SÃO actualmente pouco
conhecidas a vida e obras do
ilustre português AIRES BARBOSA ou Arius Lusitanus que se notabilizou no
primeiro quartel do século XVI
como professor de latim e de grego na Universidade
de Salamanca. Tendo honrado muito o seu país em terra
estrangeira, é justo e patriótico recordar o seu nome e merecimentos.
Vários autores têm publicado notícias biográficas acerca
deste humanista, mas quem mais desenvolvidamente se
ocupou dele foi o espanhol D. NICOLAO ANTONIO (1617-1684)
na sua obra Bibliotheca Hispana Nova sive Hispanorum
Scriptorum, tomo primeiro, MDCCLXXXIII. Devem mencionar-se ainda outros que lhe fizeram referências de relevo
tais como: FRANCISCO LEITÃO FERREIRA (1667-1735) na sua obra Noticias Chronologicas da Universidade de Coimbra;
DIOGO BARBOSA MACHADO (1682-1772), na sua Bibliotheca
Lusitana; ALEXANDRE VIDAL y DIAZ na sua Memoria Historica de la Universidad de Salamanca;
1869, Salamanca;
ENRIQUE ESPERABÉ ARTEAGA, na sua Historia de la Universidad de Salamanca, tomo
II, 1917, Salamanca; o Sr. Doutor MANUEL GONÇALVES CEREJEIRA, actual cardeal patriarca de
Lisboa, na sua obra O Renascimento em Portugal − Clenardo. Coimbra, 1917; e MARCEL BATAILLON em
Erasme et l'Espagne, Paris,
1937.
Aires Barbosa ou Aires de Figueiredo Barbosa nasceu
em Aveiro cerca do ano de 1470, sendo seu pai Fernão Barbosa e sua mãe D. Catarina Eanes de Figueiredo. Ele mesmo
nos diz a terra da sua naturalidade e os nomes dos seus progenitores num dos epigramas que publicou em 1516 em Salamanca e intitulou De patria sua et parentibus.
/
43 /
DIOGO BARBOSA MACHADO, abade de Sever, transcreve
este epigrama, com excepção do último dístico, na sua Bibliotheca Lusitana como segue:
Scire volet patriamque meam, nomenque paternum
Has quisque nugas gaudet
habere meas.
Nec dives muItum, nec paupertate notandus
A nobis quondam, sed tamen ortus avis.
Fernandus Barbosa pater,
Catharinaque mater
A notis etiam, quae Figueretta venit
Me genuere, furit vastis qua fluctibus ingens
Ultimus occidui littoris
Occeanus.
Quaque habet Aveiro portu praedives amaeno
Quidquid habet teIlus, &
mare quidquid habet.
AlRES BARBOSA informa, pois, os que quiserem saber qual é a sua pátria,
o seu nome paterno e outras coisas a seu respeito, de que possui alguma
fortuna, e é descendente de antepassados conhecidos. Seu pai é
Fernão Barbosa e sua mãe
é Catarina descendente dos Figueiredos. A sua terra natal,
é Aveiro, junto ao grande oceano do litoral ocidental, com um porto rico e ameno, e a terra e o mar têm alguma riqueza.
Não se sabe a naturalidade do pai de AIRES BARBOSA.
Sua mãe era natural da vila de Esgueira, distante apenas
meia légua da então vila de Aveiro.
No século XV já os Figueiredos estavam dispersos por
várias terras, entre as quais Viseu, Aveiro e Esgueira, e
ligados a várias famílias nobres.
CRISTÓVÃO ALÃO DE MORAIS, genealogista do século XVII,
dá-nos, na sua obra Pedatura Lusitana, a ascendência de
AIRES BARBOSA pelo lado materno. Assim diz
(1):
«O G.co de Fig.do
f.º 3.º de G.ço de Fig.do n.º 5. e hirmão
de Luis de Fig.do n.º 6. casou em Esgueira com ... ... ...
f.ª
de ... ... ... e teve geração e foi seu f.º ou neto J.º de Fig.do de
Sequeira Thezoureiro da casa da lndia q está sepultado em S. Franc.co
de Lisboa aonde estão as armas dos Figueiredos, e mais dous castelos
q lhe deu El Rei pello servir em Arzilla e sustentar-lhe hũ baluarte
onde perdeu hũ olho: Este G.co de Figueiredo chamarão o Corredor dos
Cavallos por elle o fazer bem: forão seus f.os e outros dizẽ q hirmãos.
7 Jorge de Figueredo
7 o D.or Martim de Fig.do soltr.º
7 Cn.ª Eanes de Figueiredo mer de ... ... ... q forão
/
44 /
paes de Ayres Barbosa M.e dos Cardeaes D. A.º e D. Henriq. f.os deI Rey D. ManoeI.
