F. Ferreira Neves, Vida e testamento do humanista Aires Barbosa, Vol. XIV, pp. 42-64

VIDA E TESTAMENTO DO

HUMANISTA AIRES BARBOSA

SÃO actualmente pouco conhecidas a vida e obras do ilustre português AIRES BARBOSA ou Arius Lusitanus que se notabilizou no primeiro quartel do século XVI como professor de latim e de grego na Universidade de Salamanca. Tendo honrado muito o seu país em terra estrangeira, é justo e patriótico recordar o seu nome e merecimentos.

Vários autores têm publicado notícias biográficas acerca deste humanista, mas quem mais desenvolvidamente se ocupou dele foi o espanhol D. NICOLAO ANTONIO (1617-1684) na sua obra Bibliotheca Hispana Nova sive Hispanorum Scriptorum, tomo primeiro, MDCCLXXXIII. Devem mencionar-se ainda outros que lhe fizeram referências de relevo tais como: FRANCISCO LEITÃO FERREIRA (1667-1735) na sua obra Noticias Chronologicas da Universidade de Coimbra; DIOGO BARBOSA MACHADO (1682-1772), na sua Bibliotheca Lusitana; ALEXANDRE VIDAL y DIAZ na sua Memoria Historica de la Universidad de Salamanca; 1869, Salamanca; ENRIQUE ESPERABÉ ARTEAGA, na sua Historia de la Universidad de Salamanca, tomo II, 1917, Salamanca; o Sr. Doutor MANUEL GONÇALVES CEREJEIRA, actual cardeal patriarca de Lisboa, na sua obra O Renascimento em Portugal − Clenardo. Coimbra, 1917; e MARCEL BATAILLON em Erasme et l'Espagne, Paris, 1937.

Aires Barbosa ou Aires de Figueiredo Barbosa nasceu em Aveiro cerca do ano de 1470, sendo seu pai Fernão Barbosa e sua mãe D. Catarina Eanes de Figueiredo. Ele mesmo nos diz a terra da sua naturalidade e os nomes dos seus progenitores num dos epigramas que publicou em 1516 em Salamanca e intitulou De patria sua et parentibus. / 43 /

DIOGO BARBOSA MACHADO, abade de Sever, transcreve este epigrama, com excepção do último dístico, na sua Bibliotheca Lusitana como segue:

Scire volet patriamque meam, nomenque paternum
Has quisque nugas gaudet habere meas.
Nec dives muItum, nec paupertate notandus
A nobis quondam, sed tamen ortus avis.
Fernandus Barbosa pater, Catharinaque mater
A notis etiam, quae Figueretta venit
Me genuere, furit vastis qua fluctibus ingens
Ultimus occidui littoris Occeanus.
Quaque habet Aveiro portu praedives amaeno
Quidquid habet teIlus, & mare quidquid habet.


AlRES BARBOSA informa, pois, os que quiserem saber qual é a sua pátria, o seu nome paterno e outras coisas a seu respeito, de que possui alguma fortuna, e é descendente de antepassados conhecidos. Seu pai é Fernão Barbosa e sua mãe é Catarina descendente dos Figueiredos. A sua terra natal, é Aveiro, junto ao grande oceano do litoral ocidental, com um porto rico e ameno, e a terra e o mar têm alguma riqueza.

Não se sabe a naturalidade do pai de AIRES BARBOSA. Sua mãe era natural da vila de Esgueira, distante apenas meia légua da então vila de Aveiro.

No século XV já os Figueiredos estavam dispersos por várias terras, entre as quais Viseu, Aveiro e Esgueira, e ligados a várias famílias nobres.

CRISTÓVÃO ALÃO DE MORAIS, genealogista do século XVII, dá-nos, na sua obra Pedatura Lusitana, a ascendência de AIRES BARBOSA pelo lado materno. Assim diz (1):

«O G.co de Fig.do f.º 3.º de G.ço de Fig.do n.º 5. e hirmão de Luis de Fig.do n.º 6. casou em Esgueira com ... ... ... f.ª de ... ... ... e teve geração e foi seu f.º ou neto J.º de Fig.do de Sequeira Thezoureiro da casa da lndia q está sepultado em S. Franc.co de Lisboa aonde estão as armas dos Figueiredos, e mais dous castelos q lhe deu El Rei pello servir em Arzilla e sustentar-lhe hũ baluarte onde perdeu hũ olho: Este G.co de Figueiredo chamarão o Corredor dos Cavallos por elle o fazer bem: forão seus f.os e outros dizẽ q hirmãos.

7 Jorge de Figueredo
7 o D.or Martim de Fig.do soltr.º
7 Cn.ª Eanes de Figueiredo mer de ... ... ... q forão
/ 44 / paes de Ayres Barbosa M.e dos Cardeaes D. A.º e D. Henriq. f.os deI Rey D. ManoeI.


