Augusto Soares de Sousa Baptista, A propósito do rio Águeda, Vol. XV, pp. 3-7

A PROPÓSITO DO RIO ÁGUEDA

OS Aguedenses não gostam muito que se lhes diga que o seu rio Águeda não começa em Bolfiar, e que é aquele mesmo que desce do alto do Caramulo, nas Varzielas, e passa por São João do Monte. Parece-lhes que o nome Águeda só convém àquele rio mais caudaloso que resulta da junção do Alfusqueiro e do Agadão. Eles não têm razão e este assunto, já muitas vezes debatido, parece que devia considerar-se como definitivamente resolvido com aquele marco de pedra, em que se lê − Rio Águeda − mandado fincar em S. João do Monte pela J. A. das Estradas. Assim não sucede, porém, pois, de quando em quando, lá insiste o orgulhoso bairrismo no erro antigo. Justo é, portanto, que vamos também teimando em repor a verdade em seu lugar.

Vejamos o que é que, nos fins do século X, no século XI e princípios do século XII, se chamava rio Águeda. Para melhor clareza sigo, dentro destes três séculos, a ordem corográfica, em vez da ordem cronológica.

Em 1102 um certo presbítero, chamado Athan, fez doação à igreja de Santa Maria de Coimbra e ao célebre bispo Maurício, de uma vinha que possuía em Ois da Ribeira. E diz o respectivo documento: − «Est autem ipsa uinea cum suo pomerio in uilla Olis in ripa Agade et sunt termini eius in oriente Spinel et a meridiem Sancti AdrianI». Quer isto dizer que naquela data, 1102, o rio que banhava Ois chamava-se Águeda, tal como hoje se chama (Docs. Medievais portugueses, pág. 68).

Em 1062 o Imperador Fernando de Leão, visavô do nosso Afonso Henriques, reconquistou aos mouros Viseu e Lamego, e dois anos depois reconquistou Coimbra. Recuperadas as terras até esta cidade, confirmou a doação que seu pai tinha feito ao bispo Crescónio, de vários bens, e entre eles Travassô: «... terciam partem de uilla trauazolo inter agatham et uaugam (P. M. H., doc. CCCCXXXVI). / 4 /


Em 1065 Recemundo fez larga doação ao Mosteiro da Vacariça. Entre os bens doados está o que ele tinha na vila Tarouquela in ripa de accata e outras propriedades «...quos nominauimus de ripa bona uauga usque agata...» (P. M. H., doc. CCCCXLVIlI).

No inventário dos bens de Gonçalo Viegas em 1050, diz-se: «...et de alia parte agada casal de lausato...» P. M. H., doc. CCCLXXVIlI). Este inventário repete-se em 1077, já em nome de um filho ou neto também chamado Gonçalo, e neste lê-se «In ripa de agata in uilla de abolfear auilar de abolfear ad integro».

Em 982 Fernando Sandines fez doação dos bens que foram de seu irmão Suario, ao Mosteiro de Lorvão. Estes bens foram recardanes cum suos viccos nominatos antolini e uentosa qui sunt in ripa de agada. (P. M. H., doc. CXXXVI).

No ano de 1018 − uma tal Fronila, com os filhos Cid e Ermesinda venderam a Toledo, abade da Vacariça, uma propriedade que tinham em Recardães «Circa riuulum Agata» (P. M. H., doc. CCXXXVIII).»

No mesmo ano, a Ermesinda com seus filhos entrega em pagamento ao abade Emílio, do mesmo Mosteiro, uma propriedade no mesmo local «in Agada in loco predicto uilla recardanes (P. M. H., doc. CCXXXIX).

Em 1114 Ermesenda Henriques doou ao Mosteiro de Pedroso a terça dos bens que tinha na Borralha: «...do ego inde et testo IIIª de tota mea ereditate quanta que ego habeo des Aue usque in Agada in ipsa uilla que dicitur Borralia...» (Doc. Medievais, doc. n.º 493).

