EXPLICAÇÃO PRÉVIA
O presente trabalho é a
modesta conferência com que
em 11 de Setembro de 1946, singularmente fiz realçar os benefícios e
encantos de outros serões promovidos pela
Acção Cultural das Fábricas
Aleluia para lição e enlevo dos
seus operários.
Pouco a alterei com um ligeiríssimo esforço de lima, a adoçar-lhe
uma ou outra aresta mais viva; mas acrescentei-a com muitas notas, que
em lugar próprio justifico.
Tudo somado, não dará mais do que a afirmação
do
grande amor que voto às coisas da minha terra.
Aveiro, 1948.
A. C.
MINHAS SENHORAS
MEUS SENHORES
DISSERAM-ME que esta conferência
se destinava aos operários.
Isso me obrigou a redigi-la com a simplicidade
e clareza de que fui capaz, descurando primores de forma ou galas de
estilo que pudessem dificultar a sua compreensão e sem mais citações eruditas do que as absolutamente
indispensáveis.
Proponho-me desenvolver um tema histórico.
Só com anunciá-lo, pressinto que os meus ouvintes se ajeitam nas cadeiras, como quem se prepara para mais comodamente
/
162 / suportar uma tortura; e se, por delicadeza, não
bocejam desde já o seu aborrecimento, certamente pensam que seria mais agradável uma ceia bem servida ou um passeio
ao ar livre do que um banho de pó soprado de velhos livros,
uma árdua peregrinação a um passado longínquo, um penoso
revolver de pessoas e coisas de outrora que o tempo se
esforça por decompor.
Conheço bem a aridez do assunto. E nem mesmo esqueço
ter lido algures que Luís XIV, depois de bem aconchegado no
seu régio leito, para mais facilmente conciliar o sono, em vez
de ingerir um narcótico... mandava ler em voz alta qualquer
livro de História!
Não obstante, atrevo-me a falar do passado e alimento
a esperança de não vos fazer dormir.
Um eminente professor universitário disse um dia, com
muito acerto, que «quem esquece a própria história perde a consciência
de si mesmo».
Há, indiscutivelmente, um passado de treva sem
vislumbre de luz, de cinza sem calor de lume, um passado morto
que não interessa fazer reviver porque nada pode aprimorar na
inteligência ou no coração.
Esse é o passado sem nome, sem vida,
o passado que realmente... passou.
Mas há também, como diria não sei que filósofo francês,
um passado-presente, «que continua em nós como a flor que
brota de raiz distante». É o passado que venceu o tempo,
que triunfou da morte, o passado vivo−raiz sadia que, mergulhada na fundura dos longes, alimenta de seiva o presente,
dando-lhe, na memória do que foi, a consciência do que é e
a estímulo para o que pode e deve ser.
Neste sentido, a História não é uma
ressurreição, pois
não se ocupa de reanimar cadáveres; é antes a recomposição
de um todo − facto, doutrina, monumento, pessoa ou agregado − pela
reunião amorável de células vivas que o tempo
dispersou e, porventura, escondeu.
Reviver o passado da nossa
terra, evocar as figuras que
souberam enobrecê-la, descobrir em documentos ou estudar
nos alfarrábios as realidades ignoradas ou esquecidas do
torrão ande nascemos, − em poucas palavras: compor ou
recordar a história deste burgo de encantos − deve ser para
todos nós devoção e honra.
Nem será apenas amor, encantamento, deleite, porque
é antes lição de exemplos e virtudes que, acorrentando-nos ao império da sua autoridade, nos abrigam em consciência
ao seu louvor e
ao seu exercício.
Suponho ter justificado suficientemente a escolha do
assunto.
/
163 /
E para que em tudo a minha pobre conferência
obedeça às regras, lembro
que, terminada a introdução, é a altura... de o conferente tomar água e
de os assistentes tomarem fôlego!...
MINHAS SENHORAS
MEUS SENHORES
Era uma vez uma encantadora
menina....
Perdão! Este começo tem o sabor de um conto de fadas e poderia induzir-vos em erro:
− no que vou expor, não há fantasias;
evocam-se realidades, testemunhadas por documentos ou afiançadas por bons autores.
Convêm, por isso, principiar doutro modo.
Duas placas de mármore, não há muitos anos mandadas colocar junto da Praça do Peixe e no termo da Rua de S. Roque,
identificam a estreita e tortuosa artéria citadina com o nome de
Antónia Rodrigues.
Quem era esta mulher de chamadoiro plebeu, tão breve e
incaracterístico, e que extraordinários feitos praticou para merecer, a
perto de quatrocentos anos de distância, a nossa comovida lembrança?
Filha da arraia miúda, dela se têm ocupado com interesse os cronistas, os historiadores, os cientistas e os literatos.