Consta que este G.co de Figueiredo foi casado cõ Cn.ª Sousa, pelIa carta de venda q fizerão a Gil de Fig.do de Vizeu da quinta de Nogueiredo, e outros casaes, e parece q ella devia ser maẽ dos f.os q aqui lhe damos, q cõ mayor certeza o são deste G.co de Fig.do»

Vê-se que a mãe de AIRES BARBOSA era irmã do Dr. Martim de Figueiredo, do conselho do rei D. João lII, doutor em direito civil e canónico, poeta e grande latinista.

Martim de Figueiredo, depois de se ter doutorado in utroque jure, foi para Florença profundar a sua cultura humanista, e aqui, discípulo do célebre professor Angelo Policiano, aumentou extraordinariamente os seus conhecimentos da língua latina a ponto de publicar em Lisboa, no ano de 1529, uma obra em latim, dedicada a D. João lII e intitulada:

Epistola Plinij secundũ veraz lectionẽ ex exquisitissimis ĩ antiquissimis exemplaribus. Ab Angelo Politiano magnis sumptibus; et summa dililgentia vndiqz perquesitis.


Esta obra é um comentário ao prefácio das Histórias Naturais, de PLÍNIO, sendo este constituído por uma epístola de PLÍNIO, o Moço, dirigida a Tito Vespasiano (C. Plinius Secundus Vespasiano suo S). As matérias deste coomentário são assim intituladas:

— Cõmentũ super prolugũ naturalis historie Plinii. Cõpositũ per Martinũ Figueretũ. I. U. Doctorem: et Serenissimi Regis Portugalie senato'rem.

Expliciunt Commentaria Martini Figuereti Lusitani. I. U. Doctoris super epistolam naturalis historie Plinii.

Lugar e data da impressão:

Impressa Ulyxbone per Germanu Galhard Anno dñi Millessimo quingẽtesimo vigessimo nono Idibus Junij.

Da referida obra apenas se conhecem dois exemplares; um, existente na Biblioteca da Universidade de Coimbra, ao qual falta já a primeira folha (Martinus Figueretus, R-28-20), e outro na colecção do rei D. Manuel II, hoje pertença do Museu Biblioteca de Vila Viçosa.

É a Martim de Figueiredo e ao referido comentário que se refere ANDRÉ DE RESENDE (1495-1575) na sua obra De Antiquitatibus / 45 / Lusitaniæ Libri Quattuor, dedicada ao cardeal infante D. Afonso, quando diz:

«Nobis adolescentibus Martinus Ficaretus iurisconsultus, & Latinarum litterarum non imperitus, quibus operam non ignauam sub Politiano Florenciae dederat,...» (Edição de Roma, MDXCVII, pág. 97).

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Não se conhece a data certa do nascimento de AIRES BARBOSA. Pelo que diz respeito à da sua morte, todos os autores até H. ESPERABÉ ARTEAGA, disseram que ele faleceu por volta de 1530, já muito velho, baseando-se em LOUIS MORERI que assim o referiu no seu Dicionário, tomo II.

ARTEAGA diz-nos, porém, que AIRES BARBOSA faleceu em Portugal no dia vinte de Janeiro de 1540, como verificou no livro das contas da Universidade de Salamanca.

Procurei determinar a data exacta e local da morte de AIRES BARBOSA, através do seu testamento e termo de abertura que deviam estar transcritos num dos Tombos da Provedoria de Esgueira. Mas estes tombos desapareceram no incêndio do edifício do Governo Civil de Aveiro em 20 de Julho de 1864, onde estavam arquivados.

Por felicidade, encontraram-se traslados destes documentos na Biblioteca Pública de Évora (Instituição da capella de Ayres Barbosa, mestre de Grego, na igreja de Esgueira e noticia da sua vida. Cod. Cx/I-6) das quais em 1942 obtive cópias que adiante publicarei. Por estes documentos verifiquei que AIRES BARBOSA faleceu na vila de Esgueira, e nas suas pousadas, no dia 20 de Janeiro de 1540. É, pois, certa a data indicada por ARTEAGA.

AIRES BARBOSA casou com D. Isabel de Figueiredo e dela teve cinco filhos.

Esta faleceu ainda muito nova e provavelmente em Salamanca.

Seu marido compôs-lhe então um epitáfio que publicou em 1536, juntamente com a sua obra Antimoria, o qual aqui transcrevo:


                Epitaphium Uxoris

Hic iacet Elisabet generosae stirpis, & uxor
Baruosae, moriens morte beata fuit.
Nam bene quae uixit, fatali molliter hora
Castam animam coelo reddit; ossa solo.
Est igitur foelix, nullum facundo Solonis
Foelicem licet fuerit nimium florentibus annis.
Te patrem quino pignore fecit Ari.

