Belisário Pimenta, Invasões francesas no dist. de Aveiro, Vol. XIII, pp. 203-225

INVASÕES FRANCESAS

(MAIS NOTAS PARA A SUA HISTÓRIA NO DISTRITO DE AVEIRO)

COM a ocupação da cidade do Porto pelo exército de Soult em 29 de Março de 1809 e as escassas defesas que havia no país, em especial do Mondego para cima, o rio Vouga voltou a ter, de momento, uma importância capital.

Como na parte inferior do curso corta as comunicações entre o Porto e Coimbra sensivelmente a meia distância; e tem na sua foz um estuário que se prestava a desembarques, o Vouga era excelente base para operações que, dada a curvatura desde o Caima a Cacia, proporcionava uma útil convergência de esforços para ofensiva(1).

Assim, das primeiras medidas saídas do tumulto consequente à má notícia da chegada do exército francês ao Porto e ao conhecimento de que, no dia seguinte, a cavalaria lançara as suas avançadas até Oliveira de Azeméis e a infantaria ocupava a Feira e Ovar, veio a decisão de mandar o coronel inglês Trant para o norte com as tropas que em Coimbra reunira no intuito de obstar, tanto quanto possível, ao progresso da invasão.

Nos primeiros dias de Abril começou esse avanço cauteloso; e em 11, na gândara da Mourisca, verificou-se que as forças às ordens do diligente oficial inglês orçavam por 4:500 e tantos homens em que só cerca de mil eram de tropas regulares(2). Foram ocupadas as posições convenientes na margem esquerda do Vouga e exploradas, com a devida / 204 / urgência, as estradas para o norte − em cujo trabalho muito se distinguiu o Batalhão Académico de Coimbra(3); e assim durante um mês se manteve em respeito o avanço de Soult não se sabe se por inércia deste se por motivos de ordem militar e política.

Isto é conhecido geralmente e não repetirei o que é de fácil consulta.

Como quer, porém, que remexendo há tempos na documentação do Arquivo Histórico Militar, onde há sempre novidades, encontrasse notícia de pormenores que julgo pouco conhecidos ou, quem sabe, inéditos, pensei em os apresentar, simplesmente, como quem acarreta material ligeiro e mais ou menos usado.

Na verdade, serão bagatelas que pouco tiram e pouco põem à história das lutas contra os incómodos invasores; mas podem, ao menos, dar algum interesse local e, quem sabe, qualquer achega para o estudo dos nossos serviços hospitalares de campanha.

«Maxima de nihilo nascitur historia...» disse Propércio, se me não engano.

*

*      *

Quando Trant teve a sua gente em Águeda e região, nos começos de Abril, prevendo grande número de doentes que cresceria com a acumulação de tropas, resolveu criar, naquela vila, um hospital ou, se fosse necessário, dois. E como na reduzida Divisão havia um professor universitário, doutor em medicina, mandou-o chamar e confiou-lhe o encargo.

Era este professor o Dr. Francisco José de Sousa Loureiro que, havia cerca de 15 anos, regia cadeira na Faculdade onde era 5.º lente de medicina e havia onze anos praticava nos hospitais conimbricenses. No momento era major do Corpo Militar Académico que, com tanto entusiasmo, se formara na cidade universitária(4).

Nascera em Coimbra em 1772. Cursou a Faculdade de medicina em que se graduou no ano de 1795, com 23 anos incompletos, e logo começou «a reger uma das cadeiras de prática como substituto extraordinário»(5). Ocupou sucessivamente / 205 / outros lugares na Faculdade até que chegou este ano de 1809 em que foi desviado do serviço docente na cadeira de matéria médica, para outro em que o seu saber e a sua actividade iam ser, mais ou menos, postos à prova, como veremos.

Alistou-se, então, no Corpo Académico e apresentou-se com farda e espada e um cavalo que sustentou; concorreu para as despesas da sua companhia e não se recusou a serviços de qualquer ordem (6).

Era pessoa resoluta, dedicada ao serviço de que se encarregava e capaz de arcar com responsabilidades − o que nem sempre acontece (7).

Ora o caso da instalação do hospital militar em Águeda é o próprio professor que no-lo conta em documento que julgo inédito até prova em contrário.

Trata-se dum ofício que, em 8 de Maio, dirigiu ao ministro D. Miguel Pereira Forjaz e que transcrevo por ser elucidativo e ser curioso para avaliação das dificuldades da época e dos hábitos oficiais que parece não terem mudado muito (8).

       «ll.mo e Ex.mo Snr.

O Coronel Trant apresentou-se neste ponto de Águeda e Vouga, nos princípios de Abril, com uma pequena divisão de tropas de que fazia parte o Corpo Académico em que eu então servia como capitão e hoje como major.

O Coronel Trant vendo que nas suas tropas havia muitos doentes; que o número destes cresceria à medida que crescesse a tropa e durasse a campanha, quis que houvesse um hospital para os enfermos. E sabendo que eu era um dos lentes e professores de Medicina na Universidade e tinha onze anos de uso de hospitais, me encarregou do estabelecimento e inspecção de um hospital militar em Águeda, e dos mais que viessem a ser / 206 / precisos nas tropas ou exército do seu comando que então tomava o nome de Exército ou Divisão de Entre-Douro e Mondego.

Deu-se-me uma carta que me autorizava, datada do dia 17 de Abril e deram-se-me as ordens que pareceram necessárias.»

A carta a que o professor se refere é a seguinte:

«Nicolau Trant Governador de Coimbra e Comandante da Divisão Entre Douro e Mondego.

«Para que aos doentes da Divisão do meu comando não faltem os auxílios que podem ser aplicados para o restabelecimento dos mesmos, entre as providencias que esteve em meu poder o dar, nomeio ao Doutor Francisco de Sousa Loureiro lente da Universidade de Coimbra, e Major do Corpo Militar Académico para que tome a seu cargo a inspecção do Hospital e enfermarias, e confio do seu zelo e experiência que ele me fará saber tudo o que se puder fazer e couber nas presentes circunstâncias para arranjo dos mesmos doentes.

Quartel General de Águeda em 17 de Abril de 1809

(a) N. Trant.»


Esta carta, anexa ao ofício do Dr. Loureiro conserva ainda, embora ligeiramente estragado, o selo de lacre vermelho.