Consta que este G.co de Figueiredo foi casado cõ Cn.ª Sousa, pelIa carta de venda q fizerão a Gil de
Fig.do de Vizeu da quinta de Nogueiredo, e outros casaes, e parece q ella
devia ser maẽ dos f.os q aqui lhe damos, q cõ mayor certeza
o são deste G.co de Fig.do»
Vê-se que a mãe de AIRES BARBOSA era irmã do Dr. Martim de Figueiredo, do conselho do rei D. João
lII, doutor em direito civil e canónico, poeta e grande latinista.
Martim de Figueiredo, depois de se ter doutorado
in utroque jure, foi para Florença profundar a sua cultura
humanista, e aqui, discípulo do célebre professor Angelo
Policiano, aumentou extraordinariamente os seus conhecimentos da língua latina a ponto de publicar em Lisboa, no ano de 1529, uma obra em latim, dedicada a D. João
lII e
intitulada:
Epistola Plinij secundũ veraz
lectionẽ ex exquisitissimis ĩ antiquissimis exemplaribus. Ab Angelo Politiano
magnis sumptibus; et summa dililgentia vndiqz perquesitis.
Esta obra é um comentário ao prefácio das Histórias Naturais, de PLÍNIO, sendo este constituído por uma epístola de PLÍNIO, o Moço, dirigida a Tito Vespasiano (C.
Plinius Secundus Vespasiano suo S). As matérias deste coomentário são assim intituladas:
— Cõmentũ super prolugũ naturalis historie Plinii. Cõpositũ per
Martinũ Figueretũ. I. U. Doctorem: et Serenissimi
Regis Portugalie senato'rem.
Expliciunt Commentaria Martini Figuereti Lusitani.
I. U.
Doctoris super epistolam naturalis historie Plinii.
Lugar e data da impressão:
Impressa Ulyxbone per Germanu Galhard Anno dñi
Millessimo quingẽtesimo vigessimo nono Idibus Junij.
Da referida obra apenas se conhecem dois exemplares;
um, existente na Biblioteca da Universidade de Coimbra, ao
qual falta já a primeira folha (Martinus Figueretus, R-28-20), e outro na colecção do rei D. Manuel
II, hoje pertença do
Museu Biblioteca de Vila Viçosa.
É a Martim de Figueiredo e ao referido comentário que
se refere ANDRÉ DE RESENDE (1495-1575) na sua obra De Antiquitatibus
/
45 /
Lusitaniæ Libri Quattuor, dedicada ao cardeal infante D.
Afonso, quando diz:
«Nobis adolescentibus Martinus Ficaretus iurisconsultus, & Latinarum
litterarum non imperitus, quibus operam non ignauam sub Politiano
Florenciae dederat,...» (Edição de Roma, MDXCVII, pág. 97).
*
* *
Não se conhece a data certa do nascimento de AIRES BARBOSA. Pelo que diz
respeito à da sua morte, todos os autores até H. ESPERABÉ ARTEAGA,
disseram que ele faleceu
por volta de 1530, já muito velho, baseando-se em LOUIS MORERI que
assim o referiu no seu Dicionário, tomo II.
ARTEAGA diz-nos, porém, que AIRES BARBOSA faleceu em Portugal no dia
vinte de Janeiro de 1540, como verificou no livro das contas da
Universidade de Salamanca.
Procurei determinar a data exacta e local da morte de AIRES BARBOSA,
através do seu testamento e termo de abertura que deviam estar
transcritos num dos Tombos da Provedoria de Esgueira. Mas estes tombos
desapareceram no incêndio do edifício do Governo Civil de Aveiro em 20
de Julho de 1864, onde estavam arquivados.
Por felicidade, encontraram-se traslados destes documentos na
Biblioteca Pública de Évora (Instituição da capella de Ayres Barbosa,
mestre de Grego, na igreja de Esgueira
e noticia da sua vida. Cod. Cx/I-6) das quais em 1942 obtive
cópias que adiante publicarei. Por estes documentos verifiquei que
AIRES BARBOSA faleceu na vila de Esgueira, e nas suas pousadas, no dia
20 de Janeiro de 1540. É, pois, certa a data indicada por ARTEAGA.
AIRES BARBOSA casou com D.
Isabel de Figueiredo e dela
teve cinco filhos.
Esta faleceu ainda muito nova e provavelmente em Salamanca.
Seu marido compôs-lhe então um epitáfio que publicou
em 1536, juntamente com a sua obra Antimoria, o qual aqui
transcrevo:
Epitaphium Uxoris
Hic iacet Elisabet generosae stirpis, &
uxor
Baruosae, moriens morte
beata fuit.