/ 46 /

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É de crer que AIRES BARBOSA tenha feito em Portugal :apenas os primeiros estudos. Certo é ter ido, ainda muito jóvem, para a Universidade de Salamanca estudar humanidades, que, durante a Idade Média e ainda algum tempo depois, eram constituídas pelas sete artes liberais: gramática, lógica, retórica, aritmética, geometria, astrologia e música.

Era a Universidade de Salamanca nos séculos XV e XVI das mais afamadas da Península Ibérica, sendo por isso frequentada por muitos estudantes portugueses. A instrução média e superior que a Universidade portuguesa (Estudos Gerais) então existente em Lisboa, ministrava, era insuficiente.

AIRES BARBOSA deve ter obtido em Salamanca os graus de bacharel e licenciado em Artes.

Tendo concluído aqui os seus estudos, foi para a Itália frequentar a célebre Universidade de Florença, a fim de aumentar os seus conhecimentos da língua latina e instruir-se profundamente na língua grega.

A língua latina já no século XV se tinha tornado imprescindível como elemento de cultura e de comunicação entre os sábios.

Em Florença foi AIRES BARBOSA discípulo em latim e grego do notável professor Angelo Policiano (1454-1494), e condiscípulo de João de Médicis (1477-1521), cardeal aos doze anos de idade, e depois papa aos trinta e sete anos, com o nome de Leão X, desvelado protector das letras e das artes.

Podemos determinar aproximadamente a época em que AIRES BARBOSA esteve em Florença pelo facto de ter sido condiscípulo de João de Médicis e pela data da morte de Policiano.

Com efeito, tendo João de Médicis nascido em 1477, e ,admitindo-se que tivesse começado os seus estudos na Universidade aos quatorze anos de idade, teria entrado para esta no ano de 1491. Como Policiano faleceu em 1494, conclui-se que AIRES BARBOSA teria estado em Florença, pelo menos desde 1491 até 1494 ou por volta destes anos.

É quase certo que ele tinha obtido aqui o grau de Mestre em Artes.

'LEITÃO FERREIRA diz que ele regressou a Portugal em 1494, e BARBOSA MACHADO diz que daqui voltou para Salamanca no dia 4 de Julho de 1495.

AIRES BARBOSA queria sem dúvida ensinar humanidades na Universidade de Salamanca, especialmente gramática (língua latina) e o grego. / 47 /

Esta Universidade havia criado a catedrilha de língua grega em data hoje desconhecida, posterior a 1480; mas à data do regresso de AIRES BARBOSA a Salamanca, ainda não estava provida. AIRES BARBOSA veio, porém, a ocupá-la em primeiro lugar.

O prestígio da Universidade de Salamanca deslumbrava e atraía AIRES BARBOSA para o magistério dentro dela. Em todas as suas faculdades tinham ensinado e ensinavam professores notáveis, quer espanhóis quer estrangeiros.

O siciliano Lúcio Marineo Sículo ocupava a cadeira de retórica desde 1484. O italiano PEDRO MÁRTIR (1459-1526) natural de Anguiera, no Milaneso, tinha ensinado a língua latina, comentando as sátiras de JUVENAL, a partir do ano de 1488. Foi depois cónego de Granada, abade de Jamaica, embaixador no Cairo, protonotário apostólico e membro do primeiro Conselho das índias. Escreveu uma notável colecção de cartas dirigidas aos mais famosos literatos e políticos do seu tempo. Muitas destas cartas foram publicadas no ano de 1530, em Alcalá, sob o título Opus Epistolarum, entre as quais figura uma dirigida a AIRES BARBOSA, na qual apelida este de professor de língua grega.

A este respeito diz D. NICOLAO ANTÓNIO na obra já referida:

«Extat ad eum epistola Petri Martyris, Ario scilicet Lusitano Graecas Literas Salmanticae profitenti valetudinario inscripta, quae ultima est libri I.»

«Petrus Martyr Anglariensis lib. I. epist. ultima, ad eum data anno MCCCCLXXXIX, unde constat eum jam tunc Salmanticae Graecarum literarum esse professorem.» (2)

Desde 1473 ensinava ainda a língua latina com fulgurante talento e profundo saber o célebre Elio António de Nebrija (1444-1522), o maior humanista espanhol.

