COM
a ocupação da cidade do Porto pelo exército de Soult em 29 de Março de
1809 e as escassas defesas que havia no país, em especial do Mondego
para cima, o rio Vouga voltou a ter, de momento, uma importância
capital.
Como na parte inferior do
curso corta as comunicações entre o Porto e Coimbra sensivelmente a meia
distância; e tem na sua foz um estuário que se prestava a desembarques,
o Vouga era excelente base para operações que, dada a curvatura desde o
Caima a Cacia, proporcionava uma útil convergência de esforços para
ofensiva(1).
Assim, das primeiras medidas
saídas do tumulto consequente à má notícia da chegada do exército
francês ao Porto e ao conhecimento de que, no dia seguinte, a cavalaria
lançara as suas avançadas até Oliveira de Azeméis e a infantaria ocupava
a Feira e Ovar, veio a decisão de mandar o coronel inglês Trant para o
norte com as tropas que em Coimbra reunira no intuito de obstar, tanto
quanto possível, ao progresso da invasão.
Nos primeiros dias de Abril
começou esse avanço cauteloso;
e em 11, na gândara da Mourisca, verificou-se que as
forças às ordens do diligente oficial inglês orçavam por 4:500 e tantos
homens em que só cerca de mil eram de tropas regulares(2).
Foram ocupadas as posições convenientes na margem esquerda do Vouga e
exploradas, com a devida
/ 204 /
urgência, as estradas para o norte − em cujo trabalho
muito se distinguiu o Batalhão Académico de Coimbra(3);
e assim durante um mês se manteve em respeito o avanço de Soult não se
sabe se por inércia deste se por motivos de ordem militar e política.
Isto é conhecido geralmente
e não repetirei o que é de fácil consulta.
Como quer, porém, que
remexendo há tempos na documentação do Arquivo Histórico Militar, onde
há sempre novidades, encontrasse notícia de pormenores que julgo pouco
conhecidos ou, quem sabe, inéditos, pensei em os apresentar,
simplesmente, como quem acarreta material ligeiro e mais ou menos usado.
Na verdade, serão bagatelas
que pouco tiram e pouco põem à história das lutas contra os incómodos
invasores; mas podem, ao menos, dar algum interesse local e, quem sabe,
qualquer achega para o estudo dos nossos serviços hospitalares de
campanha.
«Maxima de nihilo nascitur
historia...» disse Propércio, se me não engano.
*
*
*
Quando Trant teve a sua
gente em Águeda e região, nos começos de Abril, prevendo grande número
de doentes que cresceria com a acumulação de tropas, resolveu criar,
naquela vila, um hospital ou, se fosse necessário, dois. E como na
reduzida Divisão havia um professor universitário, doutor em medicina,
mandou-o chamar e confiou-lhe o encargo.
Era este professor o Dr.
Francisco José de Sousa Loureiro que, havia cerca de 15 anos, regia
cadeira na Faculdade onde era 5.º lente de medicina e havia onze anos
praticava nos hospitais conimbricenses. No momento era
major do Corpo Militar Académico que, com tanto entusiasmo, se formara
na cidade universitária(4).
Nascera em Coimbra em 1772.
Cursou a Faculdade de medicina em que se graduou no ano de 1795, com 23
anos incompletos, e logo começou «a reger uma das
cadeiras de prática como substituto extraordinário»(5).
Ocupou sucessivamente
/ 205 /
outros lugares na Faculdade até que chegou este ano de 1809 em que foi
desviado do serviço docente na cadeira de matéria médica, para outro em
que o seu saber e a sua actividade iam ser, mais ou menos, postos à
prova, como veremos.
Alistou-se, então, no Corpo
Académico e
apresentou-se com farda e espada e um cavalo que
sustentou; concorreu para as despesas da sua companhia e não se recusou
a serviços de qualquer ordem
(6).
Era pessoa resoluta,
dedicada ao serviço de que se encarregava e capaz de arcar com
responsabilidades − o que nem sempre acontece
(7).
Ora o caso da instalação do
hospital militar em Águeda é o próprio professor que no-lo conta em
documento que julgo inédito até prova em contrário.
Trata-se dum ofício que, em
8 de Maio, dirigiu ao ministro D. Miguel Pereira Forjaz e que transcrevo
por ser elucidativo e ser curioso para
avaliação das dificuldades da época e dos hábitos
oficiais que parece não terem mudado muito
(8).
«ll.mo e Ex.mo Snr.
O Coronel Trant
apresentou-se neste ponto de Águeda e Vouga, nos princípios de Abril,
com uma pequena divisão de tropas de que fazia parte o Corpo Académico
em que eu então servia como capitão e hoje como major.
O Coronel Trant vendo que
nas suas tropas havia muitos doentes; que o número destes cresceria à
medida que crescesse a tropa e durasse a campanha, quis que houvesse um
hospital para os enfermos. E sabendo que eu era um dos lentes e
professores de Medicina na Universidade e tinha onze anos de uso de
hospitais, me encarregou do estabelecimento e inspecção de um hospital
militar em Águeda, e dos mais que viessem a ser
/ 206 /
precisos nas tropas ou exército do seu comando que então tomava o nome
de Exército ou Divisão de Entre-Douro e Mondego.
Deu-se-me uma carta que me
autorizava, datada do dia 17 de Abril e deram-se-me as ordens que
pareceram necessárias.»
A carta a que o professor se
refere é a seguinte:
«Nicolau Trant Governador de
Coimbra e Comandante da Divisão Entre Douro e Mondego.
«Para que aos doentes da
Divisão do meu comando não faltem os auxílios que podem ser aplicados
para o restabelecimento dos mesmos, entre as providencias que esteve em
meu poder o dar, nomeio ao Doutor Francisco de Sousa Loureiro lente da
Universidade de Coimbra, e Major do Corpo Militar Académico para que
tome a seu cargo a inspecção do Hospital e enfermarias, e confio do seu
zelo e experiência que ele me fará saber tudo o que se puder fazer e
couber nas presentes circunstâncias para arranjo dos mesmos doentes.
Quartel General de Águeda em
17 de Abril de 1809
(a) N. Trant.»
Esta carta, anexa ao ofício do Dr. Loureiro conserva ainda, embora
ligeiramente estragado, o selo de lacre vermelho.