Por estes documentos se vê que no século XI e princípio do século XII o rio, desde a sua confluência com o Vouga até Bolfiar, chamava-se Águeda.

Em 1131 D. Afonso Henriques fez escritura de doação, de sua vila de S. João do Monte a Mestre Garino onde se lê «.. . facio kartam de illa uilla que dicitur sancte Johanne cum omnibus terminis suis quomodo separatur de paramio et de cuvello et de macenere et de balasterio discllrrente rivulo agada». (Chanc. Af. Henriques, doc. 34). E tendo caducado esta doação, D. Afonso Henriques coutou e doou, aquela vila de S. João do Monte ao Mosteiro de Santa Cruz: «...et de ipsa mala ipsa aqua de iumquerio uadit ad aquam de agade...» (Chanc. Af. Henriques, doc. 119).

Estes dois últimos documentos também não deixam dúvidas de que o nome Águeda era dado ao rio em S. João do Monte, nas proximidades da sua nascente.

Podemos, pois, concluir com toda, a segurança que o rio Águeda nasce na vertente sul do Caramulo, acima de S. João do Monte, perto de Varzielas, passa por aquela antiga vila e vai confluir no Vouga. / 5 /

E o Alfusqueiro? Este nome é dado ao rio que resulta da junção do rio de Cambra e do rio de Alcofra e que se chamavarn no século XI e XII Cambar e Loandro ou Joandro.

'Em 1146 Afonso Henriques coutou a Cidi Arias a vila de Alcofra: − «... et habit iacentia predicta uilla in loco qui vocatur Alcofra territorio Alafoen discurrente riuulo Joandro».

Nas lnq. de Afonso llI, pág. 911, lê-se: «... Interrogatus de loco ubi jacet iste regalengus, dixit, quod inter ripariam de Ispario et deinde de estrada ad fundum quomodo vadit ad rivum de cambar».

Em 1002 Gundezindo Tunoiz e sua mulher Eldora venderam a Reinaldo e mulher Gudina a terça parte de dois casais em Cercosa, de um abaixo do Penedo e de outro em Paranhos: «... et auet iacentia in uilla cercosa subtus mons gabro discurrente riuulo cambar territorio Alaphoen...» (P. M, H., doc. CLXXXX).

Num outro documento de 1105 lê-se: «... hereditate quos fuit de Arias Eitaz et auet iacentia in uilla Cercosa subtus mons gabro discurrente ribulo cambar territorio Alahoen» (Docs. Medievais, doc. 204).

Não encontro o nome Alfusqueiro em documentos medievais, mas esta ausência não é argumento bastante para poder afirmar que o nome não venha da antiguidade, pois podem alguns existir, fora do meu conhecimento, em que ele venha mencionado; como ainda a sua falta pode justificar-se por serem os povoamentos das suas margens, até Destriz, todos de formação mais recente. Entretanto, presumo que o nome é de origem posterior, ao século XII, talvez posterior à construção da ponte (a nova), quando o movimento para Alafões se tornou mais intenso, por ser aquele caminho mais curto que o do vale do Águeda. Depois sucedeu-lhe o inverso deste rio, que perdeu o nome desde a nascente até Bolfiar, guardando-o daqui à confluência; o Cambar manteve-o até perto de Destriz e perdeu-o daí à confluência.

A penetração árabe pelo vale do Alfusqueiro não deixou até nenhuns vestígios: Todos os nomes dos povoados são de origem acentuadamente portuguesa e recente − Cernada, Cambra, Préstimo; Lourizela, Vale Dégua, Além do Rio; e na margem direita − Casal, Varziela, Ventoso, Vilarinho (no alto) não oferecem dúvidas.

Não há em toda esta região um só monumento que ateste antiguidade. De alguns povoados conhecemos a fundação e sua época.