Estava, pois, o professor Sousa Loureiro nomeado director dos hospitais, deixando, por esse facto, o cargo de major do Corpo Académico; e como, decerto, traçou o seu plano, expô-lo ao comandante inglês e enumerar-lhe-ia as dificuldades que tinha e o que necessitava para levar a bom termo a sua missão. Continua ele:

«Representei as necessidades e as faltas. Mas este Comandante, julgando que tudo estaria dantes providenciado, e que eu, por mim mesmo e pela sua nomeação, poderia remover todos os embaraços e aprontar todo o necessário, disse-me que fizesse eu o que me parecesse, contanto que o fizesse bem e logo.»

Trant, como se vê, era mais militar do que higienista; e empregou uma fórmula excelente, na aparência lisonjeira, de que muitos chefes se servem para alijarem responsabilidades, embora possa ser, neste caso, a maneira de dar completa liberdade ao organizador. / 207 /

Mas o Dr. Loureiro não se satisfez com esta espécie de carta branca:

«Repliquei sobre meios e recursos; mas como o Quartel General e o Estado Maior se não podiam achar completamente organizados, e haver o necessário expediente para tudo; como o embaraço e os cuidados deste Exército na sua perigosa e arriscada situação começaram a aumentar-se, e todos os comandantes e empregados a não terem um só momento de descanso, tornou-se-me quase impossível o comunicar-me com o Coronel Trant.

Comecei com tudo a trabalhar, como logo direi a V. Ex.ª e julguei que devia dirigir-me ao Físico-Mor do Exército para me dar os meios e as providencias; e para me apontar recursos ou para me autorizar a lançar mão deles.

Não recebi, até agora, resposta alguma a três oficios que lhe fiz; devendo-se-me enviar ao menos, pelo Regulamento, um Almoxarife ou um delegado do Contador Fiscal, para me fazer aprontar logo os objectos de primeira e maior necessidade, e depois cuidar no resto.»

Vê-se que a máquina não trabalhava bem; os comandos militares ainda não tinham consistência; as hesitações eram constantes e o Físico-mor, como alto burocrata, fez ouvidos de mercador. O Dr. Loureiro, porém, não se deixou desanimar:

«Nestas circunstâncias, vendo que tinha tudo a ordenar e estabelecer logo um Hospital, e a cuidar de um grande número de doentes, sem casa, sem roupas, sem camas, sem louças, sem lenhas, sem coisa alguma e sem haver um só Ministro na terra e na Comarca; tomei a resolução de por mim mesmo, sozinho e em poucos dias, fazer aprontar e arranjar tudo o necessário. Dirigi-me ao Provedor de um Hospício que aqui havia, destinado a recolher os passageiros; dirigi-me aos párocos e aos juízes dos lugares circunvizinhos e a algumas pessoas mais que me facilitaram alguns socorros. Em quatro ou cinco dias aprontei as casas, por ora suficientes, aprontei camas, roupa, louça, lenha, botica e alguns provimentos mais em que me foi também preciso despender todo o dinheiro que tinha e que trazia.»

O Hospício a que se referia deveria ser o hospital da Misericórdia que julgo «o único estabelecimento de caridade» / 208 / que existia então em Águeda(9). Este hospital sob a invocação da S.ª da Boa Morte era antigo na vila; nos meados do século XVIII o Provedor dizia que fora instituído «para albergaria dos pobres passageiros»(10) e modernamente está anexo à Misericórdia, que é de mais recente fundação.

Era, decerto, a esta instituição beneficente que o Dr. Loureiro se dirigiu com a melhor e mais decidida das boas intenções.

Os recursos, porém, eram poucos(11) e a concentração de tropas agravava a já de si má situação sanitária.

«Porém, estes meios e estes recursos (continua o Dr. Loureiro) pela sua própria natureza, acham-se esgotados: estes lugares são pobríssimos; e mesmo aos sãos custa a chegar o cómodo e o alimento. A chegada de muitas outras tropas vai a tornar o sítio mais escasso. Eu não tenho já meios para entreter o arranjo e a sustentação da casa: é preciso que V.ª Ex.ª, sem dilacção alguma, determine os meios para eu poder mantê-la ou me autorize para eu poder tomar recursos e expediente.»

À falta de recursos materiais juntava-se o problema do dinheiro; havia quem o reclamasse pelo seu trabalho e o professor Loureiro parece embaraçado mais com isto do que com as dificuldades de outra ordem. Continua:

«Ou V.ª Ex.ª me faça enviar logo pelo Físico-Mor do Exército um Almoxarife encarregado de prover aos objectos de indispensável necessidade; ou V.ª Ex.ª expeça à Tesouraria Geral das Tropas uma ordem para se me aprontarem os meios necessários; ou V.ª Ex.ª me autorize para eu poder abonar despesas ou para que a Tesouraria me abone a mim as despesas de que eu der conta. Num estabelecimento destes há cirurgiões, ajudantes, enfermeiros, serventes, e todos estes empregados tem certos emolumentos sem os quais não servem e os quais eles não podem vencer ou receber sem que V.ª Ex.ª mande expressamente que se contem na Tesouraria ou na Administração Geral dos Hospitais, pelos Almoxarifes e pelo Contador Fiscal. Porém queira V.ª Ex.ª prover já as coisas de primeira necessidade, que as outras se ordenarão com mais sossego.» / 209 /

Depois vem novo problema: a possibilidade da marcha do exército para norte e a consequente mudança dos serviços hospitalares com novas exigências de despesas ---:- às
quais O Dr. Sousa Loureiro se propõe sacrificar com patriotismo:

«Há outro ponto relativo ao mesmo objecto que é o da mudança de posição que pode tomar brevemente esta Divisão. Será necessário ir assentar em outra parte este mesmo arranjo. Para isto também preciso ser por V.ª Ex.ª autorizado. A este novo posto me é necessário ir fazer novas despesas. Quem me há-de prover a elas?

Eu não tenho dúvida alguma em continuar a fazê-las à minha custa; mas então queira V.ª Ex.ª permitir-me que eu chegue a minha casa, que eu de boa vontade irei empenhar ou vender alguma coisa que me reste e virei gostoso despender tudo no serviço do Príncipe Regente.

«Eu não quero poupar-me a trabalho, ou a incómodo: por isso me sacrifiquei com o Corpo Académico que primeiro se aprontou e marchou de Coimbra no dia 30 de Março. Também nesta repartição em que me pôs o Coronel Trant, não quero negar-me a trabalho, antes quero que V.ª Ex.ª me confirme a nomeação que ele me fez de Físico ou Primeiro Médico deste Exército e Inspector dos Hospitais Militares de Entre-Douro e Mondego, as quais coisas não vêm bem especificadas na nomeação que remeto a V.ª Ex.ª e a qual mesmo me não parece ser suficiente e julgo necessária a de V.ª Ex.ª ou a do Ex.mo Marechal General.»

