F. Joaquim Bingre, As sombras, Vol. XIV, pp. 66-70

aAS SOMBRAS

Passeio fantastico ao Cemiterio dos Prazeres de Lisboa

       Pensando nos momentos derradeiros
Da tarefa continua desta vida,
transpuz prados, e altissimos outeiros.
     Co'a fantazia fui toda estendida
Ao grande Cemiterio dos Prazeres,
Onde da capital accaba a lida.
     Alli por entre os mausoleos dos seres
Nessas tristes moradas encerrados
De mininos, de homens, de mulheres,
     Soltei alguns gemidos magoados,
Lembrando-me do fim das creaturas,
Que tanto se esquecerão dos finados.
     «Ai (eu disse chorando) onde as venturas
Estão das traficancias dos viventes?»
«Onde? (diz uma voz) nas sepulturas».
     «Sim, tu disseste bem, ó voz, não mentes,
Esse grande montão, que ahi escondes,
São esqueletos já, já não são entes.
     Porem, como tão sabia assim respondes,
Por estes mausoleos a indagar passo,
Quem são esses, com quem te correspondes.
     Que mausoleo é este, que um espaço
Tão grande occupa aqui deste terreno?
Ah! supponho será de algum ricaço».
 

               Sombra de um Rico

     «É verdade, eu o fui (respondeo pronta
Uma sombra do mausoleo erguida)
Eu fui um homem rico sem ter conta
Que havia aqui falir na humana lida.
Quanto a minha cabeça não foi tonta
C'o reflexo fatal da rica vida?
Se este tumulo aponta a vã riqueza,
Nelle habito em miserrima pobreza».


               Sombra de um Nobre

Eis de um grande pantheon se levantava
Outra sombra mais alta, e me dizia:
«Indagador dos tumulos a lava
Arrebentou da minha fidalguia!
Ai! eu nunca pensei, que se acabava
Tão cedo a minha grão genealogia!
Este vaidoso tumulo só cobre
Mirrados ossos de um fantasma nobre».


               Sombra de um Guerreiro

De outro tumulo logo alevantada
A sombra vi de um formido Guerreiro,
Que com terrivel voz dura e pezada
Bradou: «Visitador aventureiro, 
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Passa adiante, mortal, não leas nada
Dos vaidosos trofeos desse letreiro,
Epitaphio da minha sepultura,
Pois nelle jaz em pó minha bravura.»


               Sombra de um Magistrado

«Eu fui na Corte um grave Magistrado;
(Uma sombra gritou da minha ilharga)
Que neste mausoleo alevantado,
Soffro da sua campa a grande carga:
Fui no cargo temido e não amado;
Pois que a muitos justiça fiz amarga:
fingida rectidão, louca vaidade
Me poz aqui em longa escuridade.»

 

               Sombra de um Sabio

     «E tu quem és, ó Sombra, que assentada
Estás sobre esta campa meditando?»
(A uma perguntava, que assustada
Pareceo de a despertar do somno brando)
«Eu fui de um homem douto, que a morada
(Respondeo) teve aqui, sem saber quando:
Porem os seus estudos litterarios
Trouxerão cedo aqui Fados contrarios».


               Sombra de um Aulico


     Em torno de um sepulcro preto e altivo
Divagava uma sombra diligente,
Fugindo de outras sombras: o motivo
Conheci c'o a figura de repente.
Era a sombra de um Aulico, que em vivo
Sempre andava a fugir do pertendente;
E que a sua figura inda irritando
De seu sepulcro em torno anda girando.


               Sombra de um Avarento

     Sobre uma sepultura em chão rasteiro
Uma sombra de bruços vi chorando
Por deixar avarenta o seu dinheiro.
«Ai! por que te estive eu ajuntando?
(Disse) para estragar o meu herdeiro?
Ah! quam louco não fui! quam miserando!
Vivi pobre, juntei por meu desdoiro
Para mim cacos, para outro oiro.»


               Sombra de um Maritimo

     Uma sombra maritima correndo
Eu vi por uma rua, que bradava:
«Ai! de que me servio o mar rompendo
Baratear a vida á furia brava?
Que louro tive longas terras vendo,
Onde nunca descanço algum gosava:
Soffri tormentos, frios, fomes, damnos,
Té naufragar nos baixos dos enganos.» 
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               Sombra de um Poeta

     «Cantei amores vãos, cantei loucuras,
(Dizia a triste sombra de um Poeta,
Que por cima de varias sepulturas
Passeava de damas indiscretas)
Louco cantei as loucas formosuras,
Ferido dessas fabulosas setas:
Cantei o rico vão, e o fofo nobre,
E tive em paga aqui jazigo pobre.»