Nam bene quae uixit, fatali molliter hora
Castam animam coelo reddit;
ossa solo.
Est igitur foelix, nullum facundo Solonis
Foelicem licet fuerit nimium
florentibus annis.
Te patrem quino pignore fecit Ari.
/
46 /
*
* *
É de crer que AIRES BARBOSA tenha feito em Portugal
:apenas os primeiros estudos. Certo é ter ido, ainda muito jóvem, para
a Universidade de Salamanca estudar humanidades, que, durante a Idade Média e ainda algum tempo depois, eram
constituídas pelas sete artes liberais: gramática,
lógica, retórica, aritmética, geometria, astrologia e música.
Era a Universidade de Salamanca nos séculos
XV e XVI
das mais afamadas da Península Ibérica, sendo por isso frequentada por
muitos estudantes portugueses. A instrução
média e superior que a Universidade portuguesa (Estudos Gerais) então
existente em Lisboa, ministrava, era insuficiente.
AIRES BARBOSA deve ter obtido em Salamanca os graus de bacharel e licenciado em Artes.
Tendo concluído aqui os seus estudos, foi para a Itália
frequentar a
célebre Universidade de Florença, a fim de aumentar os seus
conhecimentos da língua latina e instruir-se profundamente na língua
grega.
A língua latina já no século
XV se tinha tornado imprescindível como elemento de cultura e de comunicação entre os sábios.
Em Florença foi AIRES BARBOSA discípulo em latim e grego do notável
professor Angelo Policiano (1454-1494), e condiscípulo de João de Médicis
(1477-1521), cardeal aos doze anos de idade, e depois papa aos trinta e
sete anos, com o nome de Leão X,
desvelado protector das letras e das artes.
Podemos determinar aproximadamente a época em que AIRES BARBOSA esteve em Florença pelo facto de ter sido condiscípulo de
João de Médicis e pela data da morte de Policiano.
Com efeito, tendo João de Médicis nascido em 1477, e ,admitindo-se que
tivesse começado os seus estudos na Universidade aos quatorze anos de
idade, teria entrado para esta no ano de 1491. Como Policiano faleceu
em 1494, conclui-se que AIRES BARBOSA teria estado em Florença, pelo
menos desde 1491 até 1494 ou por volta destes anos.
É quase certo que ele tinha obtido aqui o grau de Mestre em Artes.
'LEITÃO FERREIRA diz que ele regressou a Portugal em 1494, e BARBOSA MACHADO diz que daqui voltou para Salamanca no dia 4 de
Julho de 1495.
AIRES BARBOSA queria sem dúvida ensinar humanidades
na Universidade de Salamanca, especialmente gramática (língua latina) e o
grego.
/
47 /
Esta Universidade havia criado a catedrilha de língua
grega em data hoje desconhecida, posterior a 1480; mas à data do
regresso de AIRES BARBOSA a Salamanca, ainda não estava provida. AIRES
BARBOSA veio, porém, a ocupá-la em primeiro lugar.
O prestígio da Universidade de Salamanca deslumbrava e atraía AIRES
BARBOSA para o magistério dentro dela. Em todas as suas faculdades
tinham ensinado e ensinavam professores notáveis, quer espanhóis quer
estrangeiros.
O siciliano Lúcio Marineo Sículo ocupava a cadeira de
retórica desde 1484. O italiano PEDRO MÁRTIR (1459-1526) natural de Anguiera, no Milaneso, tinha ensinado a língua latina, comentando as
sátiras de JUVENAL, a partir do ano de 1488. Foi depois cónego de
Granada, abade de Jamaica, embaixador no Cairo, protonotário apostólico
e membro do
primeiro Conselho das índias. Escreveu uma notável colecção de cartas dirigidas aos mais famosos literatos e políticos do seu
tempo. Muitas destas cartas foram publicadas no ano de 1530, em Alcalá,
sob o título Opus Epistolarum,
entre as quais figura uma dirigida a AIRES BARBOSA, na qual apelida
este de professor de língua grega.
A este respeito diz D. NICOLAO ANTÓNIO na obra já
referida:
«Extat ad eum epistola Petri Martyris, Ario scilicet Lusitano Graecas
Literas Salmanticae profitenti valetudinario inscripta, quae ultima est
libri I.»
«Petrus Martyr Anglariensis lib.
I. epist. ultima, ad eum data anno
MCCCCLXXXIX, unde constat eum jam tunc Salmanticae Graecarum literarum
esse professorem.»
(2)
Desde 1473 ensinava ainda a língua latina com fulgurante
talento e profundo saber o célebre Elio António de Nebrija (1444-1522),
o maior humanista espanhol.