É interessante notar esta atitude do professor universitário. Boa vontade, sem dúvida; mas não parece haver, também, certa dose de ingenuidade? Apesar dos desenganos que já tinha não contaria com outros? Estava convencido de que, se empenhasse ou vendesse qualquer dos seus bens pessoais, o indemnizariam depois no final da campanha? Parece boa fé demasiada que, aliás, só pode reverter em seu louvor.

Termina, finalmente, o longo ofício com mais um apelo curioso:

«E pelo meu sacrifício, pela minha nomeação, anterior a toda e qualquer outra nestas Províncias e neste Exército, e pela minha graduação académica, superior à de outro qualquer depois do Físico-mor, eu me animava a pedir a V.ª Ex.ª ser confirmado e continuado nela, ficando à minha inspecção os Hospitais Militares e a saúde dos Exércitos da Província da Beira ou de Entre-Douro / 210 / e Mondego. E mais me anima ainda a fazer a V.ª Ex.ª esta rogativa o ter eu conhecimento local das principais terras e lugares desta Província, dos rios, montes, campos, que se acharem nela e poder assim escolher e apropriar com mais vantagens os terrenos ou as posições aos Hospitais.

Deus guarde a V.ª Ex.ª muitos anos. Quartel General de Águeda: 8 de Maio de 1809.

«Il.mo e Ex.mo Sr. D. Miguel Pereira Forjaz.

              (a) Francisco de Sousa Loureiro

Vê-se, pelo ofício transcrito e descontando o que possa haver de pessoal, que o Dr. Sousa Loureiro não era homem para se atrapalhar com embaraços; a sua acção neste curto período, bastante crítico, foi correcta e oportuna e foi além daquilo que é hábito observar-se em casos semelhantes.

Honra lhe seja. O pior é que superiormente parece que os seus serviços não foram devidamente considerados.

O Hospital funcionaria melhor ou pior. Não encontrei elementos para avaliar a sua eficácia nem mesmo o seu normal funcionamento. No meio da barafunda, ninguém se lembrou de fixar quaisquer elementos para a história; parece, contudo, que cumpriu conforme foi possível a sua obrigação beneficente durante o pouco tempo que as tropas estiveram na região, pois as referências posteriores deixadas em outros documentos pelo Dr. Loureiro assim o dão a entender.

A 12 de Maio, o exército aliado, já debaixo do comando de Sir Artur Wellesley e depois dum avanço firme embora cauteloso, entrou no Porto quase por surpresa e obrigou Soult a fazer uma retirada apressada e, de começo, pouco organizada.

Com este avanço veio a necessidade de transferir mais para o norte os hospitais; e de novo o Dr. Loureiro se viu a braços com sérias dificuldades. Logo no dia imediato à entrada no Porto, expôs ao ministro Pereira Forjaz os seus trabalhos e insistiu pelos recursos que julgava necessários em ofício que não deixa de ser curioso transcrever. É também elucidativo das dificuldades encontradas e de alguma indiferença das estações superiores perante os serviços hospitalares possivelmente considerados de menor importância(12).

/ 211 /

«Depois que no dia 8 pus na presença de V.ª Ex.ª os meus desejos e os meus trabalhos na importante comissão de que estou encarregado, juntou-se o exército em Águeda nos dias 9 e 10, partiu no dia 11 e entrou no Porto a 12.

Seguindo as ordens do Coronel Trant e segundo o que determina o regulamento, fiz marchar com o exército um hospital ambulante, botica, cirurgiões e instrumentos que fiz situar em Grijó e que hoje cuido em fazer transportar ao Porto; e mudei o hospital fixo ou permanente para Ovar, cinco léguas adiante de Águeda. Como o exército inglês tinha ocupado todos os transportes, achei muitos embaraços; mas à força de diligência e com algumas despesas pude efectuar toda esta obra nos dois trabalhosos dias de 11 e 12.

Torno a repetir a V.ª Ex.ª as dificuldades e embaraços em que me vejo, a falta de meios e providências e torno a requerer a V.ª Ex.ª queira prover neste caso como lhe parecer mais acertado. Nas Divisões que ficam próximas às do coronel Trant não sei que haja inspector ou físico português: por isso torno também a lembrar a V.ª Ex.ª os meus requerimentos e a minha vontade de servir a S. A. R. nesta repartição, mas querendo V.ª Ex.ª dar as ordens e as providências.

Deus Guarde a V.ª Ex.ª muitos anos. Quartel General do Porto: 13 de Maio de 1809.

«Il.mo e Ex.mo Sr. D. Miguel Pereira Forjaz.

O Físico do exército de Entre-Douro e Mondego Inspector dos Hospitais.»


Este documento dá a impressão de que, a respeito dos serviços de saúde, havia alguma coisa a desejar. E quanto à situação do Dr. Loureiro parece que as suas palavras e os seus pedidos ficaram letra morta.

O tempo passou; e em Julho quiseram nomeá-lo para médico do exército de observação na fronteira da Beira − ao que ele opôs certas dúvidas e fez observações em novo ofício de 18 daquele mês para o mesmo ministro D. Miguel Pereira Forjaz, do qual destaco estes passos:

«... Eu sou lente da Universidade há nove anos: tenho além disso os serviços desta campanha como major do Corpo Académico; e fundei e sustentei um mês o Hospital militar de Águeda.

«S. A. R. tem já começado a sustentar os estudantes: é provável que queira recompensar também os lentes que os acompanharam [...] Eu sou major de um Corpo que tem servido muito e muito bem: saí com ele de / 212 / Coimbra, fiz todo o serviço em Águeda: entrei no Porto: &c. Os majores dos Corpos de Milícias e Voluntários têm soldo: porque se me não declarará a mim também o soldo? Creio que também é justo.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

(a) Francisco de Sousa Loureiro.» (13)

Pobre Dr. Loureiro! No mesmo dia, naturalmente depois de expedir o ofício supra, recebeu ordem para seguir para Pinhel; e ainda nesse mesmo dia 18 de Julho escreveu novo ofício para o mesmo destinatário, acusando a recepção da ordem, observando que necessitava entregar os hospitais a seu cargo aos sucessores antes de partir, e renovando o pedido de regularização das contas antigas.

Transcrevo uns passos deste segundo ofício(14):

«Tenho a receber as contas dos hospitais de Águeda e de Ovar, cobrar as suas despesas que fiz como já participei a V.ª Ex.ª e que ainda não recebi por embaraços na Tesouraria e não posso partir sem isto.