O licenciado DUARTE NUNES DE LEÃO, historiógrafo da primeira época da literatura clássica, que bem a conheceu, dedica-lhe
longas páginas da Descripção do Reino de Portugal.
Na sua estimada Corografia Portuguesa, o
Padre ANTÓNIO CARVALHO DA
COSTA não esquece a heroína aveirense − «famosa heroína», diz ele, «que
podia ser timbre das de Grécia e das de Roma».
DAMIÃO DE FROES PERYM, anagrama que oculta o nome
de Frei João de São Pedro, celebra também, no Theatro
Heroíno, o valor da intrépida cavaleira: «donzela que, nascendo humilde,
morreu ilustre», «contando, em poucos anos de idade, largos séculos de
merecimento».
Nas Memórias de Aveiro, do benemérito escritor
JOÃO AUGUSTO MARQUES
GOMES, não falta larga referência a Antónia Rodrigues, «valente soldado
que tão galhardamente combateu em Mazagão».
Um outro paciente investigador,
JOSÉ REINALDO RANGEL
DE QUADROS OUDINOT, dedica-lhe um curioso artigo − o trigésimo quarto da
série publicada no semanário local Districto de Aveiro sob o título
Aveirenses notáveis − nele
pondo em relevo que Antónia Rodrigues, «celebridade deste país», «fez
a admiração de nacionais e estrangeiros».
/
164 /
D. ANTÓNIO DA COSTA, apreciado escritor da era romântica, louvou-a em
algumas páginas do seu livro A mulher
em Portugal, apresentando-a como «formosa, simpática, toda ela
pilhas de graça», valorosa mulher que «não comprou os seus brilhantes
nas pacíficas ourivesarias do tempo» mas «ganhou as suas esporas de ouro
nos campos em que dantes se conquistavam».
O nobre CONDE DE SABUGOSA, num delicioso capítulo das magníficas
Neves
de Antanho, ocupa-se largamente da heróica amazona aveirense.
Refere-se-lhe também o sábio Professor Doutor
JOAQUIM PIRES DE LIMA, no
estudo que publicou sobre os Vícios de
conformação do sistema uro-genital.
Ainda recentemente, num trabalho dado à estampa na revista
"Brotéria"
acerca das Mulheres na Conquista e Navegação, o Dr. HIPÓLITO RAPOSO
louvava a aveirense ilustre,
que alcançou renome em assinalados feitos.
E tantos outros!....
Se não houvesse notícia das suas façanhas, das simpatias
que despertou, dos aplausos que mereceu e das honras que lhe tributaram
donzelas e infantes, plebeus e fidalgos, governadores e reis, esta
cuidadosa atenção dos escritores pela
biografia de uma pobre e humilde mulher seria, só por si, índice seguro
de assinalados méritos.
Depois de tantas falas que pouco dizem sobre o assunto escolhido,
compreendo a vossa impaciência, a fazer-vos bailar no cérebro a ansiosa
pergunta:
− Mas quem era, afinal, Antónia Rodrigues?
Não respondo que neste despertar de interesse é que está a habilidade do
artista, porque o não sou. Mas confesso ser por manha que assim espevito
a vossa curiosidade, ajudando-vos a triunfar de sonolências e bocejos...
No último quartel do século XVI, a «muito nobre e
notável vila de Aveiro» tinha caído em extremos de penúria, chorando então
os fartos esplendores de outrora.
Em remotíssimas eras, frotas sem conta demandaram-lhe o porto e as suas
águas, segundo pretendem alguns escritores, coalhavam-se de navios
fenícios e cartagineses.
Romanos e mouros mandaram à foz do Vouga os seus
barcos, em busca de riquezas.
No reinado de EI-Rei D. João
II, ancoravam aqui navios
estrangeiros de grande tonelagem.
E ainda em tempos de D. Sebastião, segundo informa o douto BARBOSA
MACHADO nas suas Memórias, o porto de Aveiro aparelhava muitos navios
diversos, tanto para a navegação
/
165 / de África como para a pesca do bacalhau, só nesta empregando mais
de sessenta barcos.
Em 1575, um tempestuoso inverno modificou profundamente as condições da barra e do porto, obstruindo-os e originando
a decadência de Aveiro.
As areias invadiram as águas, as cheias inundaram os campos, arrasaram
os viveiros e empobreceram as marinhas.
Decresceram ou paralisaram as pescas, as produções, os
transportes e as variadíssimas actividades que determinam ou
condicionam. Aveiro tornou-se insalubre e as doenças e epidemias
alastraram, ceifando sem piedade os seus habitantes.
Por forma que no desgraçado ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo
de 1580, a vila continuava a despovoar-se e os que se viam forçados a
morar nela atravessavam, por via de regra, horas sombrias de luto e
miséria.