               Sombra de uma Formosura

     «Na vida ostentação fiz de formosa
(Dizia uma esqueletica figura
De uma mirrada sombra pavorosa
Em pé n'uma rasteira sepultura)
Eu tive a duração da linda rosa,
Que quanto mais louçã, mais pouco dura.
Tive loucos servis adoradores:
Hoje só tive aqui tristes horrores.»


               Sombra de um Pobre

     Assentada n'um canto macilenta
Divisei uma sombra, que dizia:
«Não devi nada á vida somnolenta,
Que até dura me era, se dormia:
Foi-me ingrata a Fortuna e bem cruenta;
Pobremente vivi em demasia;
A sahida igualou a minha entrada;
Pobre parei aqui, não perdi nada.»


               Sombra de um Petimetre

     N'um largo divisei estar saltando
Uma delgada sombra diligente.
«Quem és? (lhe perguntei, e suspirando
Responde como quem disso se sente:
«Fui na vida um casquilho, que dansando
Assombro e pasmo fui de muita gente;
Um petimetre fui desvanecido;
Hoje a magoa aqui tenho de o haver sido.»


               Sombra de um Lavrador

     «Ah! de que me servio rasgar a terra,
E fazer uma grande sementeira?
(Dizia um Lavrador) se aqui se encerra
N'um sulco deste chão minha canceira!
Aos campos sempre fiz c'o arado guerra,
Porem o fruito lá ficou na eira:
E de tanto trabalho por colheita
Só esta cova tenho aqui estreita».
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               Sombrinhas de Mininos

     No fim do Cemiterio umas sombrinhas
Alvejavam quais candidos jasmins
De mãos dadas, fazendo umas dansinhas,
Como as fazem no Ceo os serafins;
Parecião pratiadas nuvesinhas,
Ao pôr dor
(1) do claro Sol entre rubins,
Quando elle de todo esconde o rosto
Para nascer melhor depois de posto.


     Tendo em fim terminado o meu passeio
Por entre os mausoleos e as campas rasas
Da Morte no jardim parei no meio
     Eis ella junto a mim batendo as azas
Desceo, chamando logo a roucos brados
Todos os manes das sombrias casas:
     «Vinde prontos aqui tristes finados,
Vinde sombrios manes, á revista
D'esses caducos ossos descarnados
     Vinde todos fallar á minha lista,
Sem distincção alguma; pois iguaes
Nenhum do outro aqui mais longe dista.
     Se ha na vida linhages desiguaes
Aqui todos são uns; differentes seres
Não ha neste meu reino dos mortaes.
     Aqui termino todos os prazeres,
Todos os gostos vãos da humana lida,
Nobrezas, valentias, graças, teres.
     Que importa a vã ostentação subida
Dos gigantescos tumulos erguidos
Neste jardim da Morte á despedida?
     Porventura serão mais atendidos
Por mim os esqueletos encerrados
Nos grandes pantheões desvanecidos?
     Os ossos dos humanos misturados
Todos aqui por mim; ninguem conhece
Quaes os ossos serão de seus passados.
     O tempo os faz em pó; e á terra desce
A terra que os compoz; futuro vento
A espalha; e o triste pó desaparece.
     Meu jardim não percisa de ornamento
Desses vãos cenotafios tão vaidosos;
Pois comigo ninguem tem valimento.
     De que servirão mausoleos pomposos!
Onde está o sepulchro de Mausolo!
Onde estão os Egypcios façanhosos!
     Por ventura na dor achou consolo
A caprichosa e funebre Arthemisa
No soberbo sepulchro em desconsolo?
     Fantastica illusão nada eternisa
No meu reino fatal: só a virtude
N'outro reino feliz se divinisa.
/ 70 /
     Tu, passeante mortal que entraste rude
No meu triste jardim, medita attento
N'estas sombras; tua alma aqui estude.»


     Disse: e em torno d'ella n'um momento
Os taciturnos manes a cercarão,
Baralhados n'um triste ajuntamento.
     Depois que á lista lugubre fallarão,
A Morte os despedio. Todos nas suas
Moradas sepulchraes se sepultarão.
     Eis n'um instante solitarias ruas
Só vi neste jardim frio e tristonho,
E as grandes campas dos sepulchros nuas.
     A inimiga cruel com som medonho
Batendo as negras asas pavorosas,
Comigo me levou de um golpe o sonho,
Deixando-me lições bem valiosas.


                     
FIM


Mira 2 de Novembro de 1842, em dia de Finados.


F. J. B.

 

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(1) Este vocábulo está a mais. Constitui curioso lapsus calami, proveniente da influência das palavras pôr e do.

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