Estava, pois, o professor
Sousa Loureiro nomeado director dos hospitais, deixando, por esse facto,
o cargo de major do Corpo Académico; e como, decerto, traçou o seu
plano, expô-lo ao comandante inglês e enumerar-lhe-ia as dificuldades
que tinha e o que necessitava para levar a bom termo a sua missão.
Continua ele:
«Representei as necessidades
e as faltas. Mas este Comandante, julgando que tudo estaria dantes
providenciado, e que eu, por mim mesmo e pela sua nomeação, poderia
remover todos os embaraços e aprontar todo o necessário, disse-me que
fizesse eu o que me parecesse, contanto que o fizesse bem e logo.»
Trant, como se vê, era mais
militar do que higienista; e empregou uma fórmula excelente, na
aparência lisonjeira, de que muitos chefes se servem para alijarem
responsabilidades, embora possa ser, neste caso, a maneira de dar
completa liberdade ao organizador.
/ 207 /
Mas o Dr. Loureiro não se
satisfez com esta espécie de carta branca:
«Repliquei sobre meios e
recursos; mas como o Quartel General e o Estado Maior se não podiam
achar completamente organizados, e haver o necessário expediente para
tudo; como o embaraço e os cuidados deste Exército na sua perigosa e
arriscada situação começaram a aumentar-se, e todos os comandantes e
empregados a não terem um só momento de descanso, tornou-se-me quase
impossível o comunicar-me com o Coronel Trant.
Comecei com tudo a
trabalhar, como logo direi a V. Ex.ª e julguei que devia dirigir-me ao
Físico-Mor do Exército para me dar os meios e as providencias; e para me
apontar recursos ou para me autorizar a lançar mão deles.
Não recebi, até agora,
resposta alguma a três oficios que lhe fiz; devendo-se-me enviar ao
menos, pelo Regulamento, um Almoxarife ou um delegado do Contador
Fiscal, para me fazer aprontar logo os objectos de primeira e maior
necessidade, e depois cuidar no resto.»
Vê-se que a máquina não
trabalhava bem; os comandos militares ainda não tinham consistência; as
hesitações eram constantes e o Físico-mor, como alto burocrata, fez
ouvidos de mercador. O Dr. Loureiro, porém, não se deixou desanimar:
«Nestas circunstâncias,
vendo que tinha tudo a ordenar e estabelecer logo um Hospital, e a
cuidar de um grande número de doentes, sem casa, sem roupas, sem camas,
sem louças, sem lenhas, sem coisa alguma e sem haver um só Ministro na
terra e na Comarca; tomei a resolução de por mim mesmo, sozinho e em
poucos dias, fazer aprontar e arranjar tudo o necessário. Dirigi-me ao
Provedor de um Hospício que aqui havia, destinado a recolher os
passageiros; dirigi-me aos párocos e aos juízes dos lugares
circunvizinhos e a algumas pessoas mais que me facilitaram alguns
socorros. Em quatro ou cinco dias aprontei as casas, por ora
suficientes, aprontei camas, roupa, louça, lenha, botica e alguns
provimentos mais em que me foi também preciso despender todo o dinheiro
que tinha e que trazia.»
O Hospício a que se referia
deveria ser o hospital da
Misericórdia que julgo «o único estabelecimento de
caridade»
/ 208 /
que existia então em Águeda(9).
Este hospital sob a invocação da S.ª da Boa Morte era antigo na vila;
nos meados do século XVIII
o Provedor dizia que fora instituído «para albergaria
dos pobres passageiros»(10)
e modernamente está anexo à Misericórdia, que é de mais recente
fundação.
Era, decerto, a esta
instituição beneficente que o Dr. Loureiro se dirigiu com a melhor e
mais decidida das boas intenções.
Os recursos, porém, eram
poucos(11)
e a concentração de tropas agravava a já de si má situação sanitária.
«Porém, estes meios e estes
recursos (continua o Dr. Loureiro) pela sua própria natureza, acham-se
esgotados: estes lugares são pobríssimos; e mesmo aos sãos custa a
chegar o cómodo e o alimento. A chegada de muitas outras tropas vai a
tornar o sítio mais escasso. Eu não tenho já meios para entreter o
arranjo e a sustentação da casa: é preciso que V.ª Ex.ª, sem dilacção
alguma, determine os meios para eu poder mantê-la ou me autorize para eu
poder tomar recursos e expediente.»
À falta de recursos
materiais juntava-se o problema do dinheiro; havia quem o reclamasse
pelo seu trabalho e o professor Loureiro parece embaraçado mais com isto
do que com as dificuldades de outra ordem. Continua:
«Ou V.ª Ex.ª me faça enviar
logo pelo Físico-Mor do Exército um Almoxarife encarregado de prover aos
objectos de indispensável necessidade; ou V.ª Ex.ª expeça à Tesouraria
Geral das Tropas uma ordem para se me aprontarem os meios necessários;
ou V.ª Ex.ª me autorize para eu poder abonar despesas ou para que a
Tesouraria me abone a mim as despesas de que eu der conta. Num
estabelecimento destes há cirurgiões, ajudantes, enfermeiros, serventes,
e todos estes empregados tem certos emolumentos sem os quais não servem
e os quais eles não podem vencer ou receber sem que V.ª Ex.ª mande
expressamente que se contem na Tesouraria ou na Administração Geral dos
Hospitais, pelos Almoxarifes e pelo Contador Fiscal. Porém queira V.ª
Ex.ª prover já as coisas de primeira necessidade, que as outras se
ordenarão com mais sossego.»
/ 209 /
Depois vem novo problema: a
possibilidade da marcha do exército para norte e a consequente mudança
dos serviços hospitalares com novas exigências de despesas ---:- às
quais O Dr. Sousa Loureiro se propõe sacrificar com patriotismo:
«Há outro ponto relativo ao
mesmo objecto que é o da mudança de posição que pode tomar brevemente
esta Divisão. Será necessário ir assentar em outra parte este mesmo
arranjo. Para isto também preciso ser por V.ª Ex.ª autorizado. A este
novo posto me é necessário ir fazer novas despesas. Quem me há-de prover
a elas?