Depois, é necessário que o Governo tenha comigo alguma contemplação visto o sacrifício que vou fazer e o género de serviço em que vou entrar. E se V.ª Ex.ª quer absolutamente que eu parta, com sua nova ordem partirei, fazendo-me V.ª Ex.ª a mercê de [...] mandar-me pagar as contas de Águeda e Ovar: e declarar-me se com efeito V.ª Ex.ª aprova que o Governo tenha comigo alguma contemplação e eu então direi a V.ª Ex.ª com todo o respeito qual a pretendo e espero.»

Ficou, certamente, à espera de resposta. Depreende-se que não havia organismo que superintendesse no assunto pois ainda no Porto, em 30 de Julho, novamente oficia para o ministro Pereira Forjaz, antes de partir em 1 de Agosto para Almeida, a respeito das contas de Águeda e Ovar!

«...Eu deixo completas [diz ele] e concluídas as contas de Águeda e Ovar [...] todas até ao fim de Junho: e isto porque todos os interessados e empregados sabendo que eu me retirava, pediram e requereram o que se lhes devia e havia duas portarias anteriores do coronel Trant para eu assinar despesas e arbitrar ordenados com o que / 213 / [Vol. XIII - N.º 51 - 1947] se conformavam algumas ordens e ofícios de V.ª Ex.ª e do Físico-mor a mim e à Tesouraria.»(15)


Diz ainda que entrega tudo ao sucessor e que está convencido de que não excedeu em nada o que lhe foi determinado em matéria de administração.

Apenso a este ofício há o seguinte verbete:

«O D.or Fr.co de Sousa Loureiro, que partiu do Porto p.ª Almeida no 1.º de Agosto, dá parte com data de 30 de Julho do que praticou antes da sua partida. Se errou sujeita-se em tudo às correcções e preceitos de S. Ex.ª /»


Como se liquidaram as contas dos hospitais de Águeda e Ovar não sei; não encontrei mais documentação − o que não quer dizer que a não haja. Mas quero crer que se não ligou grande importância aos ofícios do professor Loureiro e que a barafunda da guerra não deixaria olhar a sério para essas ninharias.

Em 1810, passado um ano, ainda um outro ofício para D. Miguel Pereira Forjaz vem lembrar as dívidas do Estado para com ele e o pouco caso que fizeram dos seus serviços. Tem a data de 14 de Maio e foi datado de Coimbra quando já liberto oficialmente do serviço militar desde 9 de Fevereiro anterior, ao tempo em que estava na Figueira «ocupado em coisas muito importantes pelo Físico-mor e pelo Ex.º Snr. Marechal Beresford» (16).

Nesse ofício pede que lhe paguem o que se lhe deve! E não só dos ordenados mas também das «despesas de dinheiro e abonações minhas em Águeda, Ovar, no Porto...» etc. etc. E terminava desta maneira:

«...Não peço recompensas, nem obséquios da parte de S. A.: peço só aquilo que ele me prometeu e que se me deve. Deus Guarde a V.ª Ex.ª muitos anos.

«Coimbra, 14 de Maio de 1810. De V.ª Ex.ª − o mais reverente, atento e humilde súbdito

(a) Francisco de Sousa Loureiro.»


E aqui está como terminaram os entusiasmos e a dedicação do Dr. Loureiro ao planear um hospital em Águeda capaz de socorrer os feridos e doentes, ao abonar do seu 
/ 214 / bolso as primeiras despesas, ao querer vender propriedades para acudir às necessidades dos serviços mais urgentes, etc. etc.

Decerto lhe custaria, como homem bem intencionado, a escrever o final deste ofício. Mas a série de desilusões recebidas obrigou-o a decidir-se:

− Não quero recompensas; só quero que me paguem o que me devem!

E ter-lhe-iam pago?

Fica de pé este problema que, como certas preocupações filosóficas de Fradique Mendes, «precisava ser mais desembrulhado...»


II

Na manhã do dia 27 de Setembro de 1810 caía, sobre a serra do Buçaco, um nevoeiro denso. Os valeiros do nascente, em especial, estavam encobertos por completo; e a vista do observador não conseguia descortinar o que os ouvidos lhe davam a perceber.

Lá de baixo, chegavam ruídos de vozes e do movimentar de viaturas, abafados decerto, mas trazidos em confusão através da espessa neblina; pressentia-se movimentação de vulto por todas aquelas encostas da frente e nos espíritos dos combatentes do exército anglo-Iuso, prostrado ao longo da cumeada, surgiria a ansiedade que o imprevisto sempre provoca, mormente na perspectiva de combate.

Nos dias anteriores, perante a invasão do exército francês de Massena, o anglo-Iuso do comando de Wellington retirara pela Beira sem grande pressão do adversário; esta atitude do generalíssimo napoleónico não apertando a retirada, deu azo ao comando britânico para poder manter certa coordenação de movimentos e boa escolha de posições retardadoras de modo a evitar grandes reacções, ou até recontros de êxito duvidoso, de harmonia com a sua compreensão ou sistema de campanha. De lance em lance, o exército aliado veio até à posição do Buçaco onde, em 25 do mesmo mês, ocupou linha extensa que ia dos contrafortes do Salgueiral, ao norte, até aos cabeços sobranceiros ao Mondego, no corte profundo de Entre-Penedos; e isto sem contar com as forças de cavalaria de Cotton que, da Mealhada a Avelãs do Caminho observavam as passagens da serra e cobriam, tanto quanto possível, a ala esquerda do exército que ficara um pouco em falso.

Contra este conjunto defensivo é que, a 26, o comando contrário lançou reconhecimentos em especial ao longo dos dois eixos de marcha, ou sejam, as velhas estradas que se dirigiam à serra: uma à portela de St.º António do Cântaro, outra às alturas da mata dos carmelitas descalços. / 215 /

Assim se chegou à manhã nevoenta de 27 de Setembro em que se iria ferir a batalha conhecida e muito falada, ou talvez melhor, se iriam ferir as duas batalhas do Buçaco − pois foram quase independentes as duas acções que Massena lançou em horas diversas contra a posição defensiva de Wellington.

É sabida a linha geral desta notável acção. Massena quis forçar a passagem para Coimbra que lhe parecia tomada pelo adversário e não avaliou bem a força do exército com que teria de se bater, assim como a importância topográfica da posição que ia atacar; homens habituados a encontrar poucas resistências e a ver sob o comando directo de Napoleão certas vitórias na aparência fáceis, os generais franceses teriam em pouco preço a capacidade combativa do exército inglês e muito menos ainda a do quase bisonho exército português − de modo que depois de discussões que não provam muito a unidade de comando nem o prestígio do chefe, o generalíssimo francês ordenou o ataque à serra por dois pontos, os correspondentes às passagens pelas quais se alcançava a grande estrada Porto-Lisboa.