Estava então o bairro nobre da vila abrigado pelas muralhas outrora mandadas construir, à imitação das de
Jerusalém, pelo
Infante D. Pedro, filho de El-Rei D. João I − duque de Coimbra, senhor
de Aveiro e, segundo todas as probabilidades, meu ilustre... vizinho,
pois consta ter vivido na casa da Rua Direita, hoje pertencente à
família Casal Moreira, onde se conserva ainda uma pedra com a cruz da
Ordem de Avis − muralhas que, mais tarde, El-Rei D. Manuel I
reedificou e das quais podemos admirar os restos da chamada Porta do
Sol, entre as casas da antiga Rua de Jesus e as que olham para o
lado das Olarias.
Abro um parêntese para esclarecer que, segundo a tradição, o Rei
Venturoso mandou sob a guarda de uma força de oitenta soldados o
dinheiro necessário para a reparação dos muros, 10.000 reis − importância
hoje tão mesquinha que não chega para um quilo de arroz ou meio litro de
azeite do obsequioso «mercado negro»...
Fora de portas, ao norte do canal, ficava ao tempo a freguesia de
Nossa Senhora da Apresentação, onde se situava o bairro
piscatório − aglomerado de casario modesto, em grande parte coberto de
colmo.
Ali nasceu, em 31 de Março
de 1580, conforme a opinião ordinariamente
seguida, a nossa Antónia Rodrigues.
Seu pai, Simão Rodrigues ou Simão Rodrigues Mareares, era marítimo de
profissão. Não errarei supondo-o, com bons autores, embarcado nos navios
que daqui partiam, carregados de sal, para longínquas paragens ou
entregue aos árduos trabalhos da pesca do bacalhau − peixe de saudosa memória!
−
nos bancos da Terra Nova.
A mãe, Leonor Dias, ocupava-se nos trabalhos domésticos e não teria
lugar para ócios: vivia rodeada de filhos e de miséria.
/
166 /
Neste ambiente cresceu e se educou a pequena Antónia
Rodrigues que o CONDE DE SABUGOSA − numa evocação, «amorosamente acariciada pela fantasia», da sua mocidade
− nos
apresenta com o sangue a ferver tumultuosamente nas veias,
envolta com a garotada em perigosas excursões pelos canais
da Ria ou em lutas monumentais pelas estreitas vielas da
antiga vila, destra, ágil, dominadora, tormento da mãe e enlevo do pai.
A verdade é que, em seus verdes anos, determinou a mãe
levá-la para a companhia de uma filha casada que tinha em Lisboa, «para
viver em sua pobreza com menos uma boca»,
como deliciosamente escreveu Frei JOÃO DE SÃO PEDRO.
Não teria Antónia Rodrigues mais de dez ou onze anos
de idade quando a arrancaram ao convívio dos pais, forçando-a a abandonar amizades e folganças e escondendo dos seus
olhos os encantos duma paisagem maravilhosa.
Em companhia da mãe, lá fez a longa e dolorosa caminhada de Aveiro à capital do reino
− viagem árdua e perigosa por estradas, veredas e atalhos infestados de ciganos e
ladrões, só de muito em muito longe se descobrindo o aconchego de uma
albergaria ou de um convento.
Creio que por terra seguiram as duas; mas nem, se me engano, seria a
viagem em qualquer embarcação menos perigosa e arriscada, numa época em que, no mar, eram de temer os ataques de
corsários ingleses e holandeses.
Pelo que das crónicas se infere, foi contrariadamente que a filha mais
velha de Leonor Dias, cujo nome se ignora,
aceitou o encargo de hospedar a irmã.
Era aquela «de pesada condição», como diz o bom frade de São Jerónimo,
«sizuda e rebarbativa», «azeda e violenta de índole», como se exprime
outro escritor.
Sabe-se positivamente que Antónia Rodrigues era mal
tratada.
Falam uns em «reparos, proibições e repressões que, em
vez de alcançarem o recato e a compostura requeridos, mais
excitaram no ânimo da insubmissa Antónia o espírito de
revolta».
Afirmam outros que a irmã e o cunhado a admoestavam constantemente, a
repreendiam com aspereza e a ameaçavam
de mandá-la para Aveiro, mantendo-a sob uma pressão contínua de ralhos e contrariedades.
Avançam até que o cunhado a espancava muitas vezes e levantam a
suspeita de que a dureza e frequência dos castigos eram motivadas pelo facto de Antónia Rodrigues se
esquivar aos seus galanteios.
Se nisto pode haver fantasia ou exagero, a verdade é que
a pobre rapariga levava «com obediência forçada uma vida
desgostosa», para usar das palavras de Frei JOÃO DE SÃO PEDRO,
/
167 /
«não podendo sofrer a aspereza da irmã e o mau tratamento que lhe dava»,
como assegura DUARTE NUNES DE LEÃO.