Eu não tenho dúvida alguma
em continuar a fazê-las à minha custa; mas então queira V.ª Ex.ª
permitir-me que eu chegue a minha casa, que eu de boa vontade irei
empenhar ou vender alguma coisa que me reste e virei gostoso despender
tudo no serviço do Príncipe Regente.
«Eu não quero poupar-me a
trabalho, ou a incómodo: por isso me sacrifiquei com o Corpo Académico
que primeiro se aprontou e marchou de Coimbra no dia 30 de Março. Também
nesta repartição em que me pôs o Coronel Trant, não quero negar-me a
trabalho, antes quero que V.ª Ex.ª me confirme a nomeação que ele me fez
de Físico ou Primeiro Médico deste Exército e Inspector dos Hospitais
Militares de Entre-Douro e Mondego, as quais coisas não vêm bem
especificadas na nomeação que remeto a V.ª Ex.ª e a qual mesmo me não
parece ser suficiente e julgo necessária a de V.ª Ex.ª ou a do Ex.mo
Marechal General.»
É interessante notar esta
atitude do professor universitário. Boa vontade, sem dúvida; mas não
parece haver, também, certa dose de ingenuidade? Apesar dos desenganos
que já tinha não contaria com outros? Estava convencido de que, se
empenhasse ou vendesse qualquer dos seus bens pessoais, o indemnizariam
depois no final da campanha? Parece boa fé demasiada que, aliás, só pode
reverter em seu louvor.
Termina, finalmente, o longo
ofício com mais um apelo curioso:
«E pelo meu sacrifício, pela
minha nomeação, anterior a toda e qualquer outra nestas Províncias e
neste Exército, e pela minha graduação académica, superior à de outro
qualquer depois do Físico-mor, eu me animava a pedir a V.ª Ex.ª ser
confirmado e continuado nela, ficando à minha inspecção os Hospitais
Militares e a saúde dos Exércitos da Província da Beira ou de
Entre-Douro
/ 210 /
e Mondego. E mais me anima ainda a fazer a V.ª Ex.ª esta rogativa o ter
eu conhecimento local das principais terras e lugares desta Província,
dos rios, montes, campos, que se acharem nela e poder assim escolher e
apropriar com mais vantagens os terrenos ou as posições aos Hospitais.
Deus guarde a V.ª Ex.ª
muitos anos. Quartel General de Águeda: 8 de Maio de 1809.
«Il.mo e Ex.mo
Sr. D. Miguel Pereira Forjaz.
(a) Francisco de Sousa Loureiro.»
Vê-se, pelo ofício
transcrito e descontando o que possa haver de pessoal, que o Dr. Sousa
Loureiro não era homem para se atrapalhar com embaraços; a sua acção
neste curto período, bastante crítico, foi correcta e oportuna e foi
além daquilo que é hábito observar-se em casos semelhantes.
Honra lhe seja. O pior é que
superiormente parece que os seus serviços não foram devidamente
considerados.
O Hospital funcionaria
melhor ou pior. Não encontrei elementos para avaliar a sua eficácia nem
mesmo o seu normal funcionamento. No meio da barafunda, ninguém se
lembrou de fixar quaisquer elementos para a história; parece, contudo,
que cumpriu conforme foi possível a sua obrigação beneficente durante o
pouco tempo que as tropas estiveram na região, pois as referências
posteriores deixadas em outros documentos pelo Dr. Loureiro assim o dão
a entender.
A 12 de Maio, o exército
aliado, já debaixo do comando de Sir Artur Wellesley e depois dum avanço
firme embora cauteloso, entrou no Porto quase por surpresa e obrigou
Soult a fazer uma retirada apressada e, de começo, pouco organizada.
Com este avanço veio a
necessidade de transferir mais para o norte os hospitais; e de novo o
Dr. Loureiro se viu a braços com sérias dificuldades. Logo no dia
imediato à entrada no Porto, expôs ao ministro Pereira Forjaz os seus
trabalhos e insistiu pelos recursos que julgava necessários em ofício
que não deixa de ser curioso transcrever. É também elucidativo das
dificuldades encontradas e de alguma indiferença das estações
superiores perante os serviços hospitalares possivelmente considerados
de menor importância(12).
/ 211 /
«Depois que no dia 8 pus na
presença de V.ª Ex.ª os meus desejos e os meus trabalhos na importante
comissão de que estou encarregado, juntou-se o exército em Águeda nos
dias 9 e 10, partiu no dia 11 e entrou no Porto a 12.
Seguindo as ordens do
Coronel Trant e segundo o que determina o regulamento, fiz marchar com o
exército um hospital ambulante, botica, cirurgiões e instrumentos que
fiz situar em Grijó e que hoje cuido em fazer transportar ao Porto; e
mudei o hospital fixo ou permanente para Ovar, cinco léguas adiante de
Águeda. Como o exército inglês tinha ocupado todos os transportes, achei
muitos embaraços; mas à força de diligência e com algumas despesas pude
efectuar toda esta obra nos dois trabalhosos dias de 11 e 12.
Torno a repetir a V.ª Ex.ª
as dificuldades e embaraços em que me vejo, a falta de meios e
providências e torno a requerer a V.ª Ex.ª queira prover neste caso como
lhe parecer mais acertado. Nas Divisões que ficam próximas às do coronel
Trant não sei que haja inspector ou físico português: por isso torno
também a lembrar a V.ª Ex.ª os meus requerimentos e a minha vontade de
servir a S. A. R. nesta repartição, mas querendo V.ª Ex.ª dar as ordens
e as providências.
Deus Guarde a V.ª Ex.ª
muitos anos. Quartel General do Porto: 13 de Maio de 1809.
«Il.mo e Ex.mo Sr. D. Miguel
Pereira Forjaz.
O Físico do exército de
Entre-Douro e Mondego Inspector dos Hospitais.»
Este documento dá a impressão de que, a respeito dos serviços de saúde,
havia alguma coisa a desejar. E quanto à situação do Dr. Loureiro parece
que as suas palavras e os seus pedidos ficaram letra morta.