AIRES BARBOSA deve ter começado a sua carreira docente na Universidade de Salamanca como professor contratado de língua grega, provavelmente desde 1496. Segundo a data 1489 da carta que PEDRO MARTIR escreveu a AIRES BARBOSA, era este já professor de grego neste ano, mas isto não se coaduna com a data da volta de AIRES BARBOSA para Salamanca em 1495. De resto, PEDRO MÁRTIR ensinou pelo menos durante o ano lectivo de 1488-1489 em Salamanca; e quando escreveu a carta a AIRES BARBOSA já não era professor nem / 48 / aqui residia. Parece, portanto, que a data 1489 da carta no Opus Epistolarum está errada, e deverá ser uma data posterior.

ESPERABÉ ARTEAGA, na sua História de la Universidad de Salamanca, tomo lI, diz-nos que nos livros de claustro e de contas da Universidade de Salamanca não há nenhuma referência a AIRES BARBOSA anterior ao ano de 1503; portanto até 1502 nunca ele foi professor proprietário. ESPERABÉ indica-nos as datas das nomeações de AIRES BARBOSA para as cadeiras de retórica e prima de gramática (língua latina).

Em 1503 foi nomeado professor proprietário da cadeira de retórica.

No dia primeiro de Maio deste ano fez o seu juramento de bene legendo. No dia 11 de Setembro do mesmo ano foi incorporado no Colégio de Doutores e Mestres Artistas. As aulas começavam no dia 18 de Outubro, dia de S. Lucas, e os trabalhos escolares terminavam no dia 8 de Setembro seguinte.

O primeiro ano de magistério de AIRES BARBOSA como professor proprietário foi, pois, o ano lectivo de 1503-1504.

Em 9 de Março de 1509, concorreu à cadeira de prima de gramática, que o mestre António de Nebrija havia deixado vaga pela sua transferência para a Universidade de Alcalá. Tendo sido aprovado, tomou posse dela e abandonou a de retórica.

AIRES BARBOSA, já mestre afamado da língua grega, viu agora satisfeita a sua velha aspiração de ser catedrático da língua latina. Depois, até ser jubilado, ensinou sempre com o maior brilho estas duas línguas, mas a grega com mais distinção e tanto que era conhecido pela honrosa designação de Mestre grego. Foi sem dúvida um helenista notável.

Do livro de contas da Universidade, relativo ao ano lectivo de 1523-1524, consta que AIRE5 BARBOSA se jubilou neste ano. As suas funções docentes na Universidade tinham terminado, no mês de Setembro de 1523. Como professor proprietário exerceu, portanto, o magistério na Universidade de Salamanca durante vinte anos, ou seja desde 1503 até 1523. Nos termos dos estatutos da Universidade, vinte anos de serviço nesta qualidade deram-lhe direito a ser jubilado. Voltaria agora definitivamente para Portugal.

AIRES BARBOSA ensinou em Espanha o que então havia de melhor em Itália em matéria de cultura clássica. Foi um pedagogo e humanista notável. Preocupava-o a formação intelectual dos seus discípulos, no sentido de virem a ser socialmente eficientes. Ele definiu nos seguintes termos o objectivo do seu ensino, no princípio da sua obra em latim: Arii Barbosae Lusitani in verba M. Fabii. Quid? quod / 49 / [Vol. XIV - N.º 53 - 1948] & reliqua. Relectio de verbis obllquis, impressa em 1511, onde diz:

«Desde que fui incumbido do encargo literário de ensinar no Gimnásio Salmantino ambas as línguas aos jovens de Espanha, sempre tive no ânimo uma preocupação que ainda mantenho: procurar e investigar aquilo que julgo ser-vos útil no futuro.»

Teve inúmeros discípulos, muitos dos quais se tornaram notáveis, como, por exemplo, o português André de Resende, historiador e mestre no Colégio das Artes.

AIRES BARBOSA, durante os anos que viveu em Salamanca, não se dedicou apenas ao ensino. Cultivou também a poesia latina, correspondeu-se com humanistas ilustres e publicou em latim várias obras de carácter didáctico. Foi, finalmente, um dos precursores do renascimento literário em Espanha e Portugal no século XVI.

A ele pertence uma grande honra como português: foi o primeiro professor público de grego na Península Ibérica.

Diz o Sr. Doutor GONÇALVES CEREJEIRA: «Aires Barbosa pertence a toda a Península, e mais ainda à Espanha que a Portugal, como patriarca dos helenistas... (O Renascimento em Portugal-Clenardo, tomo II, pág. 135. Coimbra, 1918).

Ocupando um lugar de destaque na sociedade espanhola, AIRES BARBOSA devia ter invejosos e detractores. E teve-os de facto, como mostra o epigrama que ele escreveu em resposta a certo maldizente que o censurava por se dizer discípulo de Policiano e condiscípulo de Leão X.

Respondeu AIRES BARBOSA que não se elevava por isso, visto que a fama do Sumo Pontífice tocava o céu e a sua rastejava na terra; e que a sabedoria de Policiano era muito superior à sua.