Azougada e independente, Antónia Rodrigues suportou pouco tempo
−
escassos anos, dizem uns, alguns meses apenas, afirmam outros − aquela
indesejável hospedagem.
Escreveu o CONDE DE SABUGOSA que, «deslumbrada com
as aventuras narradas pelos capitães de navios, que regressavam de
remotas paragens», a pequena Antónia «sonhava com os esplendores do
Oriente, com os jardins de Ceuta, com os dramáticos encontros afrontando piratas no alto mar e com os
cercos famosos das fortalezas de África e da Índia, em que as mulheres
representavam por vezes tão insigne papel».
O certo é que, como bem notou o Dr. HIPÓLITO RAPOSO,
a sua índole aventureira foi estimulada pela tentação do longe.
E um dia − feliz dia, sem dúvida!
− Antónia Rodrigues
soltou animosamente o brado da sua emancipação.
Juntou o pouco dinheiro que tinha, fugiu da casa sombria da irmã e,
dirigindo-se «à rua onde vendem vestidos feitos», ajustou com um
algibebe ou roupavelheiro «um vestido conforme ao trajo dos moços que
servem no mar em navios mercantes».
Cortou então o cabelo − «os seus bastos e longos cabelos pretos»,
como dizia, não sei com que fundamento, um escritor nosso.
E assim «se foi ao campo e em um lugar escuso despiu o trajo de mulher
que trazia e se vestiu como moço: e indo ao longo da praia se pôs com o
mestre de uma caravela que estava carregada de trigo para Mazagão em a
qual se embarcou».
Estas afirmações do cronista permitem-nos recompor a cena curiosíssima:
− um pimpolho vestido de marujo, vivo, esperto, decidido, no meio das
algaraviadas do velho Cais da Ribeira, inculcando-se sabedor da arte de
marear, apto para todo o serviço de bordo, e convencendo o mestre experimentado de
uma caravela, pronta a levantar ferro, a engajá-lo!
Tinha então Antónia Rodrigues quinze, como pretendem alguns, ou doze
anos somente, como assevera DUARTE NUNES DE LEÃO, digno de maior
crédito.
As suas formas, «começavam a desenhar-se em linhas felizes» e os
exercícios a que se votara tinham-lhe dado «uma elegância especial».
Houve já quem a retratasse de fartos cabelos pretos, olhos negros e
brilhantes, feições regulares, tez morena e corada, dentes alvos e
lábios carminados, evidentemente sem o artifício do bâton que as
senhoras agora usam...
/
168 /
O que não sofre dúvidas é que Antónia Rodrigues era
elegante e formosa.
Quando já em Mazagão, «parecia um mancebo mui
gentil-homem e de muita
graça», diz o cronista; e ao conhecê-la mais tarde, «mulher ainda moça
de menos de trinta e cinco
anos de idade», era Antónia Rodrigues «bem parecida», com
«muita graça no que fala e grande viveza de espírito», pelo que,
acrescenta, «justifica bem o que dela se diz».
Embarcou, pois, na caravela que lhe seria amparo e caminho de libertação
− por interessante coincidência denominada Nossa Senhora do Socorro
− transmudada em marujo e com o nome suposto de António Rodrigues.
Serviu na viagem de grumete, «tão destramente como se fora homem que
fizera sempre aquele ofício, trepando pelo mastro a tomar as velas e
fazendo tudo o mais como um destro marinheiro».
Não é necessário supor tempestades ou calmarias, fúrias dos elementos ou
ataques dos piratas, para encarecer a dureza do trabalho, que todos
sabemos bem custoso.
O que seguramente pode dizer-se é que
o desembaraço, a agilidade e a
perícia do pequeno grumete causavam o espanto da tripulação.
Trabalhou e dormiu de envolta com rudes mareantes, triunfando de
concupiscências, preservando de mácula a branca açucena da sua pureza,
recatando-se por forma que nenhum companheiro de beliche ou camarata
suspeitou o seu verdadeiro sexo.
Chegou, enfim, a caravela a Mazagão
− praça do norte
de África, na costa marroquina, que os portugueses da Conquista acrescentaram, como diamante magnífico, à refulgente coroa de D.
Manuel I.
O sítio era ameno, a baía excelente e a fortaleza, construída para senhorear a rica província de Dukala, obra «mui
grande e mui poderosa».
«Plana a terra, plano o rebordo da larga baía de que a
praça ocupa uma ponta, perdido de vista o outro extremo dela ao longe,
num tom claro onde há desfazer de vaga e iniciar de duna», o pequeno
grumete encontrava para os seus lindos olhos estimável compensação da
paisagem a que andavam habituados e tão cedo lhes roubaram.