O tempo passou; e em Julho
quiseram nomeá-lo para médico do exército de observação na fronteira da
Beira − ao que ele opôs certas dúvidas e fez observações em novo ofício
de 18 daquele mês para o mesmo ministro D. Miguel Pereira Forjaz, do
qual destaco estes passos:
«... Eu sou lente da
Universidade há nove anos: tenho além disso os serviços desta campanha
como major do Corpo Académico; e fundei e sustentei um mês o Hospital
militar de Águeda.
«S. A. R. tem já começado a
sustentar os estudantes: é provável que queira recompensar também os
lentes que os acompanharam [...] Eu sou major de um Corpo que tem
servido muito e muito bem: saí com ele de
/ 212 /
Coimbra, fiz todo o serviço em Águeda: entrei no Porto: &c. Os majores
dos Corpos de Milícias e Voluntários têm soldo: porque se me não
declarará a mim também o soldo? Creio que também é justo.
. . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . .
(a) Francisco de Sousa
Loureiro.»
(13)
Pobre Dr. Loureiro! No mesmo
dia, naturalmente depois de expedir o ofício supra, recebeu ordem para
seguir para Pinhel; e ainda nesse mesmo dia 18 de Julho escreveu novo
ofício para o mesmo destinatário, acusando a recepção da ordem,
observando que necessitava entregar os hospitais a seu cargo aos
sucessores antes de partir, e renovando o pedido de regularização das
contas antigas.
Transcrevo uns passos deste
segundo ofício(14):
«Tenho a receber as contas
dos hospitais de Águeda e de Ovar, cobrar as suas despesas que fiz como
já participei a V.ª Ex.ª e que ainda não recebi por embaraços na
Tesouraria e não posso partir sem isto.
Depois, é necessário que o
Governo tenha comigo alguma contemplação visto o sacrifício que vou
fazer e o género de serviço em que vou entrar. E se V.ª Ex.ª quer
absolutamente que eu parta, com sua nova ordem partirei, fazendo-me V.ª
Ex.ª a mercê de [...] mandar-me pagar as contas de Águeda e Ovar: e
declarar-me se com efeito V.ª Ex.ª aprova que o Governo tenha comigo
alguma contemplação e eu então direi a V.ª Ex.ª com todo o respeito qual
a pretendo e espero.»
Ficou, certamente, à espera
de resposta. Depreende-se que não havia organismo que superintendesse no
assunto pois ainda no Porto, em 30 de Julho, novamente oficia para o
ministro Pereira Forjaz, antes de partir em 1 de Agosto para Almeida, a
respeito das contas de Águeda e Ovar!
«...Eu deixo completas [diz
ele] e concluídas as contas de Águeda e Ovar [...] todas até ao fim de
Junho: e isto porque todos os interessados e empregados sabendo que eu
me retirava, pediram e requereram o que se lhes devia e havia duas
portarias anteriores do coronel Trant para eu assinar despesas e
arbitrar ordenados com o que
/ 213 /
[Vol. XIII - N.º 51 - 1947]
se conformavam algumas ordens e ofícios de V.ª Ex.ª e
do Físico-mor a mim e à Tesouraria.»(15)
Diz ainda que entrega tudo ao sucessor e que está convencido de que não
excedeu em nada o que lhe foi determinado em matéria de administração.
Apenso a este ofício há o
seguinte verbete:
«O D.or Fr.co
de Sousa Loureiro, que partiu do Porto p.ª Almeida no 1.º de Agosto, dá
parte com data de 30 de Julho do que praticou antes da sua partida. Se
errou sujeita-se em tudo às correcções e preceitos de S. Ex.ª /»
Como se liquidaram as contas dos hospitais de Águeda e Ovar não sei; não
encontrei mais documentação − o que não quer dizer que a não haja. Mas
quero crer que se não ligou grande importância aos ofícios do professor
Loureiro e que a barafunda da guerra não deixaria olhar a sério para
essas ninharias.
Em 1810, passado um ano,
ainda um outro ofício para D. Miguel Pereira Forjaz vem lembrar as
dívidas do Estado para com ele e o pouco caso que fizeram dos seus
serviços. Tem a data de 14 de Maio e foi datado de Coimbra quando já
liberto oficialmente do serviço militar desde 9 de Fevereiro anterior,
ao tempo em que estava na Figueira «ocupado em coisas
muito importantes pelo Físico-mor e pelo Ex.º Snr. Marechal Beresford»
(16).
Nesse ofício pede que lhe
paguem o que se lhe deve! E não só dos ordenados mas também das
«despesas de dinheiro e abonações minhas em Águeda, Ovar, no Porto...»
etc. etc. E terminava desta maneira:
«...Não peço recompensas,
nem obséquios da parte de S. A.: peço só aquilo que ele me prometeu e
que se me deve. Deus Guarde a V.ª Ex.ª muitos anos.
«Coimbra, 14 de Maio de
1810. De V.ª Ex.ª − o mais reverente, atento e humilde súbdito
(a) Francisco de Sousa
Loureiro.»
E aqui está como terminaram os entusiasmos e a dedicação do Dr. Loureiro
ao planear um hospital em Águeda capaz de socorrer os feridos e doentes,
ao abonar do seu
/ 214 /
bolso as primeiras despesas, ao querer vender propriedades para acudir
às necessidades dos serviços mais urgentes, etc. etc.
Decerto lhe custaria, como
homem bem intencionado, a escrever o final deste ofício. Mas a série de
desilusões recebidas obrigou-o a decidir-se:
− Não quero recompensas; só
quero que me paguem o que me devem!
E ter-lhe-iam pago?
Fica de pé este problema
que, como certas preocupações filosóficas de Fradique Mendes, «precisava
ser mais desembrulhado...»
II
Na manhã do dia 27 de
Setembro de 1810 caía, sobre a serra do Buçaco, um nevoeiro denso. Os
valeiros do nascente, em especial, estavam encobertos por completo; e a
vista do observador não conseguia descortinar o que os ouvidos lhe davam
a perceber.
Lá de baixo, chegavam ruídos
de vozes e do movimentar de viaturas, abafados decerto, mas trazidos em
confusão através da espessa neblina; pressentia-se movimentação de vulto
por todas aquelas encostas da frente e nos espíritos dos combatentes do
exército anglo-Iuso, prostrado ao longo da cumeada, surgiria a ansiedade
que o imprevisto sempre provoca, mormente na perspectiva de combate.