AIRES BARBOSA deve ter começado a sua carreira docente na Universidade
de Salamanca como professor contratado de língua grega, provavelmente
desde 1496. Segundo a
data 1489 da carta que PEDRO MARTIR escreveu a AIRES BARBOSA, era este já professor de grego neste ano, mas isto não se coaduna
com a data da volta de AIRES BARBOSA para Salamanca em 1495. De resto, PEDRO MÁRTIR ensinou pelo menos durante o ano
lectivo de 1488-1489 em Salamanca; e quando escreveu a carta a AIRES BARBOSA já não era professor nem
/
48 /
aqui residia. Parece, portanto, que a data 1489 da carta no Opus Epistolarum está errada, e deverá ser uma data posterior.
ESPERABÉ ARTEAGA, na sua História de la
Universidad de Salamanca, tomo lI, diz-nos que nos livros de claustro e de contas da Universidade de
Salamanca não há nenhuma
referência a AIRES BARBOSA anterior ao ano de 1503; portanto
até 1502 nunca ele foi professor proprietário. ESPERABÉ indica-nos as datas das nomeações de AIRES BARBOSA para as cadeiras de
retórica e prima de gramática (língua latina).
Em 1503 foi nomeado professor proprietário da cadeira de retórica.
No dia primeiro de Maio deste ano fez o seu juramento
de bene legendo. No
dia 11 de Setembro do mesmo ano foi incorporado no Colégio de Doutores
e Mestres Artistas. As aulas começavam no dia 18 de Outubro, dia de S.
Lucas, e os trabalhos escolares terminavam no dia 8 de Setembro seguinte.
O primeiro ano de magistério
de AIRES BARBOSA como
professor proprietário foi, pois, o ano lectivo de 1503-1504.
Em 9 de Março de 1509, concorreu à cadeira de prima
de gramática, que o mestre António de Nebrija havia deixado vaga pela
sua transferência para a Universidade de Alcalá. Tendo sido aprovado,
tomou posse dela e abandonou a de retórica.
AIRES BARBOSA, já mestre afamado da língua grega, viu agora satisfeita
a sua velha aspiração de ser catedrático da língua latina. Depois, até
ser jubilado, ensinou sempre com o maior brilho estas duas línguas, mas
a grega com mais distinção e tanto que era conhecido pela honrosa
designação
de Mestre grego. Foi sem dúvida um helenista notável.
Do livro de contas da Universidade, relativo ao ano lectivo de
1523-1524, consta que AIRE5 BARBOSA se jubilou neste ano. As suas
funções docentes na Universidade tinham terminado, no mês de Setembro
de 1523. Como professor
proprietário exerceu, portanto, o magistério na Universidade
de Salamanca durante vinte anos, ou seja desde 1503 até 1523. Nos
termos dos estatutos da Universidade, vinte anos de
serviço nesta qualidade deram-lhe direito a ser jubilado.
Voltaria agora definitivamente para Portugal.
AIRES BARBOSA ensinou em Espanha o que então havia de melhor em Itália
em matéria de cultura clássica. Foi um pedagogo e humanista notável.
Preocupava-o a formação intelectual dos seus discípulos, no sentido de
virem a ser socialmente eficientes. Ele definiu nos seguintes termos o
objectivo do seu ensino, no princípio da sua obra em latim: Arii Barbosae Lusitani in verba M. Fabii. Quid? quod
/
49 /
[Vol. XIV - N.º
53 - 1948] & reliqua. Relectio de verbis obllquis,
impressa em 1511,
onde diz:
«Desde que fui incumbido do encargo literário de ensinar no Gimnásio
Salmantino ambas as línguas aos jovens de Espanha, sempre tive no ânimo
uma preocupação que ainda mantenho: procurar e investigar aquilo que
julgo ser-vos útil no futuro.»
Teve inúmeros discípulos, muitos dos quais se tornaram notáveis, como,
por exemplo, o português André de Resende, historiador e mestre no
Colégio das Artes.
AIRES BARBOSA, durante os anos que viveu em Salamanca, não se dedicou
apenas ao ensino. Cultivou também a poesia latina, correspondeu-se com
humanistas ilustres e publicou em latim várias obras de carácter
didáctico. Foi, finalmente, um dos precursores do renascimento literário
em Espanha e Portugal no século XVI.
A ele pertence uma grande honra como português: foi o primeiro professor
público de grego na Península Ibérica.
Diz o Sr. Doutor GONÇALVES CEREJEIRA: «Aires Barbosa pertence a toda a Península, e mais ainda à Espanha que a Portugal,
como patriarca dos helenistas... (O Renascimento em Portugal-Clenardo,
tomo II, pág. 135. Coimbra, 1918).