Disse-se já que a construção da fortaleza e a fundação da vila
− como os
cercos da praça, com sérias arremetidas de mouros que os portugueses
sacrificada e heroicamente repeliam − eram tema magnífico para um canto
de epopeia.
Não me sobra o tempo para detalhadas notícias, que qualquer encontrará
na História do cerco de Mazagão, de AGOSTINHO DE GAVY DE MENDONÇA, no
estudo Lugares dalém − Azemôr, Mazagão, Çafim, do professor Doutor
VERGÍLIO
/
169 / CORREIA,
ou em qualquer das muitas obras por este ali indicadas.
Logo à chegada, foi o Capitão-Mor, como então se chamava ao Governador
da praça, informado de que «o mestre da caravela fizera furto e
falsidade no trigo que levava: e tirando-se do caso testemunhas foi o
grumete António
uma delas que descobriu a verdade».
Organizou-se, portanto, um processo; procedeu-se a um
inquérito; ou, para usar a terminologia do tempo, abriu-se
'uma devassa para averiguar do roubo.
O grumete António Rodrigues, honrado, inteligente e decidido, sem temer rancores ou represálias, pôs logo tudo
em pratos limpos, como soe dizer-se: culpou o mestre da caravela, descobrindo-lhe a desonestidade.
«Pelo que − diz o cronista −
o Capitão não consentiu que
tornasse na caravela por o mestre lhe não fazer mal: e o assentou no
número dos soldados».
Bons tempos, esses, em que o alistamento dos militares
se fazia sem necessidade de inspecções prévias.
Ficou, pois, António Rodrigues em Mazagão, agora como
:soldado de infantaria.
Em pouco tempo se tornou tão destro no manejo das
armas que a todos se avantajava; e de tal modo que nenhum conseguia vencê-lo.
Esta reconhecida superioridade e a sua «branda condição» tornavam-no particularmente querido dos soldados, que
com ele procuravam acamaradar.
Pelo que reza a crónica, era exemplar o seu comportamento. Nela se diz que António Rodrigues «fazia suas vigias de noite sem nunca faltar nelas, e com os soldados comia e se deitava
na cama e dormia entre eles vestido porém sempre com gibão e ceroulas,
que nunca andava sem elas, por onde não foi conhecido».
Serviu, assim, durante pouco mais de um ano, como peão ou soldado de
infantaria. Tinha, porém, adquirido tal renome e era tão benquisto do Capitão-Mor que este o incorporou na cavalaria «e lhe deu soldo e
mantimento como aos mais cavaleiros».
Começou então o período mais famoso da sua brilhante carreira militar.
Em tempos de El-Rei D. Sebastião, durante a regência de sua avó D. Catarina, os mouros cercaram a praça com numerosas
forças, que foram brilhantemente repelidas.
Data de 1562 o memorável assédio, do qual
PEDRO DEMARIZ escreveu o
seguinte: «... e foi este cerco havido pelo mais estupendo e maravilhoso
e apertado que todos os mais que em nossos tempos se viram, nem na Índia, nem em
África, nem em toda a Europa».
/
170 /
Foram tão importantes os combates e tão assinaladas as nossas vitórias
que não só em Mazagão, como em todas as igrejas do reino, se celebraram
solenes festas em agradecimento a Deus. O Santo Padre Pio IV ordenou aos cardeais Hércules Gonzaga
e Jerónimo Seripando que fizessem celebrar missa de pontifical em acção de graças por havermos
vencido os infiéis, missa para a qual se escreveram orações especiais e
a que assistiram os Prelados reunidos para o Concílio de Trento!
Conta Frei LUÍS DE SOUSA que no ano seguinte, estando o santo Arcebispo
de Braga D. Frei Bartolomeu dos Mártires em Roma, numa das vezes que
jantou com o Papa e durante toda a refeição «não tratou o Chefe da
Igreja de outra coisa senão louvar e engrandecer os portugueses,
encarecendo aos assistentes o seu esforço e valentia e a famosa vitória
que no ano atrás haviam alcançado dos mouros de África no cerco de
Mazagão, de que mostrava tivera particular gosto».
Assim desbaratado o inimigo, que sofreu mais de vinte e cinco mil
baixas, não terminaram, porém, os assédios, as sortidas, as correrias,
multiplicando-se os longos e duros
combates, que proporcionaram aos portugueses luzentes vitórias sobre
os mouros infiéis.
«No acometer aos mouros e em todas as facções de maior perigo e
importância, sempre António Rodrigues era quem por ordem do capitão
precedia aos mais, e o merecia pelo valor intrépido e disciplina militar
com que dispunha e pelejava».
Em parte alguma o vejo tratado por adail ou simplesmente por almocadem,
cujo ofício era guiar ou encaminhar o exército marchando na sua frente e
que, segundo Frei JOAQUIM DE SANTA ROSA DE VITERBO, devia «ser mui
prático e esforçado na guerra, ter perfeita notícia do país, dos seus
caminhos e vales, montes e rios, ser muito fiel, acautelado e expedito».