Diversamente acontece no Vale do Águeda. Neste, a penetração árabe deixou documentos incontroversos. − Almear − Assequins − Alhandra − Alcafaz − Alcofra, são nomes árabes. E esta penetração explica-se porque se fazia pela rota da / 6 / antiga estrada romana que de Recardães seguia pela margem esquerda do Águeda para a travessia do Caramulo. A ponte romana em S. João do Monte não foi feita para fins particulares do povoado, mas para servir aos fins dessa mesma estrada.

Estes factos é que me fortalecem a opinião de que o caminho para o Caramulo pela travessia do Alfusqueiro, embora muito antigo, só adquiriu valor depois da reconquista, já mesmo muito a dentro da monarquia portuguesa, com a construção da ponte. Não sei mesmo se foi este caminho de Alafões que deu o nome à ponte e ao rio. E é de conjecturar que assim fosse, porque não é vulgar tomarem as pontes o nome dos rios que atravessam, mas do povoado, que no local delas eles banham, ou de algum acidente geográfico. Assim se diz ponte de Angeja; ponte de S. João de Loure; ponte da Fontainha; ponte de Vouga (de não do), ponte de Bolfiar, etc. Mas como explicar ponte do Alfusqueiro? Não seria a ponte do caminho Alfusqueiro, isto é, do caminho que levava directamente a Alafões?

Diz o P.e CARVALHO DA COSTA na sua Corografia Portuguesa, voI. lI, pág. 106: «Tem mais a Villa de Vouga o lugar Dos Ferreiros, que é da freguesia de Santiago do Préstimo anexa à de S. Pedro de VaIlongo, junto ao rio do Alfusqueiro, na qual está uma grandiosa ponte de um só olhal, muito alta de pedra de cantaria, que do rio mal se chega com uma pedra acima, assentada em lagedo muito firme e larga». E tratando da Vila de Assequins a pág. 99 acrescenta: «Fica esta vila menos de um quarto de legoa do lugar de Águeda para o nascente, junto ao rio Alfusqueiro que se mete no rio Sardão» (!). E a pág. 90: «Águeda foy antigamente cidade Episcopal, chamada Emineo, cujo primeiro bispo foi Possidónio pelos anos do Senhor de 589, está nas margens do rio Sardão com famosa ponte...». Quer dizer, por aquele tempo ainda o P.e CARVALHO DA COSTA se não conformava em dar a Águeda o seu rio, pois, além de trazer o Alfusqueiro até às proximidades da vila, tirou ao Águeda o 'seu nome legitimo para lhe chamar Sardão.

O rio Águeda recebe na margem esquerda, lá para cima da ponte de Bolfiar, o Agadão. Rio muito menos extenso que o Águeda, sobreleva-o talvez no volume de águas e na própria largura. E esta deve ter sido a razão do aumentativo − Agadão. E porque os povos ribeirinhos de Águeda se foram esquecendo de chamar pelo verdadeiro nome ao seu rio, contentando-se em identificá-lo pelos nomes dos mesmos povos, o Agadão, depois fortalecido por igual nome da terra que banha, arvorou-se em chefe e estendeu-se até à ponte de Bolfiar, e disse aos aguedeoses: − «entrego-vos o vosso rio muito maior. Até aqui mando eu, daqui para baixo / 7 / é o vosso Águeda». E os aguedenses ficaram satisfeitos. O P.e CARVALHO talvez tenha alguma razão em chamar ao rio Águeda rio Sardão. Realmente, nos fins do século XVI e princípios do século XVII, o Sardão, que não era mais que um prolongamento do burgo de Águeda, tinha adquirido certa importância e o povo chamava ao rio o rio de Águeda ou rio do Sardão. Em todos os tempos o povo conheceu os rios pelos nomes das povoações por onde eles passam. Este costume perdura ainda.

Mas os aguedenses são também muito orgulhosos da sua vila. O saudoso CONDE DA BORRALHA em várias publicações contou as razões históricas por que Águeda foi fraco através dos séculos. Contarei, se me for possível, como se originou e cresceu aquela justificada vaidade da nossa terra.

AUGUSTO SOARES DE SOUSA BAPTISTA

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