na superfície, e até 30 pés de
profundidade; mas, à maneira que se foi trabalhando o terreno, os fundos
foram descendo progressivamente, até que formaram linhas em diferentes direcções, cuja
profundidade é hoje de 150, 200 e 220 pés. Estas linhas são como
estreitíssimos vales, que correm naquela profundidade, e é nelas que se
encontra acumulado mais ouro; mas as suas direcções são tortuosas, de
forma que podem afundar-se dois buracos à distância de 40 ou 50 pés um
do outro, e um deles encontrar o fundo em 150 pés, e o outro, a quem
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264 /
a sorte destinou que caísse sobre a linha, somente chegar ao fundo em
200, que é a diferença da linha para as encostas dos outeiros
subterrâneos que a bordam, Que trabalho, porém, não é aquele!
Descreve-se um paralelogramo de cinco pés de comprimento por três de largura no solo, e este se começa
afundando, segurando-o todo com fortes tabuões que encaixam uns nos
outros de certa maneira. Em geral, todos os buracos, chegando a certa
profundidade, são assaltados por imensa quantidade de água que,
subterrada, naturalmente se acha embebida em camadas de cascalho e
areia, não raras vezes de 50 pés de espessura. Esta água é quase toda
tirada hoje a vapor. Muitas vezes se encontram também camadas
subterrâneas de rocha, algumas vezes tão dura, que mesmo com pólvora
não se afunda mais de seis polegadas por dia! É o trabalho mais perigoso
e violento que tenho visto. Contudo, tal tem sido a riqueza extraída de BaIlarat, que não conta menos de 30 a 40.000 mineiros, afora o número de pessoas doutras ocupações, o que faz hoje uma sofrível
cidade da colónia. O ouro é quase todo em bocados, e é frequente
encontrarem-se de 10, 20 e mais arráteis. Em 1853, se tirou em BaIlarat
o maior pedaço das minas de Austrália, e creio que de todas as
conhecidas: 134 libras
e 11 onças, peso de boticário.
Contudo, nunca me tentei a tais minas, porque conheço o perigo delas.
Como não se têm descoberto lugares muito ricos modernamente, e a
população das minas é mui grande − 300 a 400.000 habitantes −, tem-se
ensaiado há tempos o
método de extrair do terreno todo o ouro que se puder no mais curto
espaço de tempo possível. Porém a Austrália é mui pouco cruzada de rios,
e esses que tem são pobres. Quem, pois, se quiser dedicar a este método
de extrair ouro tem algumas vezes de vencer obstáculos, como é, por
exemplo, o conduzir água de rios por meio de longos canais a lugares
onde o terreno é aurífero, e que ali não tem água. A água é
indispensável para o que passo a dizer. Diferentes são as maneiras de
extrair ouro do terreno, por o único meio que é a água. Se o ouro se
encontra a olho, nada há mais a fazer do que pegar-lhe; se se vê, mas
tão miúdo que não
é possível tirá-lo à mão, lava-se na bacia. A bacia é uma espécie de
peneira, com um fundo também chato, de lata ou estanho, com bordas, em
vez de perpendiculares, oblíquas para o lado de fora. Esta se enche de
terra, e assim se mergulha na água, segurando-a e vascolejando-a como
quem peneira. De vez em quando, lança-se fora a água, que vai levando
consigo parte da terra. Isto se faz repetidas vezes, até que a bacia tem
lançado fora toda a terra, e no fundo aparece o ouro (se é que o há),
que, em virtude do seu peso específico, tem, com a ajuda da água,
passado para o fundo
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265 /
da bacia através da terra. É isto o que se faz, quando o ouro é muito e
a terra pouca; quando, porém, a terra é muito mais do que o ouro, a
bacia, só por si, é insuficiente. Usa-se então duma dorna, na qual se
deita terra até pouco mais de meia; acaba de se encher com água e
depois, com uma pá de ferro de certo feitio, se mexe muito bem, no fim
do que se tomba a dorna de lado para despejar a água e parte da terra de
envolta com ela. Isto se repete tantas vezes quantas são necessárias
para no fundo da dorna ficar uma pequena porção de terra, que se vaza
numa pequena máquina, chamada berço, onde se lhe extrai todas as pedras
que contém, e dali, passando-se à bacia, se conclui a operação, como
acima disse. Hoje, porém, como já contei, o mineiro tem
procurado diferentes meios para lavar grandes quantidades
de terra em pouco tempo, e inquestionavelmente o mais rápido é o dos «slurices»,
ou canejas de água. É mui simples: canejas de madeira com um fundo chato
se colocam,
encaixadas umas nas outras, do comprimento que se quer (100 ou 200 pés),
e com um pequeno declive. De espaço a espaço se coloca, atravessada no
fundo das canejas, uma tabuinha de três ou quatro polegadas de altura.
Uma sofrível quantidade de água corre constantemente dentro das
canejas, e assim toda e qualquer porção de terra que se lhe
lance dentro corre com a água, que a vai desfazendo; sai toda nas
últimas canejas e deixa ficar o ouro depositado no fundo, encostado às
tabuinhas. Isto é mui simples, como disse, mas é muito dificultoso o
arranjar uma boa quantidade de água corrente, e bastantes vezes é
preciso ir buscar correntes de rios a léguas de distância. Para isto, é
indispensável o formar associações, grandes ou pequenas. Eu reuni-me a
uma companhia destas (sete Portugueses e um espanhol). A nossa água tem
meia légua de encanamento, e espero que o resultado não será mau.