Nos dias anteriores, perante
a invasão do exército francês de Massena, o anglo-Iuso do comando de
Wellington retirara pela Beira sem grande pressão do adversário; esta
atitude do generalíssimo napoleónico não apertando a retirada, deu azo
ao comando britânico para poder manter certa coordenação de movimentos e
boa escolha de posições retardadoras de modo a evitar grandes reacções,
ou até recontros de êxito duvidoso, de harmonia com a sua compreensão ou
sistema de campanha. De lance em lance, o exército aliado veio até à
posição do Buçaco onde, em 25 do mesmo mês, ocupou linha extensa que ia
dos contrafortes do Salgueiral, ao norte, até aos cabeços sobranceiros
ao Mondego, no corte profundo de Entre-Penedos; e isto sem contar com as
forças de cavalaria de Cotton que, da Mealhada a Avelãs do Caminho
observavam as passagens da serra e cobriam, tanto quanto possível, a ala
esquerda do exército que ficara um pouco em falso.
Contra este conjunto
defensivo é que, a 26, o comando contrário lançou reconhecimentos em
especial ao longo dos dois eixos de marcha, ou sejam, as velhas estradas
que se dirigiam à serra: uma à portela de St.º António do Cântaro, outra
às alturas da mata dos carmelitas descalços.
/ 215 /
Assim se chegou à manhã
nevoenta de 27 de Setembro em que se iria ferir a batalha conhecida e
muito falada, ou talvez melhor, se iriam ferir as duas batalhas do
Buçaco − pois foram quase independentes as duas acções que Massena
lançou em horas diversas contra a posição defensiva de Wellington.
É sabida a linha geral desta
notável acção. Massena quis forçar a passagem para Coimbra que lhe
parecia tomada pelo adversário e não avaliou bem a força do exército com
que teria de se bater, assim como a importância topográfica da posição
que ia atacar; homens habituados a encontrar poucas resistências e a ver
sob o comando directo de Napoleão certas vitórias na aparência fáceis,
os generais franceses teriam em pouco preço a capacidade combativa do
exército inglês e muito menos ainda a do quase bisonho exército
português − de modo que depois de discussões que não provam muito a
unidade de comando nem o prestígio do chefe, o generalíssimo francês
ordenou o ataque à serra por dois pontos, os correspondentes às
passagens pelas quais se alcançava a grande estrada Porto-Lisboa.
Foi, como se sabe, bem
renhida a luta em qualquer dos sectores: os atacantes não eram homens
que se impressionassem com a imponência da encosta que teriam de vencer,
nem com a possibilidade de alguma resistência; e na defesa havia tropas
mais ou menos experimentadas em outras acções, com hábitos de disciplina
e carácter sereno que enquadravam outras inexperientes mas já preparadas
por instrução aturada e perfeitamente integradas nos deveres que a
situação melindrosa lhes impunha. O ímpeto do ataque levado com brio,
quer num quer noutro ponto, deu aparência de êxito; mas o embate dos
dois sistemas (o do ataque em coluna, dos franceses e o da defesa em
linha, de Wellington) veio dar a vitória ao comando que melhor soube
aproveitar as qualidades das suas tropas e dar a mais inteligente
adaptação ao terreno, isto é, veios vencer o general inglês que soube
opor ao entusiástico impulso, mas sem grande base, dos homens de Massena,
o cálculo frio dos fogos e o jogo certeiro das reservas.
Em St.º António do Cântaro,
Foy, à frente da sua impetuosa brigada, alcançou a crista da serra mas
ficou coacto perante a intervenção de oportunidade e eficácia notáveis
duma divisão inglesa.
Em frente da mata, na
direita, as brigadas de Ney lançadas com o vigor costumado tiveram sorte
idêntica perante contra-ataques feitos com precisão; e não houve, daí
por diante, possibilidade de tentar reconstituição das unidades para
novo ataque.
O prestígio da defesa
impôs-se com todo o seu valor moral. A batalha perdera-se para o
exército francês.
/ 216 /
Ora isto veio para aqui como
simples razão de ordem para contar com mais pormenores a parte desta
memorável batalha desenvolvida em terras do distrito de Aveiro.
Como se sabe, o concelho da
Mealhada abrange ainda grande área da serra do Buçaco − onde se unem os
distritos de Coimbra e de Viseu. E exactamente na parte correspondente à
freguesia de Luso se desenrolou um dos actos mais violentos do combate
da ala esquerda aliada para explicação e compreensão do qual posso aqui
dar notas inéditas que a boa sorte, em dia feliz, me deu a conhecer.
*
* *
A esquerda da posição era
ocupada pela Divisão ligeira de Crawfurd que dominava, com a brigada
portuguesa de Pack, a encosta a leste do muro da mata do mosteiro; esta
brigada ligava aquela divisão com a de Spencer (que formava o centro da
defensiva) e ficava fronteira à estrada de Mortágua que seguia
sensivelmente pelo traçado que hoje segue a estrada nacional. Havia duas
baterias de artilharia e o conjunto de todas estas forças orçava por
6.500 homens.
Foi contra este agrupamento,
colocado em terras do actual concelho da Mealhada, que o Corpo de
Exército de Ney se lançou ao ataque sem a coordenação recomendada pelo
comando já na altura em que Reynier se convencera de que lhe não era
possível forçar a passagem da portela do Cântaro; o ataque foi entregue
às divisões de Loison (pela direita; contra Crawfurd) e de Marchand
(pela esquerda, contra Pack).
Loison mandou a brigada de
Ferey; e Marchand mandou a de Maucune a um e outro
lado da estrada, ao assalto das posições aliadas(17).
Aquela brigada, apesar dos estragos que lhe causavam a artilharia de
Crawfurd e os tiros de parte de Caçadores 4, levou adiante de si as
forças aliadas, mas teve de recuar perante duas cargas, uma de dois
regimentos ingleses da Divisão Ligeira e depois outra do 1.º batalhão do
regimento português n.º 19, que a obrigaram a retirar para os lados de
Moura, ao abrigo da protecção de Mermet. A outra brigada, a de Maucune,
largou pela encosta do lado da povoação de Moura, um pouco mais tarde,
quando se pronunciava a retirada de Ferey; ia exposta ao fogo da
artilharia e ao de Caçadores 4 português, mas o ímpeto inicial
/ 217 /
foi de tal ordem que a escalada ia seguindo com certo êxito obrigando a
defesa a recuo, embora com ordem.