Ocupando um lugar de destaque na sociedade espanhola,
AIRES BARBOSA devia ter invejosos e detractores. E teve-os
de facto, como mostra o epigrama que ele escreveu em resposta a certo
maldizente que o censurava por se dizer discípulo de Policiano e
condiscípulo de Leão X.
Respondeu AIRES BARBOSA que não se elevava por isso, visto que a fama do
Sumo Pontífice tocava o céu e a sua rastejava na terra; e que a
sabedoria de Policiano era muito superior à sua.
O referido epigrama foi por ele publicado juntamente com a sua obra
Antimoria, e é do seguinte teor:
In quendam malivolum
Me condiscipulum decimi cum dica Leonis;
Et cum discipulum Politiane tuum:
Me premo, non tollo, nam si contraria lucent,
(Vt perhibet) iunctis clarius oppositis:
Quid tam disiunctum? Tangit fortuna supremi
Pontificis coelum: sed mea
tangit humum.
Quid tam diuersum: quantum sus nostra, Mineruae
Angele se opponens
Politiane tuae?
/
60 /
*
* *
Preparava-se AIRES BARBOSA para abandonar Salamanca nos fins de 1523 e
voltar à sua pátria, onde tencionava gozar o descanso que a Universidade
lhe concedia ao fim de vinte anos de serviço, e lá escrever a sua última
obra, a Antimoria, que há muitos anos projectava publicar.
Estava, porém, destinado que os seus trabalhos docentes não findassem
ainda. Com efeito, por esta ocasião, o rei de Portugal, D. João III,
enviou um mensageiro a Salamanca para o convidar a ser professor de seu
irmão, o cardeal infante D. Afonso, que então tinha quatorze anos de
idade e já era cardeal desde os sete anos
(3).
Acedeu AIRES BARBOSA com sacrifício a tão honroso convite, e veio por
isso para a corte portuguesa então em Évora instruir o jovem cardeal nas
humanidades, tencionando permanecer nela durante três anos,
tempo que
julgava suficiente para ensinar o seu novo discípulo
(4).
As sucessivas mudanças da corte fizeram, porém, demorar a instrução do cardeal infante D. Afonso, e por isso teve
AIRES BARBOSA de permanecer nela durante sete anos, isto é, desde 1523 até 1530. Neste ano é que os seus trabalhos
docentes terminaram para sempre.
Foi então residir na vila de Esgueira, muito próxima de Aveiro, na
companhia dos seus filhos Fernão Barbosa, e D. Margarida Barbosa, e ao
pé de alguns sobrinhos seus. Aqui pôde AIRES BARBOSA escrever em latim a
sua obra Antimoria, de carácter religioso, dedicada ao cardeal infante D. Afonso, seu ex-discípulo, e publicada em 1536.
A Antimoria opõe-se à obra
Encomium Moriae (Elogio da Loucura) do
célebre ERASMO de Roterdão (1467-1536),
publicada em 1501.
Na Antimoria exalta AIRES BARBOSA a sabedoria cristã. Da sua actividade
docente e antiga intenção de escrever
e publicar a sua Antimoria dá-nos AIRES BARBOSA notícia no
prefácio desta obra.
Assim, em tradução, diz-nos:
«Estando há uns trinta anos a leccionar
na Universidade
de Salamanca, e sendo um dos professores de Letras, ensinava
/
51 / a língua latina e grega aos jovens hispanos. Já então
desejava com grande empenho, sagrado Príncipe, dedicar ao erário do
Senhor alguma coisa da minha pouca inteligência e imitar aquela piedosa
viúva que se louva no Evangelho.
Mas como, quer pelo dever público de ensinar, quer pelo particular de
cuidar das coisas domésticas, não me fosse
possível comentar qualquer coisa, a não ser o que interpretávamos, esperava eu aquele justo e apreciado ócio que a nobre
Universidade da Hispânia costuma conceder, depois de vinte anos de
serviço, aos seus doutores, já fatigados, e
cansados pela idade.
Mas, quando isso aconteceu, logo se juntou e acrescentou ao trabalho que
havia terminado, um novo, de não menor cuidado, devendo, porém, ser
realizado por mim em menos tempo.
Na verdade, tendo teu irmão D. João
III, ínclito rei de Portugal, enviado a Salamanca um mensageiro a chamar-me, exortou-me por
carta a que te instruísse, sendo tu então uma criança, embora já
admitido no colégio dos cardeais e do sumo senado.
Não pude recusar-me ao pai da minha pátria, julgando que, sem dúvida,
nenhuma tarefa mais grata me poderia ser oferecida por Deus do que
educar-te, a ti, um divino adolescente, dando a maior esperança.
Realizámos esta outra obrigação do
nosso labor em sete
anos, nos quais aprendeste a arte de falar, da oratória, da
discussão, juntamente com outras elegâncias das humanidades.