Foi, como se sabe, bem renhida a luta em qualquer dos sectores: os atacantes não eram homens que se impressionassem com a imponência da encosta que teriam de vencer, nem com a possibilidade de alguma resistência; e na defesa havia tropas mais ou menos experimentadas em outras acções, com hábitos de disciplina e carácter sereno que enquadravam outras inexperientes mas já preparadas por instrução aturada e perfeitamente integradas nos deveres que a situação melindrosa lhes impunha. O ímpeto do ataque levado com brio, quer num quer noutro ponto, deu aparência de êxito; mas o embate dos dois sistemas (o do ataque em coluna, dos franceses e o da defesa em linha, de Wellington) veio dar a vitória ao comando que melhor soube aproveitar as qualidades das suas tropas e dar a mais inteligente adaptação ao terreno, isto é, veios vencer o general inglês que soube opor ao entusiástico impulso, mas sem grande base, dos homens de Massena, o cálculo frio dos fogos e o jogo certeiro das reservas.

Em St.º António do Cântaro, Foy, à frente da sua impetuosa brigada, alcançou a crista da serra mas ficou coacto perante a intervenção de oportunidade e eficácia notáveis duma divisão inglesa.

Em frente da mata, na direita, as brigadas de Ney lançadas com o vigor costumado tiveram sorte idêntica perante contra-ataques feitos com precisão; e não houve, daí por diante, possibilidade de tentar reconstituição das unidades para novo ataque.

O prestígio da defesa impôs-se com todo o seu valor moral. A batalha perdera-se para o exército francês. / 216 /

Ora isto veio para aqui como simples razão de ordem para contar com mais pormenores a parte desta memorável batalha desenvolvida em terras do distrito de Aveiro.

Como se sabe, o concelho da Mealhada abrange ainda grande área da serra do Buçaco − onde se unem os distritos de Coimbra e de Viseu. E exactamente na parte correspondente à freguesia de Luso se desenrolou um dos actos mais violentos do combate da ala esquerda aliada para explicação e compreensão do qual posso aqui dar notas inéditas que a boa sorte, em dia feliz, me deu a conhecer.

*
*      *

A esquerda da posição era ocupada pela Divisão ligeira de Crawfurd que dominava, com a brigada portuguesa de Pack, a encosta a leste do muro da mata do mosteiro; esta brigada ligava aquela divisão com a de Spencer (que formava o centro da defensiva) e ficava fronteira à estrada de Mortágua que seguia sensivelmente pelo traçado que hoje segue a estrada nacional. Havia duas baterias de artilharia e o conjunto de todas estas forças orçava por 6.500 homens.

Foi contra este agrupamento, colocado em terras do actual concelho da Mealhada, que o Corpo de Exército de Ney se lançou ao ataque sem a coordenação recomendada pelo comando já na altura em que Reynier se convencera de que lhe não era possível forçar a passagem da portela do Cântaro; o ataque foi entregue às divisões de Loison (pela direita; contra Crawfurd) e de Marchand (pela esquerda, contra Pack).

Loison mandou a brigada de Ferey; e Marchand mandou a de Maucune a um e outro lado da estrada, ao assalto das posições aliadas(17). Aquela brigada, apesar dos estragos que lhe causavam a artilharia de Crawfurd e os tiros de parte de Caçadores 4, levou adiante de si as forças aliadas, mas teve de recuar perante duas cargas, uma de dois regimentos ingleses da Divisão Ligeira e depois outra do 1.º batalhão do regimento português n.º 19, que a obrigaram a retirar para os lados de Moura, ao abrigo da protecção de Mermet. A outra brigada, a de Maucune, largou pela encosta do lado da povoação de Moura, um pouco mais tarde, quando se pronunciava a retirada de Ferey; ia exposta ao fogo da artilharia e ao de Caçadores 4 português, mas o ímpeto inicial / 217 / foi de tal ordem que a escalada ia seguindo com certo êxito obrigando a defesa a recuo, embora com ordem.

O momento, porém, para o atacante foi, segundo uma testemunha, um dos mais difíceis do dia (18); mas para a defesa esse momento também não foi dos mais fáceis. Os nossos soldados de Caçadores 4, talvez no seu baptismo de fogo, tiveram que ceder perante o avanço seguro e violento dos franceses.

Buçaco: sector da brigada de Pack::

Diniz Pack, o comandante da brigada portuguesa (19) responsável pelo sector para que se dirigia o ataque de Maucune, compreendeu a situação perigosa a que poderia levar o êxito da investida. Era urgente não deixar consolidar esse êxito, pois trazia consequências que se não poderiam prever.

Decerto saberia já do desastre de Reynier na direita; e via / 218 / ali perto o mau resultado do ataque de Ferey; as vantagens tácticas e sobretudo psicológicas poderiam perder-se com rapidez, tanto mais que os franceses viriam excitados pelas notícias dos outros sectores e ter-se-ia de contar com o seu valor e hábitos de vencer em toda a parte.

Perante todos estes factos, o brigadeiro inglês mandou chamar um major português de Infantaria n.º 1 e ordenou-lhe, com breves indicações, que «fosse imediatamente ganhar o terreno que os piquetes tinham perdido e que, depois de ganho o terreno, defendesse «aquela posição até à última...». Isto é, o major português com um batalhão ou força equivalente, teria de se haver com uma brigada que vinha triunfante, cheia de impulso combativo, e desejosa de se sobrepor às outras que não conseguiram alcançar o seu destino; e teria que se opor com tropas ainda mal afeitas à luta e influenciadas, decerto, pelo prestígio que rodeava os atacantes, a essa gente desprezadora de perigos e habituada a encontrar poucas resistências.

O problema para o major português era grave e complexo, Felizmente (ou talvez propositadamente) esse major, embora com dezanove anos, idade em que se começa a vida, chamava-se João Carlos Saldanha de Oliveira Daun. Comandava um dos batalhões de Infantaria n.º 1 onde assentara praça e não deixara o regimento em toda a campanha deste ano de 1810; tornara-se notado pelas qualidades militares reveladas, especialmente pela viveza de inteligência que lhe proporcionara cultura apreciável, pela rapidez de observação e facilidade de adaptação a toda a variabilidade de sucessos. Os comandos ingleses distinguiram-no da maioria dos oficiais portugueses que ficaram no país depois da sangria da Legião; e com certeza esta nomeação feita pelo brigadeiro Pack viria mais dos méritos reconhecidos (apesar da pouca idade) do que do facto de Saldanha ser, nessa manhã, o oficial superior de dia.