O momento, porém,
para o atacante foi, segundo uma testemunha, um dos
mais difíceis do dia
(18);
mas para a defesa esse momento também não foi dos mais fáceis. Os nossos
soldados de Caçadores 4, talvez no seu baptismo de fogo,
tiveram que ceder perante o avanço seguro e violento dos
franceses.
|
Buçaco: sector da brigada de Pack:: |
Diniz Pack, o comandante da brigada portuguesa
(19) responsável pelo sector para que se dirigia o ataque de Maucune, compreendeu a situação perigosa a que poderia levar o êxito da
investida. Era urgente não deixar consolidar esse
êxito, pois trazia consequências que se não poderiam prever.
Decerto saberia já do desastre de Reynier na direita; e via
/
218 / ali perto o mau resultado do ataque de Ferey; as vantagens
tácticas e sobretudo psicológicas poderiam perder-se com
rapidez, tanto mais que os franceses viriam excitados pelas notícias dos
outros sectores e ter-se-ia de contar com o seu valor e
hábitos de vencer em toda a parte.
Perante todos estes factos, o brigadeiro inglês mandou
chamar um major português de Infantaria n.º 1 e ordenou-lhe, com breves indicações, que «fosse imediatamente ganhar o
terreno que os piquetes tinham perdido e que, depois de
ganho o terreno, defendesse «aquela posição até à última...».
Isto é, o major português com um batalhão ou força equivalente, teria de
se haver com uma brigada que vinha triunfante, cheia de impulso combativo, e desejosa de se sobrepor
às outras que não conseguiram alcançar o seu destino; e teria
que se opor com tropas ainda mal afeitas à luta e influenciadas, decerto, pelo prestígio que rodeava os atacantes, a
essa gente desprezadora de perigos e habituada a encontrar poucas
resistências.
O problema para o major português era grave e complexo,
Felizmente (ou talvez propositadamente) esse major,
embora com dezanove anos, idade em que se começa a vida,
chamava-se João Carlos Saldanha de Oliveira Daun. Comandava um dos
batalhões de Infantaria n.º 1 onde assentara praça
e não deixara o regimento em toda a campanha deste ano de 1810;
tornara-se notado pelas qualidades militares reveladas, especialmente pela viveza de inteligência que lhe proporcionara
cultura apreciável, pela rapidez de observação e
facilidade de adaptação a toda a variabilidade de sucessos.
Os comandos ingleses distinguiram-no da maioria dos oficiais
portugueses que ficaram no país depois da sangria da Legião;
e com certeza esta nomeação feita pelo brigadeiro Pack viria mais dos
méritos reconhecidos (apesar da pouca idade) do
que do facto de Saldanha ser, nessa manhã, o oficial superior
de dia.
O certo é que o major João Carlos com os seus 19 anos
viu-se, num momento, perante responsabilidades que nem
todos assumiriam, entregue a si próprio, ao seu maior ou menor poder de
acção. Haveria, na encosta da serra, em frente, ainda restos de neblina
a que o fumo das descargas contínuas, de parte a parte, aumentaria a
espessura; o mato
alto que cobria a encosta ajudaria a esconder os movimentos
dos adversários que, por esse facto, poderiam dar impressão de maior
valor; e assim o problema aumentaria de gravidade
que não passaria despercebida ao moço Saldanha apesar da sua pouca
experiência.
Emocionado, certamente, mas dominando-se, o major
João Carlos dirigiu-se para os seus soldados com a decisão de que
sempre, depois, em longa carreira militar, não deixou
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219 /
de dar provas; esses soldados com que iria tentar uma aventura muito séria, deveriam ser os das companhias de granadeiros dos batalhões (gente antiga e por consequência mais
sólida) com os quais constituiria força mais capaz de acção
do que a formada pelo próprio batalhão ainda pouco experiente. O prestígio do moço oficial era grande e vinha já
desde 1808, desde o começo da resistência aos invasores; no
regimento, a sua vontade era aceite sem objecções − de modo
que as vozes dadas aos homens de Infantaria n.º 1 para avançar, com a viveza natural da idade e o entusiasmo de que se
sentiria possuído pela diligência que ia cumprir à vista de
tanto observador estrangeiro, fizeram com que o vigor do
avanço fosse levado a ponto de exceder o objectivo marcado de antemão:
«não só ganhámos o terreno perdido mas ainda
muito mais...». E tanto que o brigadeiro inglês teve que mandar recuar
um pouco a nova linha para (como hoje se
diz) rectificar a frente.
E Marchand, como os outros comandantes franceses, perdera também a partida.
João Carlos Saldanha, o futuro marechal vencedor de
Almoster, dera as primeiras provas sérias do que poderiam
ser capazes as suas reais qualidades militares que souberam assumir, com
prontidão e energia raras, responsabilidades graves em momento
melindroso. E contudo, as histórias não
falam desta intervenção de umas centenas de portugueses
que levavam à frente um major com 19 anos.
O que as histórias nos contam, firmadas nos relatórios
ingleses e pouquíssimos testemunhos nacionais é que à brigada de Pack coube a resistência ao
avanço de Maucune e que o fogo das unidades que a constituíam foi tal que o avanço se
tornou impossível. Os relatórios dos chefes britânicos eram
circunspectos, não entravam muito em pormenores, mormente se estes
punham em evidência os bons aliados lusitanos.
E assim este pequeno capítulo da história da batalha da serra do Buçaco
continuaria ignorado se não fosse o conhecimento feliz duma carta que
João Carlos Saldanha escreveu
a sua Mãe, D. Maria Amália de Carvalho Daun, no dia 28 de Setembro,
datada do «Campo do Buçaco», na qual fez
quase um relatório da parte que tomou na acção memorável
da véspera, com certeza ainda debaixo da comoção que lhe
causariam as peripécias mais ou menos vivas em que foi actor consciente
e decidido
(20). Por ela se reconstitui, com a maior
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220 /
facilidade, o que foi esse episódio perdido no conjunto da
batalha; mas neste lugar deverá ter certo interesse por dar
a conhecer que foi em terras do distrito aveirense que o ilustre militar, depois marechal Saldanha,
teve a sua primeira
acção de vulto, onde revelou as qualidades pessoais de comando resoluto
e oportuno
(21).