Na verdade, este trabalho,
que é o vigor e a força da tua inteligência, − te-lo-ia realizado em três anos, se não fossem as mudanças da instável
cúria.
Agora estou liberto duplamente; como as aulas e o Palácio
me concedem um tranquilo repouso na minha pátria, recordo, já velho,
aquilo que tinha em mente quando era novo.»
[Arii Baruosae Lusitani praefatio in Antimoriam. Ad
Illustrissimum S. R. Ecclesiae Cardinalem & Portugaliae
Infantem. D. Alfonsum.
«Cum in Salmãticensi academia ab hinc triginta fere annos literariae
militiae stipendia facerem: & inter professores bonarũ artium vnus
vtranq; linguam hispanos iuuenes docerem: etc.»]
AIRES BARBOSA escreveu em verso latino todas as suas
obras, com excepção de ln verba M. Fabii: Quid? quod & reliqua. Relectio de verbis obliquis; e todas foram impressas em
Salamanca, excepto a Antimoria, que foi impressa em Portugal, no
mosteiro de Santa Cruz de Coimbra.
/ 52 /
As obras são intituladas como segue:
Rhetorica.
Arii Barbosae Lusitatii in verba M. Fabii: Quid?
quod & rellqua. Relectio de verbis obliquis. 1511.
Esta obra revela o muito saber e merecimento do autor.
Contém um prefácio de ANTÓNIO HONCALA, no qual este
apresenta AIRES BARBOSA como pessoa de grande sabedoria em ambas as
línguas, e se refere ao cognome de grego que este tinha em Salamanca.
Existe um exemplar desta obra na Biblioteca da Universidade de Coimbra (R.-10-13). Ocupa dezanove folhas; a primeira página contém apenas o prefácio de A. HONCALA,
e a última página está em branco. Encontra-se junta com
outras obras na Micelania Valasci (R.-10- 13).
A obra termina com o seguinte colofon:
Dixi to theo doxa amen. Impressum Salmanticae
Idibus luniis anno a genesi liberatoris nostri & salutiferi
lesu. MDXI. Arius ipse negat alienam se prestare
culpam.
Epometria, seu de metiendi éarmina oratione. 1515.
Epigrammatum seu
Operum ejus Poeticarum. 1516.
Aratoris Cardinalis
Historia Apostolica cum Cõmentariis Arii Barbosae Lusitani. 1516.
De prosodia, scilicet, Relectio, seu de re Poetica, ac
recta scribendi ratione. 1517.
De Orthographia. 1517.
Epigramma in laudem Petri Margalli. 1520.
Epistola latina, Arius Barbosa Lusitanus, Margallo
Theoloho Doctori. 1520.
Ad juvenes studiosos bonarum artium Carmen. 1520.
Estes três últimos opúsculos foram publicados em Salamanca, em 1520, no Compêndio de Física (Phisices Compendium) do Doutor
PEDRO MARGALHO, notável professor
português de Filosofia Moral na Universidade de Salamanca.
Eles foram transcritos por FRANCISCO LEITÃO FERREIRA na sua obra
Noticias Chronologicas da Universidade de
/
53 / Coimbra, por serem já então raríssimos estes Compêndios
de Física.
Quodlibeticas quaestiones.
Arii Baruosae Lusitani Antimoria. Eiusdem nonnula
Epigrammata. 1536.
O local e a data da impressão desta obra são nesta mencionados nos seguintes termos:
Conimbriae Apud Coenobium diuae Crucis. M.C.XXXVI.
Juntamente com ela publicou AIRES BARBOSA cerca de
cinquenta epigramas seus.
Desta obra existem em Portugal três exemplares: um na Biblioteca da
Universidade de Coimbra (R.-3-I9), outro na Biblioteca Nacional de
Lisboa, e outro na colecção que pertenceu ao rei D. Manuel lI,
incorporada actualmente no Museu Biblioteca de Vila Viçosa.
*
* *
Muitos escritores e autores de renome exaltaram AIRES BARBOSA.
DIOGO BARBOSA MACHADO, abade de Sever, na sua obra
Bibliotheca Lusitana
dá-nos notícia das opiniões de muitos homens ilustres. Dela vamos
transcrever algumas.
O grande humanista espanhol ANTÓNIO DE NEBRIJA, nos
seus Quinquanar ad Franc. Ximenes, diz:
«Graeca lingua excitata est, atque jam pridem per Hispaniam divulgata ab
Ario Lusitano Viro Graece, et Latine
perquam erudito.»
O Doutor MARTIM DE FIGUEIREDO, na dedicatória a
D. João III do seu já citado Comentário ao prólogo das Histórias
Naturais de PLÍNIO, diz:
«A Salmantica totius Hispaniae celeberrimo Gymnasio
venire feciste doctissimum, ac praestantissimo Arium Barbosam magnis
praemis, ac pollicitationibus post concessam studiis quietam.»