O certo é que o major João Carlos com os seus 19 anos viu-se, num momento, perante responsabilidades que nem todos assumiriam, entregue a si próprio, ao seu maior ou menor poder de acção. Haveria, na encosta da serra, em frente, ainda restos de neblina a que o fumo das descargas contínuas, de parte a parte, aumentaria a espessura; o mato alto que cobria a encosta ajudaria a esconder os movimentos dos adversários que, por esse facto, poderiam dar impressão de maior valor; e assim o problema aumentaria de gravidade que não passaria despercebida ao moço Saldanha apesar da sua pouca experiência.

Emocionado, certamente, mas dominando-se, o major João Carlos dirigiu-se para os seus soldados com a decisão de que sempre, depois, em longa carreira militar, não deixou / 219 / de dar provas; esses soldados com que iria tentar uma aventura muito séria, deveriam ser os das companhias de granadeiros dos batalhões (gente antiga e por consequência mais sólida) com os quais constituiria força mais capaz de acção do que a formada pelo próprio batalhão ainda pouco experiente. O prestígio do moço oficial era grande e vinha já desde 1808, desde o começo da resistência aos invasores; no regimento, a sua vontade era aceite sem objecções − de modo que as vozes dadas aos homens de Infantaria n.º 1 para avançar, com a viveza natural da idade e o entusiasmo de que se sentiria possuído pela diligência que ia cumprir à vista de tanto observador estrangeiro, fizeram com que o vigor do avanço fosse levado a ponto de exceder o objectivo marcado de antemão: «não só ganhámos o terreno perdido mas ainda muito mais...». E tanto que o brigadeiro inglês teve que mandar recuar um pouco a nova linha para (como hoje se diz) rectificar a frente.

E Marchand, como os outros comandantes franceses, perdera também a partida.

João Carlos Saldanha, o futuro marechal vencedor de Almoster, dera as primeiras provas sérias do que poderiam ser capazes as suas reais qualidades militares que souberam assumir, com prontidão e energia raras, responsabilidades graves em momento melindroso. E contudo, as histórias não falam desta intervenção de umas centenas de portugueses que levavam à frente um major com 19 anos.

O que as histórias nos contam, firmadas nos relatórios ingleses e pouquíssimos testemunhos nacionais é que à brigada de Pack coube a resistência ao avanço de Maucune e que o fogo das unidades que a constituíam foi tal que o avanço se tornou impossível. Os relatórios dos chefes britânicos eram circunspectos, não entravam muito em pormenores, mormente se estes punham em evidência os bons aliados lusitanos.

E assim este pequeno capítulo da história da batalha da serra do Buçaco continuaria ignorado se não fosse o conhecimento feliz duma carta que João Carlos Saldanha escreveu a sua Mãe, D. Maria Amália de Carvalho Daun, no dia 28 de Setembro, datada do «Campo do Buçaco», na qual fez quase um relatório da parte que tomou na acção memorável da véspera, com certeza ainda debaixo da comoção que lhe causariam as peripécias mais ou menos vivas em que foi actor consciente e decidido (20). Por ela se reconstitui, com a maior / 220 / facilidade, o que foi esse episódio perdido no conjunto da batalha; mas neste lugar deverá ter certo interesse por dar a conhecer que foi em terras do distrito aveirense que o ilustre militar, depois marechal Saldanha, teve a sua primeira acção de vulto, onde revelou as qualidades pessoais de comando resoluto e oportuno (21).

*
*      *

A batalha perdeu-se para os franceses. Massena viu-se na contingência grave de ceder terreno, o que seria pouco próprio para generais napoleónicos, ou procurar nova solução para o problema que surgira com o desastre.

Essa solução foi-lhe dada, depois de vários e rápidos reconhecimentos feitos pela Cavalaria, por Sainte-Croix, general de brigada do 8.º corpo de Junot, que denunciou, embora sem pormenores, a existência de passagem, algum tanto difícil, pela direita, pela qual o exército francês se escoaria na direcção de nordeste e, depois de contornar a posição dos aliados, poderia surpreendê-los com vantagem (22).

Em 28, Montbrun foi mandado, com a sua boa divisão de Cavalaria, reconhecer a passagem conforme as indicações de Sainte-Croix; e decerto esse reconhecimento, acompanhado de brigadas de sapadores para o que desse e viesse, foi largo; deveria abranger toda a zona e ter explorado à esquerda do eixo de marcha o valor da vigilância aliada, que, diga-se de passagem, não teve peso no episódio.

Assim, chegados à portela de Boialvo de onde se avistam os vales do Cértima e do Agadão, cheios de verdura fecunda, os franceses viram que, com facilidade, por caminhos mais suaves, largos e de piso arenoso, alcançariam as baixas férteis por onde a estrada do Porto passava. Estava resolvido o problema: o terreno era mau até à portela, mas estava livre; a cavalaria britânica não seria obstáculo (como realmente não foi) à passagem nocturna dos vencidos da véspera; e este abandono de vigilância e segurança por parte dos aliados, deu azo a que a vitória alcançada com tanto encarniçamento na serra, fosse anulada tão depressa.

Montbrun ocupou, pois, as saídas do caminho e Junot, com o seu 8.º corpo, foi o que, de noite, iniciou a marcha e / 221 / que, na manhã de 29, acampou em Avelans de Cima (hoje concelho da Anadia); foi marcha difícil que parece ter exasperado a soldadesca habituada a trabalhos menos incómodos. A seguir foi Ney com o 6.º corpo que levou os milhares de feridos da batalha, em dolorosa fiada de macas improvisadas, em andilhas nas garupas dos cavalos, nas viaturas que resistiram ao mau estado dos caminhos. E em último lugar, o 2.º corpo de Reynier que foi obrigado a fazer a marcha já sobre a tarde, com mais dificuldades ainda, forçado a remover viaturas escangalhadas e a recolher feridos que os da frente, no afã da marcha, iam desumanamente abandonando.

Em Boialvo, então, Massena ordenou a Ney que, com uma das suas divisões ficasse constituindo a guarda da retaguarda; e reunindo em várias povoações da zona de Avelãs ao Sardão (concelho de Águeda) todas as divisões ao abrigo da cavalaria de Montbrun que repeliu para os lados de Coimbra as brigadas da cavalaria inglesa, organizou a marcha contra sul pela estrada Porto-Coimbra com a rapidez que as circunstâncias consentiram.

