António Cristo, Uma carta do comandante Rocha e Cunha, Vol. XV, pp. 145-147.

UMA CARTA DO COMANDANTE

ROCHA E CUNHA

SOBRE A DEFESA DA PRAIA DE ESPINHO

QUANDO o mar, em 1944, uma vez mais invadiu a martirizada praia de Espinho, causando sérios estragos e graves apreensões, propus-me chamar, na Assembleia Nacional, a atenção do Governo para a necessidade de promover com urgência as convenientes obras de defesa.

Fiel ao propósito de só intervir quando pudesse fornecer qualquer contribuição útil para o estudo e solução dos problemas, e tratando-se, como se tratava, de assunto que me era absolutamente desconhecido, procurei esclarecer-me sobre as causas do fenómeno que se verificava em Espinho e sobre os processos de remediar os seus efeitos desastrosos.

Uma das pessoas que desejei ouvir foi o saudoso Comandante SILVÉRIO RIBEIRO DA ROCHA E CUNHA, a quem o meu amigo Eduardo Cerqueira teve a bondade de entregar uma carta minha, em que pedia o obséquio de algumas informações.

Com a sua proverbial gentileza, o ilustre oficial da nossa Armada, cuja extraordinária modéstia mais realçava a sua invulgar competência, respondeu-me prontamente com a interessantíssima carta que segue:

Ex.mo Senhor Dr. António Christo,

meu prezado Amigo

Sobre o assunto da carta de V. Ex.ª que me apresentou o nosso amigo Cerqueira, só posso informar o seguinte:

Sobre a defesa da costa de Espinho, onde há mais de cinquenta anos se verifica o fenómeno de transgressão marinha, disse-me o Engenheiro Von Haffe que houve [Vol. XV - N.º 58 - 1949] / 146 / várias opiniões acerca dos processos a empregar, e que fora ele o autor do projecto de defesa por meio de redentes de pedra, convenientemente orientados e prolongados para o mar. Disse-me ele que este projecto, o qual foi executado, era o único viável. Os redentes diminuem a velocidade das correntes, promovem assim depósito de areias, e estabilizam as praias. Devem ser, como todas as obras desta natureza, cuidadosamente vigiados, e oportunamente fortalecidos, quando se verifica o abaixamento resultante das infra-escavações ou demolições causadas por temporais, especialmente em costa desabrigada, muito batida, como é a de Espinho. Parece que os redentes de Espinho deram resultado. É necessário construir outros, ou apenas reparar os actuais?

Depois da abertura da Barra Nova de Aveiro, em 1808, ficou alterado o regímen de correntes no local; a praia de S. Jacinto (margem da Ria) começou a ser fortemente corroída pelas correntes; Luís Gomes de Carvalho construiu redentes para a defender e com resultado. Os seus sucessores, incluindo o General Silvério, cuidaram sempre da sua conservação e melhoramento. Só foram demolidos depois da construção das novas obras do porto; a margem de S. Jacinto passou a ser defendida por muralha de revestimento, mas devemos notar que se trata de margem lagunar que é muito mais abrigada que a margem marítima completamente desabrigada. Há outro exemplo que conheço: a praia marítima do Lobito, perigosamente corroída pela corrente, a ponto de o mar ameaçar a segurança da cidade, foi defendida com sucesso pelo emprego de redentes. Creio que foi o Engenheiro Craveiro Lopes que os construiu.

Os fenómenos de transgressão marinha têm-se produzido em várias costas: Inglaterra, Irlanda, Bélgica, etc.

Quais as suas causas? O assunto é muito complicado. Alterações do regímen de correntes? Movimentos tectónicos das costas, que, como báscula, se elevam nuns pontos e baixam noutros? Creio que não foram feitos estudos na costa portuguesa que permitam determiná-las. Creio que está neste caso a influência dos molhes do porto de Leixões. Creio que o fenómeno que durante tão largo período se tem verificado na praia de Espinho não é simples emagrecimento da praia, como, em certas condições de mar e tempo, se produz na praia do Farol, por exemplo, mas que já demoliu a casa do sinal sonoro e obrigou à demolição da casa abrigo do carro porta-cabos dos S. a Náufragos.

Não sei, ou antes, duvido que tão pouco saber possa esclarecer V. Ex.ª / 147 /

Desejo a saúde de V. Ex.ª e subscrevo-me com a maior consideração de V. Ex.ª

Amigo reconhecido

Aveiro, 18-3.º-44

P. S. − Creio que um engenheiro esclarecerá melhor V. Ex.ª

Rocha e Cunha.

Afigura-se-me que esta carta bem merece, por muitos títulos, ser guardada nas páginas do Arquivo.

O assunto dela, é de indiscutível interesse para a região e, muito particularmente, para Espinho.

Por outro lado, não são de desprezar os ensinamentos que encerra, magnífico contributo para a solução de um grave problema.

E, finalmente, a publicação da carta constitui uma homenagem ao seu ilustre Autor: d Comandante ROCHA E CUNHA, que continuará vivendo na saudade de quantos o conheceram, revela naquelas poucas linhas, apressadamente escritas, algumas das muitas qualidades que o impuseram à estima e consideração de todos − a sua invulgar competência, a sua absoluta probidade, a sua encantadora modéstia, a sua extrema gentileza e o grande amor que sempre votou aos problemas da sua terra e da sua região.

Aveiro, 14-11-1949.

ANTÓNIO CRISTO

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