*
* *
A batalha perdeu-se para os franceses. Massena viu-se
na contingência grave de ceder terreno, o que seria pouco
próprio para generais napoleónicos, ou procurar nova solução para o problema que surgira com o desastre.
Essa solução foi-lhe dada, depois de vários e rápidos
reconhecimentos feitos pela Cavalaria, por Sainte-Croix,
general de brigada do 8.º corpo de Junot, que denunciou,
embora sem pormenores, a existência de passagem, algum
tanto difícil, pela direita, pela qual o exército francês se
escoaria na direcção de nordeste e, depois de contornar a
posição dos aliados, poderia surpreendê-los com vantagem
(22).
Em 28, Montbrun foi mandado, com a sua boa divisão de Cavalaria,
reconhecer a passagem conforme as indicações
de Sainte-Croix; e decerto esse reconhecimento, acompanhado de brigadas de sapadores para o que desse e viesse,
foi largo; deveria abranger toda a zona e ter explorado à
esquerda do eixo de marcha o valor da vigilância aliada, que, diga-se de
passagem, não teve peso no episódio.
Assim, chegados à portela de Boialvo de onde se avistam os vales do Cértima e do Agadão, cheios de verdura
fecunda, os franceses viram que, com facilidade, por caminhos mais suaves, largos e de piso arenoso, alcançariam as
baixas férteis por onde a estrada do Porto passava. Estava
resolvido o problema: o terreno era mau até à portela, mas
estava livre; a cavalaria britânica não seria obstáculo (como
realmente não foi) à passagem nocturna dos vencidos da véspera; e este abandono de vigilância e segurança por parte
dos aliados, deu azo a que a vitória alcançada com tanto
encarniçamento na serra, fosse anulada tão depressa.
Montbrun ocupou, pois, as saídas do caminho e Junot,
com o seu 8.º corpo, foi o que, de noite, iniciou a marcha e
/
221 /
que, na manhã de 29, acampou em Avelans de Cima (hoje concelho da
Anadia); foi marcha difícil que parece ter exasperado a soldadesca
habituada a trabalhos menos incómodos. A seguir foi Ney com o 6.º corpo
que levou os milhares de feridos da batalha, em dolorosa fiada de macas
improvisadas, em andilhas nas garupas dos cavalos, nas viaturas que
resistiram ao mau estado dos caminhos. E em último lugar, o 2.º corpo de Reynier que
foi obrigado a fazer a marcha já sobre a tarde, com mais
dificuldades ainda, forçado a remover viaturas escangalhadas e a
recolher feridos que os da frente, no afã da marcha, iam desumanamente
abandonando.
Em Boialvo, então, Massena ordenou a Ney que, com uma das suas divisões
ficasse constituindo a guarda da retaguarda; e reunindo em várias
povoações da zona de Avelãs ao Sardão (concelho de Águeda) todas as
divisões ao abrigo da cavalaria de Montbrun que repeliu para os lados de
Coimbra as brigadas da cavalaria inglesa, organizou a marcha contra sul
pela estrada Porto-Coimbra com a rapidez que as circunstâncias
consentiram.
Wellington, pressentindo a manobra, ordenou a imediata retirada. A
vitória do dia 27 para pouco servira e o exército francês recuperara,
até certo ponto, a liberdade de movimentos; e nesse pequeno período em
que, desde Boialvo às proximidades de Coimbra, as divisões de Massena se
espraiaram pelas vilas e aldeias − a destruição e todo o género de
malefícios foram constantes. A soldadesca e a própria oficialidade,
irritadas por tanta contrariedade, mostraram à larga os maus instintos e
praticaram toda a sorte de rigores que a benevolência de certos
apologistas da força desculpa com as necessidades militares.
Por toda a parte onde passaram os exércitos, deixaram
os tristes sinais do que vale esse tremendo fenómeno a que já se chamou,
no próprio meado do século XIX, espada de justiça divina ou escudo da
misericórdia de Deus
(23).
De todos esses males deixados pela campanha, ainda há alguns documentos
contemporâneos, cheios de vida, transparentes de certa comoção:
refiro-me às relações dos párocos das freguesias mandadas organizar
superiormente para avaliação dos prejuízos.
Relativas às freguesias do distrito aveirense, há pouco, muito pouco:
apenas uma da Vila Nova de Monsarros, do concelho da Anadia, e três do
concelho da Mealhada: Vacariça, Luso e Pampilhosa. Escritas quase a
seguir aos sucessos, algumas dessas relações de que há dezenas no
Arquivo
/
222 /
Universitário
(24) transmitem a dolorosa impressão dos terríveis dias com grande intensidade, e deixam transparecer bem
às claras o que foram esses momentos tristes.
Ficam agora arquivadas as quatro relações referidas
− documentos que não
tiram nem põem à história geral mas
que sem dúvida esclarecem passos da história local e alguns
até do próprio desenrolar da campanha com certos pormenores até agora desconhecidos ou porventura suspeitados.
Coimbra, Junho de 1947.
BELISÁRIO PIMENTA
DOCUMENTOS
«Relação das mortes, roubos, inçendios; e atrocidades cometidas pello
Exercito Frances comandado pelo Gn.al Maçena que contem
circunstançiadam.te todos os roubos e sacrilegios comettidos nos Templos,
cazas incendiadas; e os endividuos de hum e outro sexo assassinados com
suas respetivas id.es do Arçiprestado de Mortagoa.»
«FREGUEZIA DA VACARISSA
«Esta freguezia padeçeo m.to
com o Exerçito Ingles e Portugues no tempo que se esteve combatendo no Bussaco; e m.to mais depois que o Exercito Frances passou por ella principalmente os lugares inferiores desta
freg.ª que são Mialhada eos proximos a Elle.