O referido epigrama foi por ele publicado juntamente com a sua obra Antimoria, e é do seguinte teor:

            In quendam malivolum

Me condiscipulum decimi cum dica Leonis;
Et cum discipulum Politiane tuum:
Me premo, non tollo, nam si contraria lucent,
(Vt perhibet) iunctis clarius oppositis:
Quid tam disiunctum? Tangit fortuna supremi
Pontificis coelum: sed mea tangit humum.
Quid tam diuersum: quantum sus nostra, Mineruae
Angele se opponens Politiane tuae?

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*       *

Preparava-se AIRES BARBOSA para abandonar Salamanca nos fins de 1523 e voltar à sua pátria, onde tencionava gozar o descanso que a Universidade lhe concedia ao fim de vinte anos de serviço, e lá escrever a sua última obra, a Antimoria, que há muitos anos projectava publicar.

Estava, porém, destinado que os seus trabalhos docentes não findassem ainda. Com efeito, por esta ocasião, o rei de Portugal, D. João III, enviou um mensageiro a Salamanca para o convidar a ser professor de seu irmão, o cardeal infante D. Afonso, que então tinha quatorze anos de idade e já era cardeal desde os sete anos (3).

Acedeu AIRES BARBOSA com sacrifício a tão honroso convite, e veio por isso para a corte portuguesa então em Évora instruir o jovem cardeal nas humanidades, tencionando permanecer nela durante três anos, tempo que julgava suficiente para ensinar o seu novo discípulo (4).

As sucessivas mudanças da corte fizeram, porém, demorar a instrução do cardeal infante D. Afonso, e por isso teve AIRES BARBOSA de permanecer nela durante sete anos, isto é, desde 1523 até 1530. Neste ano é que os seus trabalhos docentes terminaram para sempre.

Foi então residir na vila de Esgueira, muito próxima de Aveiro, na companhia dos seus filhos Fernão Barbosa, e D. Margarida Barbosa, e ao pé de alguns sobrinhos seus. Aqui pôde AIRES BARBOSA escrever em latim a sua obra Antimoria, de carácter religioso, dedicada ao cardeal infante D. Afonso, seu ex-discípulo, e publicada em 1536.

A Antimoria opõe-se à obra Encomium Moriae (Elogio da Loucura) do célebre ERASMO de Roterdão (1467-1536), publicada em 1501.

Na Antimoria exalta AIRES BARBOSA a sabedoria cristã. Da sua actividade docente e antiga intenção de escrever e publicar a sua Antimoria dá-nos AIRES BARBOSA notícia no prefácio desta obra.

Assim, em tradução, diz-nos:

«Estando há uns trinta anos a leccionar na Universidade de Salamanca, e sendo um dos professores de Letras, ensinava / 51 / a língua latina e grega aos jovens hispanos. Já então desejava com grande empenho, sagrado Príncipe, dedicar ao erário do Senhor alguma coisa da minha pouca inteligência e imitar aquela piedosa viúva que se louva no Evangelho.

Mas como, quer pelo dever público de ensinar, quer pelo particular de cuidar das coisas domésticas, não me fosse possível comentar qualquer coisa, a não ser o que interpretávamos, esperava eu aquele justo e apreciado ócio que a nobre Universidade da Hispânia costuma conceder, depois de vinte anos de serviço, aos seus doutores, já fatigados, e cansados pela idade.

Mas, quando isso aconteceu, logo se juntou e acrescentou ao trabalho que havia terminado, um novo, de não menor cuidado, devendo, porém, ser realizado por mim em menos tempo.

Na verdade, tendo teu irmão D. João III, ínclito rei de Portugal, enviado a Salamanca um mensageiro a chamar-me, exortou-me por carta a que te instruísse, sendo tu então uma criança, embora já admitido no colégio dos cardeais e do sumo senado.

Não pude recusar-me ao pai da minha pátria, julgando que, sem dúvida, nenhuma tarefa mais grata me poderia ser oferecida por Deus do que educar-te, a ti, um divino adolescente, dando a maior esperança.

Realizámos esta outra obrigação do nosso labor em sete anos, nos quais aprendeste a arte de falar, da oratória, da discussão, juntamente com outras elegâncias das humanidades.

Na verdade, este trabalho, que é o vigor e a força da tua inteligência, − te-lo-ia realizado em três anos, se não fossem as mudanças da instável cúria.

Agora estou liberto duplamente; como as aulas e o Palácio me concedem um tranquilo repouso na minha pátria, recordo, já velho, aquilo que tinha em mente quando era novo.»