Wellington, pressentindo a manobra, ordenou a imediata retirada. A vitória do dia 27 para pouco servira e o exército francês recuperara, até certo ponto, a liberdade de movimentos; e nesse pequeno período em que, desde Boialvo às proximidades de Coimbra, as divisões de Massena se espraiaram pelas vilas e aldeias − a destruição e todo o género de malefícios foram constantes. A soldadesca e a própria oficialidade, irritadas por tanta contrariedade, mostraram à larga os maus instintos e praticaram toda a sorte de rigores que a benevolência de certos apologistas da força desculpa com as necessidades militares.

Por toda a parte onde passaram os exércitos, deixaram os tristes sinais do que vale esse tremendo fenómeno a que já se chamou, no próprio meado do século XIX, espada de justiça divina ou escudo da misericórdia de Deus (23).

De todos esses males deixados pela campanha, ainda há alguns documentos contemporâneos, cheios de vida, transparentes de certa comoção: refiro-me às relações dos párocos das freguesias mandadas organizar superiormente para avaliação dos prejuízos.

Relativas às freguesias do distrito aveirense, há pouco, muito pouco: apenas uma da Vila Nova de Monsarros, do concelho da Anadia, e três do concelho da Mealhada: Vacariça, Luso e Pampilhosa. Escritas quase a seguir aos sucessos, algumas dessas relações de que há dezenas no Arquivo / 222 / Universitário (24) transmitem a dolorosa impressão dos terríveis dias com grande intensidade, e deixam transparecer bem às claras o que foram esses momentos tristes.

Ficam agora arquivadas as quatro relações referidas − documentos que não tiram nem põem à história geral mas que sem dúvida esclarecem passos da história local e alguns até do próprio desenrolar da campanha com certos pormenores até agora desconhecidos ou porventura suspeitados.

Coimbra, Junho de 1947.

BELISÁRIO PIMENTA

 

DOCUMENTOS

«Relação das mortes, roubos, inçendios; e atrocidades cometidas pello Exercito Frances comandado pelo Gn.al Maçena que contem circunstançiadam.te todos os roubos e sacrilegios comettidos nos Templos, cazas incendiadas; e os endividuos de hum e outro sexo assassinados com suas respetivas id.es do Arçiprestado de Mortagoa.»


«FREGUEZIA DA VACARISSA

«Esta freguezia padeçeo m.to com o Exerçito Ingles e Portugues no tempo que se esteve combatendo no Bussaco; e m.to mais depois que o Exercito Frances passou por ella principalmente os lugares inferiores desta freg.ª que são Mialhada eos proximos a Elle.

«Pessoas mortas pellos Franu_es nesta fregue_ia:

«Matarão os Francezes nesta freg.ª seis pessoas a saber quatro homens e duas mulheres, huma destas chamada Maria Du.te (?) da Vacarissa de id.e de outenta annos foi assassinada com bastante atroçid.e rasgando lhe a boca pelos lados, athe o pescoso ficando dependurado o queixo infrior athe o peito. A outra m.er chamada Isabel Duarte edo lugar da Povoa da Mialhada de ed.e de 85 annos e sega foi assassinada com golpes de traçado. José Proa da Maia da, Mialhada foi morto a tiro de balla e lhe cortarão as mãos de id.e 60 annos. Os mais acharãose mortos ecomo passarão dias bastantes depois que os matarão não se sabe bem como foi a morte delles; por estarem corrutos quando os acharão.

/ 223 /

«Roubos

«Os lugares desta treg.ª que forão roubados inteiram.te de frutos são os [fIs. I v.º] os da Mialhada, Sernadello, Povoa da Mialhada, Reconco e Travassô, pode-se dizer que ahinda antes de virem os Françezes já os frutos destes lugares estavão quaze consumidos pella Devizão de Cavalaria Ingleza do Gen.al Spençer que esteve aquartelado na Mialhada emquanto durou o combatte do Bussaco com os Francezes (25) e depois acabados de consumir alguns poucos restos que estavão pellos campos pello Exerçito Frances comandado pello Gn.al Maçena que esteve tres dias aquartelado neste m.mo lugar da Mialhada ena Rezidençia de mim Arcipreste (em que tambem tinha estado sobred.º Gn.al Ingles Spençer) tudo o que tinha ficado de frutos e roupas nas cazas tudo se foi,


Sacrilegios

«Na Igreja não cometerão os Francezes cacrilegio algum; mas nos santos do lugar da Mialhada degolaram a Snr.ª St.ª Anna, e despedaçarão St.ª Isabel.


Roubos sacrilegos

«Na Igreja a cassula de pratta (pessa bem esti[ma]vel pello bom gosto comque estava travalhada) hum calix de prata; e mais nada. Nas cappellas, na de Mialhada de Snr.ª St.ª Anna roubaram duas alvas já uzadas des toalhas do altar e sinco amittos, e duas vestimentas uzadas destruirão equeimarão o altar de todo as portas travessas do lado esquerdo e a huma janella do coro o solho todo; eas gavettas do caixão etambem os confesionarios avalua se o perjuizo feito nesta capella em cento e vinte mil rs. Na cappella de S. Sebastião do mesmo lugar furtarão duas alvas tres toalhas do altar duas vestimentàs e tres amittos. Na cappella do lugar de Travassô toda a roupa branca e as vestimentas melhores tres. Na do lugar de Sernadello roubarão huã alva e hum amitto e alguma distruição no caixão, mas pouca couza.


lncendios

Incendiarão no lugar da Mialhada huma caza; e no lugar de [fi. 2] de Sernadello incendiarão tres moradas de cazas que ahinda não estavão bem acabadas e quaze metade de outras ese avalua a perca destas tres moradas em mais de hum conto de reis.

  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .

[fIs. 12 v.º] «FREGUEZIA DA PAMPILHOZA

«Entrárão nesta freguezia por vezes os vinte ou trinta Francezes arroubar ecom effeito roubarão tudo o que hera dinr.º, roupas principalmente [fIs. 13] brancas.


Mortes «Matarão huma mulher ded.e de 50 annos.

/ 224 /

Roubos

Roubarão como asima já disse alhuns dinr.os  fatos principalmente roupas de linho, e tambem m.tas galinhas e carne de porco que acharão por algumas cazas.


Sacrilegios

Na cappella deste lugar da Pampilhosa quebrarão a pedra d'ara.


Roubos sacrílegos

Na Igreja o areliquairo de pratta em que se levava o sagrado viatico aos enfermos e na cappella o calix de pratta com sua patena e toda roupa que havia na egreja e cappella, como se explica o Paroco que tudo poderia valer setenta mil rs. a saber quarenta mil rs. a Egreja e trinta a cappella.