Certo é que tais qualidades não faltavam ao moço cavaleiro e que, se de
direito não tinha o posto, de facto por muitas vezes o exerceu.
Claramente o mostra DUARTE NUNES DE LEÃO no seguinte passo:
«Sendo de cavalo se avantajou dos outros na destreza e bom ar e
ligeireza com que cavalgava do chão: e no cometer
aos inimigos nas empresas maiores e de importância, sempre o Capitão o nomeava e mandava na dianteira como ao mais destro
cavaleiro que tinha. E assim se achou em
muitas pelejas e encontros onde foram cativos e mortos muitos mouros
principais e seus cavalos de que António Rodrigues participava como o
melhor cavaleiro da companhia».
A dar crédito ao que leio num trabalho omisso na indicação
de fontes, que não consegui encontrar, já durante o
/
171 /
primeiro ano de serviço, como peão, o valente militar praticara
extraordinários feitos, um dos quais o impôs à admiração de todos.
Arguto, perspicaz e sempre vigilante, António Rodrigues descobriu a
tempo uma conjura dos mouros, que se preparavam para, em determinada
noite, fazer uma grande sortida, matando com ímpetos de ferocidade e
destruindo as searas com requintes de malvadez.
Preveniu o Capitão-Mor e, ardendo em ânsias de alcançar maior glória,
solicitou-lhe o comando de um troço de tropas.
Foi, então, ao encontro dos infiéis, dirigindo as manobras do ataque com
tanta mestria e combatendo com tal denodo que infligiu ao inimigo uma
derrota completa e vergonhosa.
Coroado de louros, reentrou em Mazagão por entre aclamações,
delirantes.
Foi, porém, na arma de cavalaria que António Rodrigues se tornou
verdadeiramente célebre, espalhando o terror nas fileiras inimigas,
assombrando os combatentes portugueses e conquistando gerais simpatias e
aplausos.
Estão neste ponto de acordo os escritores, um dos quais
assevera que se contam autênticos prodígios de valor e audácia do
aguerrido militar, em inúmeras correrias que comandou e durante as quais
combateu encarniçadamente, como o mais destemido cavaleiro das hostes
lusíadas.
As suas preclaras virtudes e os seus feitos heróicos alcançaram-lhe
honrosos cognomes. Crismaram-no de Terror dos Mouros; chamavam-lhe, em Mazagão,
A Cavaleira, pelo esforço que nas armas mostrou; e os que
apontam e
louvam os triunfos do «jovem fronteiro de África» comprazem-se em sobrepô-lo à animosa Cloélia ou em compará-lo
ao destemido Eurico, à célebre Brites de Almeida e até à
doce Joana d'Arc!
Nos lazeres dos seus admiráveis feitos guerreiros, o brioso cavaleiro
cumpria escrupulosamente as suas obrigações militares, velando de noite
nos aquartelamentos e saindo repetidas vezes aos arraiais inimigos, a
cavalo e de espingarda, «a fazer lenha e feno».
Sobrava-lhe ainda o tempo para as sortidas aos campos dos mouros, onde
ia frequentemente matar porcos bravos, de que trazia sua parte.
E também lhe não faltava
para falar de amores...
A fama das suas proezas, a sua elegância e distinção, a
viveza do seu espírito e o seu trato gentil, franquearam as portas das
melhores casas da vila ao moço cavaleiro, que por sua galanteria enfeitiçava as damas.
/
172 /
Regista a crónica que António Rodrigues «era mui bem olhado e favorecido das donzelas de Mazagão, mormente de
uma filha de um cavaleiro principal em cuja casa tinha tanta
familiaridade... que todos cuidavam que havia de casar com
ela. E por a muita familiaridade que os pais da moça viam nele que não passava de requebros e
galanterias não se
receavam dele: pelo que era mui servido de lenços e camisas, e todos tinham para si que casaria
ali».
Nada a este respeito acrescenta
DUARTE NUNES DE LEÃO.
Da sua pena, somente fica a saber-se que a donzela loucamente apaixonada pelo garboso António Rodrigues era filha de um
cavaleiro principal.
Supôs o CONDE DE SABUGOSA
que a História lhe não registara o nome, talvez para a não vexar pelo seu equívoco. Mas uns
investigadores de antiqualhas, sem qualquer receio...
de afoguear as faces da enamorada senhora, afirmam que esta era D. Beatriz de Mendonça, filha de D. Diogo de Mendonça,
um dos principais fidalgos que ao tempo viviam em Mazagão.
E esclarecem que D. Beatriz
chegou a adoecer gravemente, pelo que o pai solicitara os bons ofícios do Capitão-Mor
no sentido de obter que António Rodrigues a desposasse.