[Arii Baruosae Lusitani praefatio in Antimoriam. Ad Illustrissimum S. R. Ecclesiae Cardinalem & Portugaliae Infantem. D. Alfonsum.

«Cum in Salmãticensi academia ab hinc triginta fere annos literariae militiae stipendia facerem: & inter professores bonarũ artium vnus vtranq; linguam hispanos iuuenes docerem: etc.»]

AIRES BARBOSA escreveu em verso latino todas as suas obras, com excepção de ln verba M. Fabii: Quid? quod & reliqua. Relectio de verbis obliquis; e todas foram impressas em Salamanca, excepto a Antimoria, que foi impressa em Portugal, no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. / 52 /

As obras são intituladas como segue:

Rhetorica.

Arii Barbosae Lusitatii in verba M. Fabii: Quid? quod & rellqua. Relectio de verbis obliquis. 1511.

Esta obra revela o muito saber e merecimento do autor. Contém um prefácio de ANTÓNIO HONCALA, no qual este apresenta AIRES BARBOSA como pessoa de grande sabedoria em ambas as línguas, e se refere ao cognome de grego que este tinha em Salamanca.

Existe um exemplar desta obra na Biblioteca da Universidade de Coimbra (R.-10-13). Ocupa dezanove folhas; a primeira página contém apenas o prefácio de A. HONCALA, e a última página está em branco. Encontra-se junta com outras obras na Micelania Valasci (R.-10- 13).

A obra termina com o seguinte colofon:

Dixi to theo doxa amen. Impressum Salmanticae Idibus luniis anno a genesi liberatoris nostri & salutiferi lesu. MDXI. Arius ipse negat alienam se prestare culpam.

Epometria, seu de metiendi éarmina oratione. 1515.

Epigrammatum seu Operum ejus Poeticarum. 1516.

Aratoris Cardinalis Historia Apostolica cum Cõmentariis Arii Barbosae Lusitani. 1516.

De prosodia, scilicet, Relectio, seu de re Poetica, ac recta scribendi ratione. 1517.

De Orthographia. 1517.

Epigramma in laudem Petri Margalli. 1520.

Epistola latina, Arius Barbosa Lusitanus, Margallo Theoloho Doctori. 1520.

Ad juvenes studiosos bonarum artium Carmen. 1520.

Estes três últimos opúsculos foram publicados em Salamanca, em 1520, no Compêndio de Física (Phisices Compendium) do Doutor PEDRO MARGALHO, notável professor português de Filosofia Moral na Universidade de Salamanca.

Eles foram transcritos por FRANCISCO LEITÃO FERREIRA na sua obra Noticias Chronologicas da Universidade de / 53 / Coimbra, por serem já então raríssimos estes Compêndios de Física.

Quodlibeticas quaestiones.

Arii Baruosae Lusitani Antimoria. Eiusdem nonnula Epigrammata. 1536.

O local e a data da impressão desta obra são nesta mencionados nos seguintes termos:

Conimbriae Apud Coenobium diuae Crucis. M.C.XXXVI.

Juntamente com ela publicou AIRES BARBOSA cerca de cinquenta epigramas seus.

Desta obra existem em Portugal três exemplares: um na Biblioteca da Universidade de Coimbra (R.-3-I9), outro na Biblioteca Nacional de Lisboa, e outro na colecção que pertenceu ao rei D. Manuel lI, incorporada actualmente no Museu Biblioteca de Vila Viçosa.

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Muitos escritores e autores de renome exaltaram AIRES BARBOSA.

DIOGO BARBOSA MACHADO, abade de Sever, na sua obra Bibliotheca Lusitana dá-nos notícia das opiniões de muitos homens ilustres. Dela vamos transcrever algumas.

O grande humanista espanhol ANTÓNIO DE NEBRIJA, nos seus Quinquanar ad Franc. Ximenes, diz:

«Graeca lingua excitata est, atque jam pridem per Hispaniam divulgata ab Ario Lusitano Viro Graece, et Latine perquam erudito.»


O Doutor MARTIM DE FIGUEIREDO, na dedicatória a D. João III do seu já citado Comentário ao prólogo das Histórias Naturais de PLÍNIO, diz:

«A Salmantica totius Hispaniae celeberrimo Gymnasio venire feciste doctissimum, ac praestantissimo Arium Barbosam magnis praemis, ac pollicitationibus post concessam studiis quietam.»

ANDRÉ DE RESENDE, na Epistola ad Quevedo Toletano, diz:

«Arius Lusitanus quadraginta, et eo plus annos Salmanticae tum Latinas Litteras, Graecas magna cum laude professus est.» / 54 /

E no seu Encomium Erasmi:

Hispanique sacer meritis honor orbis Arius.
Magnis cui debet quantum nunc Pallados illic
Cultior usus habet, docuit fiam primus Iberos
Hippocrenaeo Grajas componere voces
Ore; etenim quid quid frugis nunc !tala regna,
Graecia quondam habuit, quid quid patriae que; suis que
Importavit & a Galli stribligine tandem
Asseruit, fierique dedit sermone Quiritas.