Com a recepção das suas cartas, muito penhorado fiquei
e confesso que todas as razões que me dá são demais para me convencer, e
a mais forte de todas é a de nossa boa mãe. Mas eu hoje estou um pouco
melhor e com mais esperanças e tenciono experimentar isto mais algum
ano. Pode ser que a fortuna encarreire; e assim, ou bem ou mal, mais
ano, menos ano, eu volverei com a esperança de os encontrar a todos
vivos, satisfeitos e felizes. Se eu hoje abandonasse a parte que tenho
nesta empresa, decerto que perderia, por
isso que no princípio pouco valor tem, mas, acreditando-se,
valem muito. Entendo por acreditar-se correr fama de que todos os
terrenos que aquela água pode lavar são bastantemente auríferos. Eu
muito quereria dizer da Austrália, suas minas, comércio, agricultura, artes
e geral progresso, porque hoje estou habilitado para isso, se não
como muitos, ao menos
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266 /
como a maior parte dos colonistas; mas conheço que não é assunto para
encerrar em umas poucas de cartas. Não obstante, eu cá vou vendo, nas
minhas horas de ócio, se arremendo alguma coisa a esse respeito, porque
sei que deve ser
curioso para quem for estranho à Austrália. Muita gente se persuadirá
que ainda hoje se vive por aqui no centro das
florestas como em meio de selvagens. Engano. O ouro é milagroso. Não há
lugar de minas onde não hajam (sic)
escolas de instrução pública, templos de diferentes religiões,
hospitais, associações filantrópicas, bancos, teatros, hotels (sic),
livrarias, etc. Músicos, cantores, dançarinos de ambos os sexos, todos
gostam de aqui vir admirar o metal luzente,
e levá-lo, se podem. Ainda não há muitos meses que num
dos teatros de BaIlarat esteve a célebre LaIa Montes. Enfim,
a civilização vai penetrando através das florestas, e os aborígenes do país vão-se internando no interior, fugindo dela. Mui poucos
aparecem nas povoações e esses, em vez de seguirem as virtudes do homem
branco, só seguem os seus vícios. Inimigos do trabalho, vendem peles de
animais indígenas, papagaios de diferentes espécies, para com o produto
se embriagarem, fumar, etc. É raríssimo encontrar um que tenha
ocupação, e mesmo, neste caso, é só a de pastor de carneiros.
− Muito
quisera contar; mas, por mais que diga, mais me há-de ficar inda por
dizer(9). Por isso, irei dizendo alguma coisa nas minhas cartas, que
espero sejam
muito mais frequentes do que até agora. Peço respeitosos e afectuosos
cumprimentos para minha muito prezada mana,
que não tenho o gosto de conhecer, e toda a sua família. Muitas saudades
aos amigos, com particularidade sempre Crispiniano e Jerónimo, e o mano
acredite-me sempre o etc.
Minha querida mãe
É com toda a alegria e amor filial que um filho pode ter
por sua mãe que pego na pena para lhe dar notícias minhas, de 5000
léguas de distância. Atègora, tenho escrito sempre à mãe e ao mano nas
mesmas cartas, porque, fazendo-o separado, a ambos diria a mesma coisa, e mesmo agora lhe escrevo esta
separadamente, não por o assunto ser diverso, mas porque, achando-me com mais oportunidade, é dever meu fazê-lo. Como estou
certo que a mãe lerá a carta para o mano Bento, escusado é copiar o que
nela digo, e por ela verá a minha querida mãe que desde que estou na
Austrália é hoje que me
vislumbra uma luz de esperança e que por isso tenho assentado
/
267 / em me demorar mais algum tempo, a ver a face que toma o destino. Há
três anos que estou na Austrália. Porque não me demorar mais algum
tempo, a ver o resultado disto?
Ninguém da minha família precisa de mim; ao contrário, tenho precisado
eu. A minha querida mãe tem cuidados sobre mim, mas peço-lhe que não os
tenha. É verdade que já aqui me achei mal e por algum tempo, apesar dos
abonos
que tive; mas isso mesmo me tem servido: aprende-se muito
com aquilo e, além disso, já passou. Quanto a saudades, também eu tenho
muitas, mas lembro-me que quanto mais
me demoro, maior prazer terei quando tornar a abraçá-los. Por isso,
peço muito à minha querida e boa mãe que viva sem cuidados sobre mim,
para que, quando eu volte, a encontre satisfeita. E, por eu ter gastado
para aqui seis meses, e falar acima em 5000 léguas, não julgue a mãe que
estamos muito e muito longe uns dos outros, porque os aperfeiçoamentos
dos homens fazem com que uma viagem ordinária para aqui seja hoje de 60 a 70 dias, e dentro em
algum
tempo será por terra (?) de 40 a 45 dias! Agora, como sei, muito bem que
esta carta não é lida só por a mãe, dirijo-me à minha prezada madrinha e José Roque, expressando-lhes as minhas
saudades e os meus sinceros desejos de que continuem a viver com a mesma
felicidade com que sempre os conheci. Sei que têm galantes crianças e
oxalá que Deus abençoe a sua família como eu desejo. O mesmo
lhe peço também para a sua(10) querida mana Ana e para o Mesquita, e a
Deus praza que não seja tarde o dia em que tenha o gosto de abraçar toda
a minha família. Vou concluir desejando-lhes tão boa saúde como a que eu
sempre tenho tido (!), e peço a minha mãe um viver livre de cuidados
pela
sorte do ............ S. etc.
Um saudoso abraço ao José Reinaldo e recomendações à Clara(11) e ao
José(11), que não sei se ainda lá estarão.
BERNARDO XAVIER DE MAGALHÃES
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