Que não se levante do seu túmulo, onde há séculos dorme, a ilustre senhora, se por acaso a calunio:
− limito-me
a reproduzir o que li e só há que pedir contas a quem o assoalhou...
Seja como for, o certo é que em Mazagão começaram os
carros a andar adiante dos bois − quero dizer, principiaram as
donzelas a requestar o moço cavaleiro, a ponto de uma por ele se
apaixonar, o receber como noivo em casa de seus
pais, o amimar com prendas e se dar como certo na vila que os dois se uniriam pelos sagrados laços do matrimónio.
Havia de ser lindo, não
resta dúvida!...
Enquanto a pobre rapariga vivia neste equívoco, notava
o falso António Rodrigues que, ao lado das suas numerosas
admiradoras, havia um militar de boa família que o olhava estranhamente, que a furto o contemplava e que, em suas
raras conversas, lhe falava sempre com visível comoção.
Aventou um autor, neste passo, que lhe andariam talvez
na memória aqueles versos do lindo romance A donzela que vai à guerra:
«Tende-los peitos mui altos
Filha, conhecer-vos-hão.
. . . . . . . . . . . . . , . , . . . . . .
Senhor Pai! Senhora Mãe!
Grande dor de coração:
Que os olhos do Conde Daros
São de mulher, de homem não!».
/ 173 /
Complicavam-se as coisas.
Havia cinco anos que Antónia Rodrigues, ocultando cuidadosamente o seu sexo, servia em trajo de homem como valoroso soldado
que, em repetidos feitos heróicos, ganhou esporas de oiro.
Ou porque repugnasse à rectidão do seu carácter o embuste em que
forçadamente vivia; ou porque se apiedasse da doce apaixonada que via
enredar-se no seu engano; ou porque temesse «ser descoberta por outrem,
se se lhe enxergassem algumas mostras de mulher»; ou porque os
impulsos do seu sexo, despertados no convívio de marujos, e soldados e
longamente reprimidos, lhe pediam que se mostrasse o que por natureza era; ou porque se sentisse tocada no coração
pelos olhares do moço militar que furtivamente a admirava − por qualquer destas razões, ou por todas elas; Antónia Rodrigues
sentiu necessidade de tudo descobrir.
Lembrou-se então de que, entre os clérigos que na praça faziam
cristandade, havia um, o Padre Provisor, sobejamente
austero, reputado como o mais hábil para tranquilizar espíritos
conturbados e resolver casos difíceis de consciência.
«... E indo ao Provisor se lhe descobriu e lhe disse as
razões porque até ali andara naquele trajo.»
Facilmente se calcula o espanto do bom Padre ao ser-lhe
desvendado o segredo!
Mais surpreendido ainda, se
possível, ficou o Capitão-Mor, ao que
parece Diogo Lopes de Carvalho, quando aquele
e a heroína o procuraram e lhe fizeram a estranha e inesperada
revelação!
Vale a pena repetir o que Frei JOÃO DE SÃO PEDRO, em perfeita
concordância com DUARTE NUNES DE LEÃO, sobre este ponto escreveu:
− «Eram passados cinco anos de serviço naquela praça, vivendo sempre com
recatos de donzela na licenciosa vida de soldado, e temeroso que algum
incidente descobrisse o segredo, da sua heróica resolução, voluntariamente se deu a conhecer ao Provisor do Eclesiástico, que dando
parte ao Governador, a obrigaram ambos a largar com o exercício das
armas os trajes de soldado, e vestidos de varão.
Invejando todos em tão
humilde fortuna, tão nobre coração, não cessavam de encarecer a honra, que soubera ganhar, menos
vencendo tantas vezes o inimigo na campanha, que triunfando da mesma
natureza nos viciosos quartéis da soldadesca, virtude, que se deve
contar nesta heroína por primeira entre outras muitas, que lhe fazem
oposição no lugar, força em a primazia.»
Antónia Rodrigues despiu a farda que tanto
enobrecera e retomou os
vestidos de mulher, com eles mais realçando os seus naturais encantos.
/ 174 /
«Correu logo a notícia com admiração de todos,
que a estimavam soldado, e agora reconheciam donzela.»
D. ANTÓNIO DA COSTA refere-o assim: «Se correra
a fama do militar, a
fama da mulher que fora guerreira ressoou mais ainda: toda a gente a
queria ver. Então mudaram-se as cenas: se até aí as donzelas requestavam
o brioso mancebo, passaram os homens a apaixonar-se pela formosa
donzela».
Foi Antónia Rodrigues recolhida em casa de família
'honesta, a «de um cavaleiro principal da praça.
Assevera o cronista que ali a iam visitar «as donzelas a que ela falava
amores, as quais mudaram o amor que lhe tinham em amizade e lhe pagaram
as galanterias que lhes
dizia com presentes de rocas e fusos e outros tais ditos».