ANDRÉ DE RESENDE, na Epistola ad Quevedo Toletano, diz:
«Arius Lusitanus quadraginta, et eo plus annos Salmanticae tum Latinas
Litteras, Graecas magna cum laude professus est.»
/
54 /
E no seu Encomium Erasmi:
Hispanique sacer meritis honor orbis Arius.
Magnis cui debet quantum nunc Pallados illic
Cultior usus habet, docuit fiam primus Iberos
Hippocrenaeo Grajas componere voces
Ore; etenim quid quid frugis nunc !tala regna,
Graecia quondam habuit, quid quid patriae que; suis que
Importavit & a
Galli stribligine tandem
Asseruit, fierique dedit sermone Quiritas.
(in Bibliotheca Hisp. Nova. tomo
I, pág.171).
LOURENÇO CRASSO (Hist. di Poet. Grec.) diz:
«Homo di moIta doctrina, e di molta lingue
intendente,
e poeta insigne. Costui fui il primo che porto de Lettre
Greche in Spagna: visse en compagnia di Antonio Nebricense ma com maggior fama del ditto Nebricense delIa lengue Greca, e
Poesia.»
DIOGO BARBOSA MACHADO faz-lhe o seguinte
comentário,
na Bibliotheca Lusitana:
«Jazia nestes tempos em Espanha muda a eloquencia;
estavão separadas do comercio dos Sabios as Musas, e se
tinha introduzido uma tal ignorancia das linguas, e letras
humanas, que somente dominava a barbaridade, contra a qual
se armou Ayres Barbosa como outro Hercules degolIando a
Hydra mais perniciosa, que a de Lema, com as doutas instrucçoens do seu Magisterio exercitado pelo largo espaço de
vinte anos com singular credito do seu talento e não pequena
gloria, e fruto dos seus discipulos.»
Por interessar ao presente estudo, transcrevo
aqui parte
de um comentário anónimo dirigido a BARBOSA MACHADO,
intitulado Reflexão relativa a Ayres Barbosa, constante de
um manuscrito existente na Biblioteca Pública de Évora
(cód. referido Cx / I - 6):
«Diz o Ab.e de Sever, q. o epigrama em
q se dá not.ª
dos Pais, e Ascd.tes de Ayres Barb.ª está no fim da sua Prosodia; e depois não se lembra de por esta obra no Catálogo
dos Escritos deste Sábio apontando só a obra = De Orthographia = q. foi posterior á Prosodia, ainda q. impressa no
m.º ano, e na m.ª Cid.e
Falta lambem á Bibl. Luz. — a obra = Relectio de verbis
obliquis = q. anda junta com = De Prosodia = De Orthogr. =
e Epometria.
Estes escriptos merecerão a Ayres B. os elogios e os
dos sábios Estrangr.os e Nacionaes pela sua rarid.e
e beleza:
acha se nelles hũ belo latim com os preceitos mais seg.os, da
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gramatica lat.ª estão semeados de varias autorid.es gregas, ainda q. em
caract.es latinos, pelos não haver em Salamanca,
como diz o m.º A.
Pode notar-se-Ihe a languidez dos seus versos, e o uzo
afectado talvez de palavras exoticas: são defeitos talvez leves,
e desculpaveis em tp.os barbaros: teve a gloria porem de ser
dos primr.os q. em Port.al, e talvez em Espanha começou a
abrir os olhos, e a restabelecer as belas Letras.
Dos opusculos q. tenho visto (q. são poucos) só o de
= Relectio de verbis obliquis = não he em verso: os outros
dão os preceitos da Gramt. em verso. e explicão depois difuzam.te em prosa os m.os preceitos. Quem sabe se o P.e
M.el Alv.s se serviria delle e delles?»
Vivia AIRES BARBOSA, o
mestre grego, em Esgueira, na
rua da Corredoura, com seus filhos Fernão Barbosa e D. Margarida Barbosa; sua filha D. Catarina estava freira no convento
do Santo Espírito. Entretanto mandou construir nesta vila
uma capela, sob a invocação de Nossa Senhora do Desterro,
no adro da igreja de Santo André, contíguo ao passal, ambos
sobranceiros ao ribeiro. Esta capela tinha por fim guardar
os seus restos mortais e perpetuar o seu nome. Há já muitos
anos que esta capela, o adro e o passal deixaram de existir,
mas perduram estas duas últimas designações, e ainda existe
a Viela do Adro.
A igreja paroquial de então devia ter estado neste velho
adro, que servia de cemitério, pois que nele se encontram
ainda hoje ossadas humanas e moedas antigas como eu próprio verifiquei.