(in Bibliotheca Hisp. Nova. tomo I, pág.171).


LOURENÇO CRASSO (Hist. di Poet. Grec.) diz:

«Homo di moIta doctrina, e di molta lingue intendente, e poeta insigne. Costui fui il primo che porto de Lettre Greche in Spagna: visse en compagnia di Antonio Nebricense ma com maggior fama del ditto Nebricense delIa lengue Greca, e Poesia.»

 

DIOGO BARBOSA MACHADO faz-lhe o seguinte comentário, na Bibliotheca Lusitana:

«Jazia nestes tempos em Espanha muda a eloquencia; estavão separadas do comercio dos Sabios as Musas, e se tinha introduzido uma tal ignorancia das linguas, e letras humanas, que somente dominava a barbaridade, contra a qual se armou Ayres Barbosa como outro Hercules degolIando a Hydra mais perniciosa, que a de Lema, com as doutas instrucçoens do seu Magisterio exercitado pelo largo espaço de vinte anos com singular credito do seu talento e não pequena gloria, e fruto dos seus discipulos.»

Por interessar ao presente estudo, transcrevo aqui parte de um comentário anónimo dirigido a BARBOSA MACHADO, intitulado Reflexão relativa a Ayres Barbosa, constante de um manuscrito existente na Biblioteca Pública de Évora (cód. referido Cx / I - 6):

«Diz o Ab.e de Sever, q. o epigrama em q se dá not.ª dos Pais, e Ascd.tes de Ayres Barb.ª está no fim da sua Prosodia; e depois não se lembra de por esta obra no Catálogo dos Escritos deste Sábio apontando só a obra = De Orthographia = q. foi posterior á Prosodia, ainda q. impressa no m.º ano, e na m.ª Cid.e

Falta lambem á Bibl. Luz. — a obra = Relectio de verbis obliquis = q. anda junta com = De Prosodia = De Orthogr. = e Epometria.

Estes escriptos merecerão a Ayres B. os elogios e os dos sábios Estrangr.os e Nacionaes pela sua rarid.e e beleza: acha se nelles hũ belo latim com os preceitos mais seg.os, da / 55 / gramatica lat.ª estão semeados de varias autorid.es gregas, ainda q. em caract.es latinos, pelos não haver em Salamanca, como diz o m.º A.

Pode notar-se-Ihe a languidez dos seus versos, e o uzo afectado talvez de palavras exoticas: são defeitos talvez leves, e desculpaveis em tp.os barbaros: teve a gloria porem de ser dos primr.os q. em Port.al, e talvez em Espanha começou a abrir os olhos, e a restabelecer as belas Letras.

Dos opusculos q. tenho visto (q. são poucos) só o de = Relectio de verbis obliquis = não he em verso: os outros dão os preceitos da Gramt. em verso. e explicão depois difuzam.te em prosa os m.os preceitos. Quem sabe se o P.e M.el Alv.s se serviria delle e delles?»

Vivia AIRES BARBOSA, o mestre grego, em Esgueira, na rua da Corredoura, com seus filhos Fernão Barbosa e D. Margarida Barbosa; sua filha D. Catarina estava freira no convento do Santo Espírito. Entretanto mandou construir nesta vila uma capela, sob a invocação de Nossa Senhora do Desterro, no adro da igreja de Santo André, contíguo ao passal, ambos sobranceiros ao ribeiro. Esta capela tinha por fim guardar os seus restos mortais e perpetuar o seu nome. Há já muitos anos que esta capela, o adro e o passal deixaram de existir, mas perduram estas duas últimas designações, e ainda existe a Viela do Adro.

A igreja paroquial de então devia ter estado neste velho adro, que servia de cemitério, pois que nele se encontram ainda hoje ossadas humanas e moedas antigas como eu próprio verifiquei.

No princípio do ano de 1540, AIRES BARBOSA, já velho, adoeceu gravemente, e previu que o fim da sua vida estava próximo. Chamou por isso o tabelião público judicial de Esgueira, João Cerveira, e ditou-lhe o seu último testamento, no dia cinco de Janeiro daquele ano.

Dispôs dos seus bens, e vinculou a terça parte deles à sua capela de Nossa Senhora do Desterro; determinou que queria ser sepultado dentro dela e que sobre a sua sepultura fosse colocada uma lápide com a seguinte inscrição:

Aqui jaz o corpo do mestre Aires Barbosa.