FREGUEZIA DE VILLA N.A DE MONSARROS

Tam som.te dous lugares desta freguezia forão calcados pellos Francezes que são Monsarros e Grade.


Mortes

Matarão os Francezes no lugar da Grade hum homem de sincoenta annos.

[fls. 13 v.º]

Roubos

Os moradores destes dous lugares forão roubados em duas cazas não ficando absolutam.te couza alguma comestivel, e de roupa principalmente de linho eque os moradores, os que fugirão, não levarão consigo.

 

Roubos sacrilegos

No lugar de Grade furtarão hum calix de pratta e as toalhas do altar e na cappella de Monsarros tão som.te do calix o copo q hera de prata deixando o pé por ser de estanho, e tambem algumas toalhas.

 

FREGUEZIA DE LUSO

Esta freguezia não foi calcada pello Exercito Françes em razão de estar defendiãa pella montanha do Bussaco ahonde estava o Exercito Angolo Portugues a defender esta pasaje; mas retroçedendo o Exercito Françes p.ª p.te do Norte e pella estrada de Boialvo sempre quando derão a volta alguns Francezes couza de trinta entrarão nesta freguezia mas não consta que fizessem algum estrago se be[m] que se acharão os roubos e sacrilegios seguintes

Sacrilegios

Na cappella da Snr.ª do Carmo do lugar de Monte novo quebrarão a pedra d'ara.


Roubos sacrílegos

Na capella de S. João da Fonte roubarão as alvas amittos e cordoens e tambem as vestimentas. E na cappella de S. Sebastião do lugar de Barrô, hũa alva e toalhas do altar, a bolça dos corporais, duas estollas, e hum manipulo. E na cappella do Encarnadouro, do Bussaco desfizerão o altar.  / 225 /

Não se duvidando que esta freguezia ficou estragada com a estada do Exercito Ingles e Portugues ahonde esteve sinco dias acampado emquanto os Francezes não fugirão»

[fIs. 15]

Mappa das Pessoas assassinadas pelo Exercito Francês do Arciprestado de Mortagua.

_________________________________________

(1)Ver, neste mesmo Arquivo, os meus artigos no vol. II a pág. 245 e no vol. VIII, a pág. 161, em que afloro estes problemas.

(2)A. P. TAVEIRA, A Campanha de Soult em Portugal, pág. 105. 

(3) − Cfr. D. MARIA ERMELINDA DO AVELAR FERNANDES MARTINS, Coimbra e a Guerra Peninsular.

(4)Cfr. as Memórias do Dr. FRAGOSO DE VASCONCELOS, publicadas integralmente na obra Coimbra e a Guerra Peninsular já cit., vol. II, pág. CXXVII.

(5)MIRABEAU, Memória histórica e comemorativa da Faculdade de Medicina, pág. 278.  

(6)Livro Mestre do Registo do Corpo Militar, ms. publicado na Coimbra e a Guerra Peninsular cit., voI. II, pág. XV e seg.

(7)Parece que este professor se notabilizou não só como médico mas também por cultura geral apreciável. Em 1822 foi nomeado mestre do Infante D. Miguel; foi depois director geral da Academia das Belas Artes e vogal do Conservatório e publicou algumas obras sobre assuntos literários e artísticos, das quais, uma ou outra discutida. A seu respeito veja-se: RODRIGUES DE GUSMÃO, Memórias biográficas dos médicos e cirurgiões portugueses (Lisboa; 1858); M. BERNARDO A. SERRA DE MIRABEAU, Memória já cit.; Dicionário Bibliográfico Português de INOCÊNCIO F. DA SILVA; JOSÉ LIBERATO F. DE CARVALHO, Memórias, pág. 117 nota; etc., etc..

(8)Documento n.º 29, fls. 1-3, da caixa 166 (1.ª Divisão, 14.ª Secção) do Arquivo Histórico Militar. 

(9) Assim afirmou MARQUES GOMES na monografia Águeda, a pág. 457 e seg. do vol. I da História do Municipalismo em Portugal (Lisboa, 1888).  

(10)MARQUES GOMES, ob. cit., pág. 603.

(11)«Escassos eram os seus haveres...» (M. GOMES, ob. cit., pág.604).

(12)Doc. n.º 29, fls. 4, na colocação cit. O documento é minuta do oficio. Não tem assinatura.

(13)Doc. cit. n.º 29, a fls. 8.

(14)Doc. cit. n.º 29, a fls. 10.

(15) Doc. cit. n.º 29, a fls. 12.

(16) Arquivado no processo individual do Dr. Francisco de Sousa Loureiro (Arquivo Histórico Militar: Processos individuais).  

(17) Para melhor compreensão: o 6.º Corpo de exército, de Ney, tinha 3 divisões de Infantaria: de Marchand (brigadas Maucune e Marcognet); de Mermet (brigadas Bardet e Labassé); e de Loison (brigadas Simon e Ferey); uma brigada de cavalaria de Lamotte; artilharia; etc.

(18) −  GUINGRET, Relation historique et militaire de la campagne de Portugal, pág. 60.

(19) Constituída por Infantaria n.º 1 e n.º 16 e por Caçadores n.º 4.

(20) −  Esta carta pertence a um grande núcleo de correspondência de Saldanha, durante a campanha da Península, não só dirigida a sua Mãe como ao Irmão mais velho, pertencente à casa Rio Maior, cuja leitura o seu actual possuidor, o Ex.mo Sr. Marquês de Rio Maior me facultou com generosa e compreensiva gentileza.

(21) Tenho quase concluído um vasto trabalho, em breve possivelmente publicado, que intitularei As ideias militares do Marechal Saldanha, onde, com mais largueza, este episódio notável é contado e explicado.  

(22) Para o leitor curioso indico um pequeno estudo meu acerca deste episódio, publicado na Revista Militar, vol. 90.º, a págs. 258 e segs. com o título O Caminho de Boialvo.  

(23) Veuillot, La Guerre et l'Homme de Guerre, pág. VI.  

(24) Pertencem a uma grande colecção de documentos do Cabido da Sé que foi o encarregado da distribuição do Subsídio Britânico no Bispado e hoje arquivada e catalogada no Arquivo da Universidade de Coimbra.   

(25) − O pároco enganou-se. O general comandante de cavalaria inglesa era Cotton e os comandantes das suas três brigadas chamavam-se Slade, Grey e Anson. Spencer comandava o centro da linha defensiva no alto da serra.  

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