«Pessoas mortas pellos Franu_es nesta fregue_ia:
«Matarão os Francezes nesta freg.ª seis pessoas a saber quatro homens e
duas mulheres, huma destas chamada Maria Du.te (?) da Vacarissa de id.e
de outenta annos foi assassinada com bastante atroçid.e rasgando lhe a
boca pelos lados, athe o pescoso ficando dependurado o queixo infrior
athe o peito. A outra m.er chamada Isabel Duarte edo lugar da Povoa da
Mialhada de ed.e de 85 annos e sega foi assassinada com
golpes de traçado. José Proa da Maia da, Mialhada foi morto a tiro de balla e lhe
cortarão as mãos de id.e 60 annos. Os mais acharãose mortos ecomo
passarão dias bastantes depois que os matarão não se sabe bem como foi a
morte delles; por estarem corrutos quando os acharão.
/
223 /
«Roubos
«Os lugares desta treg.ª que forão roubados inteiram.te de frutos são os
[fIs. I v.º] os da Mialhada, Sernadello, Povoa da Mialhada, Reconco e
Travassô, pode-se dizer que ahinda antes de virem os Françezes já os
frutos destes lugares estavão quaze consumidos pella Devizão de
Cavalaria Ingleza do Gen.al Spençer que esteve aquartelado na Mialhada
emquanto durou o combatte do Bussaco com os Francezes
(25) e depois
acabados de consumir alguns poucos restos que estavão pellos campos pello
Exerçito Frances
comandado pello Gn.al Maçena que esteve tres dias aquartelado neste
m.mo lugar da Mialhada ena Rezidençia de mim Arcipreste (em que tambem tinha
estado sobred.º Gn.al Ingles Spençer) tudo o que tinha ficado de frutos
e roupas nas cazas tudo se foi,
Sacrilegios
«Na Igreja não cometerão os Francezes cacrilegio algum; mas nos santos
do lugar da Mialhada degolaram a Snr.ª St.ª Anna, e despedaçarão St.ª Isabel.
Roubos sacrilegos
«Na Igreja a cassula de pratta (pessa bem esti[ma]vel pello bom gosto
comque estava travalhada) hum calix de prata; e mais nada. Nas
cappellas,
na de Mialhada de Snr.ª St.ª Anna roubaram duas alvas já uzadas des toalhas do altar e sinco amittos, e duas vestimentas uzadas destruirão
equeimarão o altar de todo as portas travessas do lado esquerdo e a
huma janella do coro o solho todo; eas gavettas do caixão etambem os
confesionarios
avalua se o perjuizo feito nesta capella em cento e vinte mil rs. Na
cappella de S. Sebastião do mesmo lugar furtarão duas alvas tres toalhas
do altar duas vestimentàs e tres amittos. Na cappella do lugar de
Travassô
toda a roupa branca e as vestimentas melhores tres. Na do lugar de Sernadello roubarão huã alva e hum amitto e alguma distruição no caixão, mas
pouca couza.
lncendios
Incendiarão no lugar da Mialhada huma caza; e no lugar de [fi. 2] de
Sernadello incendiarão tres moradas de cazas que ahinda não estavão bem
acabadas e quaze metade de outras ese avalua a perca destas tres moradas
em mais de hum conto de reis.
. . . .
. . . . . . . . .
. . . . . . . . .
. . . . . . . . .
. . . . . . . . .
. . . . .
[fIs. 12 v.º] «FREGUEZIA DA PAMPILHOZA
«Entrárão nesta freguezia por vezes os vinte ou trinta Francezes
arroubar ecom effeito roubarão tudo o que hera dinr.º, roupas
principalmente [fIs. 13] brancas.
Mortes «Matarão huma mulher ded.e de 50 annos.
/
224 /
Roubos
Roubarão como asima já disse alhuns dinr.os
fatos principalmente
roupas de linho, e tambem m.tas galinhas e carne de porco que acharão
por algumas cazas.
Sacrilegios
Na cappella deste lugar da Pampilhosa quebrarão a pedra d'ara.
Roubos sacrílegos
Na Igreja o areliquairo de pratta em que se levava o sagrado viatico
aos enfermos e na cappella o calix de pratta com sua patena e toda roupa
que havia na egreja e cappella, como se explica o Paroco que tudo
poderia valer setenta mil rs. a saber quarenta mil rs. a Egreja e trinta
a cappella.
FREGUEZIA DE VILLA N.A DE MONSARROS
Tam som.te dous lugares desta freguezia forão calcados pellos Francezes que são Monsarros e Grade.
Mortes
Matarão os Francezes no lugar da Grade hum homem de sincoenta
annos.
[fls. 13 v.º]
Roubos
Os moradores destes dous lugares forão roubados em duas cazas não
ficando absolutam.te couza alguma comestivel, e de roupa principalmente
de linho eque os moradores, os que fugirão, não levarão consigo.
Roubos sacrilegos
No lugar de Grade furtarão hum calix de pratta e as toalhas do
altar e
na cappella de Monsarros tão som.te do calix o copo q hera de prata
deixando o pé por ser de estanho, e tambem algumas toalhas.
FREGUEZIA DE LUSO
Esta freguezia não foi calcada pello Exercito Françes em razão de
estar defendiãa pella montanha do Bussaco ahonde estava o Exercito Angolo
Portugues a defender esta pasaje; mas retroçedendo o Exercito Françes
p.ª p.te do Norte e pella estrada de Boialvo sempre quando derão a volta
alguns Francezes couza de trinta entrarão nesta freguezia mas não
consta que
fizessem algum estrago se be[m] que se acharão os roubos e sacrilegios
seguintes
Sacrilegios
Na cappella da Snr.ª do Carmo do
lugar de Monte novo quebrarão a
pedra d'ara.
Roubos sacrílegos
Na capella de S. João da Fonte roubarão as alvas amittos e cordoens e
tambem as vestimentas. E na cappella de S. Sebastião do lugar de Barrô,
hũa alva e toalhas do altar, a bolça dos corporais, duas estollas, e
hum manipulo. E na cappella do Encarnadouro, do Bussaco desfizerão o
altar.
/
225 /
Não se duvidando que esta freguezia ficou estragada com
a estada do
Exercito Ingles e Portugues ahonde esteve sinco dias acampado emquanto
os Francezes não fugirão»
[fIs. 15]
Mappa das Pessoas assassinadas pelo Exercito Francês do
Arciprestado de Mortagua.
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