No princípio do ano de 1540, AIRES BARBOSA, já velho,
adoeceu gravemente, e previu que o fim da sua vida estava
próximo. Chamou por isso o tabelião público judicial de
Esgueira, João Cerveira, e ditou-lhe o seu último testamento, no dia
cinco de Janeiro daquele ano.
Dispôs dos seus bens, e
vinculou a terça parte deles à
sua capela de Nossa Senhora do Desterro; determinou que queria ser sepultado dentro dela e que sobre a sua sepultura
fosse colocada uma lápide com a seguinte inscrição:
Aqui jaz o corpo do mestre Aires Barbosa.
Determinou também que por
sua morte seria administradora da capela sua filha D. Margarida e nunca seu filho
Fernando Barbosa «por ser muito mancebo em seu viver».
Impôs finalmente a condição de os futuros administradores
da dita capela usarem o apelido Barbosa para memória do
seu instituidor.
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No dia seguinte, seis de Janeiro, pelo referido tabelião
e na presença de testemunhas, foi aprovado o testamento.
No dia 19 do mesmo mês e ano mandou AIRES BARBOSA fazer
um «instrumento de declaração» ao seu testamento, no qual
indicou os bens que vinculava à capela e regulou a sucessão
na administração desta.
Estiveram presentes como testemunhas, Simão Tavares,
fidalgo da casa deI-Rei, e Tomás Ferreira, cavaleiro, ambos moradores na
vila de Aveiro; além destes, Gonçalo Coelho,
Tristão Pinto, Cristóvão Pacheco, Alfredo de Oliveira,
Simão Varela e Fernão de Figueiredo, escudeiros fidalgos,
moradores em Esgueira.
AIRES BARBOSA, mestre do senhor infante cardeal, como
se intitulou no seu testamento, tinha os seus dias contados.
Com efeito, no dia seguinte, 20 de Janeiro de 1540, dia de
S. Sebastião, falecia nas suas pousadas de Esgueira, como
expressamente o diz o termo de abertura do seu testamento,
termo feito neste mesmo dia.
Conforme tinha determinado, o seu corpo foi sepultado
na capela que instituíra, e na campa foi lavrada a seguinte
inscrição:
Aquy ias o Corpo de Ayres Barbosa mestre Grego
Era de 1540
A capela de AIRES BARBOSA já não existe há muitos anos e nem dela resta
já a menor tradição popular:
Na informação Paroquial de Santo André de Esgueira, do ano 1721, lê-se a seguinte referência a ela:
«E fora da Igreja ha hũa Ermida do Diuino Spiritu
S.to que he do pouo − Mais outra da Sñra do desterro Capella de
que he Instetuidor Ayres Barboza mestre grego; e de prezente he administrador Manuel de Almeida
Leitão, do Tojal.»
E noutro passo da dita informação lê-se:
«Mais na Capella de nossa
Senhora do desterro fora da
Igreja está huma Sepultura Cujo Letereiro diz − Aquy iás o Corpo de
Ayres Barboza mestre Grego. Era de mil e quinhentos e quarenta − E outra que dis
− Aqui iás Domna Margarida = E outra junto a mesma Capella que se não diuidem
as Letras por serem iá gastas»
(5).
A capela existia ainda no ano de 1749, pois neste ano
tomou posse dela D. Josefa Caetana Barbosa de Melo e
Figueiredo, da vila de Alverca.
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É de crer que ainda existisse em 1821, pois que em 10 de Abril deste
ano foi tirada uma pública forma, que possuo, de dois documentos
referentes à capela, um do ano de 1697 e outro do ano de 1749, a qual
deve ter servido para efeitos de venda
ou herança da referida capela e seu vínculo.
O documento de 1697 contém uma petição de Gomes de Figueiredo Barbosa, morador na vila de Alverca, e administrador da
capela de Aires Barbosa, para que lhe seja passada uma certidão das
propriedades pertencentes à dita capela, situadas na vila de Esgueira e
sua comarca, devendo a certidão ser tirada do próprio tombo da capela que para isso
apresentava a António Queimado de Brito, escrivão público
judicial e de notas da vila de Alverca. O documento contém ainda a
certidão pedida.
O documento de 1749 é o instrumento de justificação
de posse da referida capela e respectivos bens tomada nos dias 13
e 14 de Junho deste ano por D. Josefa Caetana Barbosa de Melo e
Figueiredo, da vila de Alverca, como herdeira de sua tia D. Isabel
Teresa Barbosa de Melo e Figueiredo, viúva de Manuel de Almeida Leitão
Pereira, morgado do Tojal (comarca de Viseu).
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FRANCISCO FERREIRA NEVES |