Não alimentaram rancores as que se viram logradas.
Quis Antónia Rodrigues voltar para o reino, se encontrasse mulheres que lhe fossem boa companhia. «Mas
− diz a crónica −
era tão benquista do Capitão e de todos os da vila, assim homens como
mulheres, que lhe não consentiam falar nisso».
Esta expressiva maneira de dizer revela claramente a grande consideração
e as gerais simpatias que a nossa conterrânea soube conquistar por suas
muitas virtudes e assinalados feitos.
Entretanto, aquele que de há muito olhava escondidamente Antónia
Rodrigues, pessoa de qualidade, filho de gente nobre, «cavaleiro mancebo dos principais da vila», triunfou de
quantos
amaram a esbelta rapariga que nascera humilde numa pobre casa de Aveiro
e fora coroar-se de invejáveis louros a Mazagão.
Casaram e partiram para o reino pouco tempo depois do
casamento.
Entre as jóias do seu enxoval, por muito rico que fosse,
a mais valiosa e a que Antónia Rodrigues, por certo, mais estimaria,
era «a certidão de seus serviços que fez pelas
armas», com que o Capitão-Mor a presenteou.
É de crer que o rei tivesse já notícia dos seus brilhantes feitos ou que
a heroína se apresentasse no paço «com a relação de seus grandes
serviços, autorizados por certidões.»
Seja como for, sabe-se que o monarca lhe fez mercê de duzentos cruzados
para ajuda de custo, uma fanga − ou seja quatro alqueires − de trigo em
cada mês e uma tença de 10.000 reis em sua vida.
Isto assegura o cronista, e
não é para aqui a explicação de um
pretendido desacordo entre o que afirma e o que consta de um documento
que o General Brito Rebelo encontrou no Arquivo da Torre do Tombo e de
que enviou cópia ao CONDE DE SABUGOSA.
/ 175 /
Este refere-se à concessão de nova tença com que se premiaram os feitos da afamada guerreira.
Desconhece-se o nome do marido de Antónia Rodrigues. No regaço de ambos
brincou um filho que a munificência
régia, para mais honrar a mãe, elevou à dignidade de moço
da real câmara.
Se não erram os autores, estavam a heroína e seu marido novamente no
reino quando, em 1619, Filipe II visitou Lisboa.
Antónia Rodrigues gozava então de grande fama e extraordinário prestígio, que por seus feitos brilhantes tinha muito
justamente granjeado.
Por simples curiosidade ou por senso político, o monarca
intruso desejou conhecê-la.
Ignora-se o tempo que durou a audiência, que se afirma
ter sido longa e extremamente interessante.
Novo galardão que, na altura, lhe fosse concedido, é problema de esclarecimento demorado.
De outros filhos que teve, como
alguns pretendem, nada
positivamente se sabe.
Apostou-se o tempo em esconder-nos os demais caminhos que a heroína trilhou na vida até que Deus a levou do
mundo.
Antónia Rodrigues, porém, continua a viver nos seus
nobres exemplos, como na nossa enlevada admiração e comovida saudade.
MINHAS SENHORAS
MEUS SENHORES
Dou-vos a grata notícia de que vou terminar.
Não haja menina que tome a lição da ilustre aveirense
tão ao pé da letra que se ponha agora a fugir à família, a cortar os
cabelos, a vestir-se de homem, a dormir com marujos e soldados − ainda que recatadamente
− e a matar inimigos, cavalos e javalis em paragens distantes...
Suponho ter posto em relevo as qualidades de carácter de Antónia
Rodrigues, a sua decisão, a sua energia, a sua
independência, o seu aprumo, a sua abnegação, o seu
heroísmo.
Estas são as virtudes que a enobreceram; e são elas que,
como vos dizia ao princípio, nos acorrentam ao império da
sua autoridade, obrigando-nos a louvá-las e a exercitá-las.
/ 176 /
Num apreciado alfarrábio, que muitas vezes compulsei, onde se registam
e enaltecem os predicados de Antónia Rodrigues, encontra-se esta
saborosa passagem:
«O que desta mulher mais se pode louvar é a continência e
honestidade
com que sempre procedeu andando entre tantos soldados feita soldado,
comendo e dormindo na cama entre eles, vencendo-se a si mesma; que é a
maior das vitórias.
O espírito gentil de uma famosa heroína, com tão brilhante folha de
serviços, ensinando aos seus conterrâneos, a perto de quatrocentos anos
de distância, que a maior de todas as vitórias... é vencerem-se a si
mesmos!
Decididamente: − se ponho mais tintas no quadro, arrisco-me a estragar a pintura.
Por isso termino.
Tenho dito.
ANTÓNIO CHRISTO |