Determinou também que por sua morte seria administradora da capela sua filha D. Margarida e nunca seu filho Fernando Barbosa «por ser muito mancebo em seu viver». Impôs finalmente a condição de os futuros administradores da dita capela usarem o apelido Barbosa para memória do seu instituidor. / 56 /


No dia seguinte, seis de Janeiro, pelo referido tabelião e na presença de testemunhas, foi aprovado o testamento.

No dia 19 do mesmo mês e ano mandou AIRES BARBOSA fazer um «instrumento de declaração» ao seu testamento, no qual indicou os bens que vinculava à capela e regulou a sucessão na administração desta.

Estiveram presentes como testemunhas, Simão Tavares, fidalgo da casa deI-Rei, e Tomás Ferreira, cavaleiro, ambos moradores na vila de Aveiro; além destes, Gonçalo Coelho, Tristão Pinto, Cristóvão Pacheco, Alfredo de Oliveira, Simão Varela e Fernão de Figueiredo, escudeiros fidalgos, moradores em Esgueira.

AIRES BARBOSA, mestre do senhor infante cardeal, como se intitulou no seu testamento, tinha os seus dias contados.

Com efeito, no dia seguinte, 20 de Janeiro de 1540, dia de S. Sebastião, falecia nas suas pousadas de Esgueira, como expressamente o diz o termo de abertura do seu testamento, termo feito neste mesmo dia.

Conforme tinha determinado, o seu corpo foi sepultado na capela que instituíra, e na campa foi lavrada a seguinte inscrição:

Aquy ias o Corpo de Ayres Barbosa mestre Grego
Era de 1540


A capela de AIRES BARBOSA já não existe há muitos anos e nem dela resta já a menor tradição popular:

Na informação Paroquial de Santo André de Esgueira, do ano 1721, lê-se a seguinte referência a ela:

«E fora da Igreja ha hũa Ermida do Diuino Spiritu S.to que he do pouo − Mais outra da Sñra do desterro Capella de que he Instetuidor Ayres Barboza mestre grego; e de prezente he administrador Manuel de Almeida Leitão, do Tojal.»

E noutro passo da dita informação lê-se:

«Mais na Capella de nossa Senhora do desterro fora da Igreja está huma Sepultura Cujo Letereiro diz − Aquy iás o Corpo de Ayres Barboza mestre Grego. Era de mil e quinhentos e quarenta − E outra que dis − Aqui iás Domna Margarida = E outra junto a mesma Capella que se não diuidem as Letras por serem iá gastas» (5).

A capela existia ainda no ano de 1749, pois neste ano tomou posse dela D. Josefa Caetana Barbosa de Melo e Figueiredo, da vila de Alverca. / 57 /

É de crer que ainda existisse em 1821, pois que em 10 de Abril deste ano foi tirada uma pública forma, que possuo, de dois documentos referentes à capela, um do ano de 1697 e outro do ano de 1749, a qual deve ter servido para efeitos de venda ou herança da referida capela e seu vínculo.

O documento de 1697 contém uma petição de Gomes de Figueiredo Barbosa, morador na vila de Alverca, e administrador da capela de Aires Barbosa, para que lhe seja passada uma certidão das propriedades pertencentes à dita capela, situadas na vila de Esgueira e sua comarca, devendo a certidão ser tirada do próprio tombo da capela que para isso apresentava a António Queimado de Brito, escrivão público judicial e de notas da vila de Alverca. O documento contém ainda a certidão pedida.

O documento de 1749 é o instrumento de justificação de posse da referida capela e respectivos bens tomada nos dias 13 e 14 de Junho deste ano por D. Josefa Caetana Barbosa de Melo e Figueiredo, da vila de Alverca, como herdeira de sua tia D. Isabel Teresa Barbosa de Melo e Figueiredo, viúva de Manuel de Almeida Leitão Pereira, morgado do Tojal (comarca de Viseu).

 

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FRANCISCO FERREIRA NEVES

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(1) Ped. Lusit., tomo I, vol. II, págs. 351 e 353, Porto, 1943..

(2)Esta carta foi reproduzi da pelo Ex.mo Sr. Doutor ROCHA BRITO no Arquivo do Distrito de Aveiro, vol. XII, pág. 281. 

(3) − O cardeal infante D. Afonso nasceu em 23 de Abril de 1509 e faleceu em 7 de Janeiro de 1564. Foi nomeado cardeal pelo papa Leão X em 1516.

(4)Dizem os autores que AIRES BARBOSA foi também professor do infante D. Henrique, mais tarde cardeal e rei, nascido em 3! de Janeiro de 1512; e irmão do referido cardeal infante D. Afonso..

(5)Veja-se Arq. do Dist. de Aveiro, voI. VIII, págs. 192 e 195.  

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