A. S. de Sousa Baptista Santa Maria de Lamas, Vol. XIII, pp. 165-181

SANTA MARIA DE LAMAS

A LUTA travada entre o cristianismo e o paganismo durou séculos. No fim do IV ela durava ainda, mas era já patente o triunfo da cruz por todo o império romano, e portanto, na Península Hispânica. Mais dura era então, e o foi durante séculos ainda, a guerra dentro do próprio cristianismo com os cismas que pululavam por toda a parte, sobretudo com o arianismo, força que em certa época chegou mesmo a ameaçar de extermínio a ortodoxia. Foi Teodósio, o Grande, que, nos últimos quinze anos da sua vida, deu o golpe de misericórdia no paganismo moribundo, combate eficiente aos arianos, força e prestígio aos cristãos fiéis aos velhos preceitos, para os quais se inclinou francamente, cumulando-os de privilégios, enquanto privava os outros de direitos fundamentais. Foi ele que permitiu aos cristãos fiéis qualificarem-se de católicos.

É evidente que o cristianismo, tendo-se derramado na Península desde o primeiro século, havia de ter necessariamente templos para o seu culto. Ao princípio secretos, depois públicos, eles respondiam nas proporções, asseio e solidez, às condições gerais da época, ao número dos fiéis e, sobretudo, à tranquilidade maior ou menor que lhes davam os imperadores, de acordo com as suas preferências religiosas. À morte de Teodósio, em 396, a vida religiosa católica era intensa. Todos os bispados estavam providos dos respectivos bispos e os templos, afamados pelas relíquias dos santos que guardavam, tinham já a firmeza de linhas e amplitude bastante para todas as exigências da fé triunfante.

Mal andados, porém, os primeiros anos do século V, os bárbaros cobrem o solo peninsular. Eles vinham já largamente cristianizados, mas segundo os princípios do arianismo que lhes punham mais ódio no coração contra os católicos do que todas as outras religiões. Os templos foram destruídos ou incendiados, os bispos perseguidos e obrigados / 166 / a trabalhos nas fortificações e construção de templos arianos. Foi o que sucedeu a Elipando, de Coimbra. Os primeiros vinte anos deste século foram verdadeiramente lutuosos para a igreja católica.

Cansados, enfim, os bárbaros de suas guerras cruentas, aquietados os suevos e alanos nas terras que ocupavam, retirados os vândalos para a África, fácil foi a Ataúlfo, rei dos godos e aos seus sucessores, estabelecer sobre a Península um novo império que veio a cobrir todo o seu território com a incorporação dos suevos na segunda metade do século VI, depois de uma vida independente que durou quase dois séculos.

A religião católica sempre encontrou da parte dos suevos decidido favor, podendo dizer-se que em toda a região ocupada por eles, isto é, entre Minho e Mondego, ela dominava seguramente todas as outras crenças. Outro tanto não aconteceu entre os godos, que, aferrados ao arianismo, sobressaltavam frequentemente os católicos, impedindo-lhes o culto e destruindo-lhes os templos. Durante o reinado de Teodorico, rei dos suevos, o catolicismo teve uma época de franca prosperidade após a sua conversão. Vem S. Martinho da França para Braga. Reuniram-se vários concílios onde se firmaram os princípios da fé e combateram as heresias que eram muitas. Foi o tempo de S. Jerónimo, em Jerusalém, de Santo Agostinho na África, cujos conselhos Paulo Orósio trouxe à Península, após a visita que lhes fez. Teodomiro foi entre as suevos, ao findar o século VI, o mesmo que Teodósio entre os romanos, ao terminar o século IV. E, como o deste, também o bem daquele teve pouca duração. Posteriormente à sua morte, o reino dos suevos cai em novas convulsões políticas, que abriram as portas ao cruel Leovegildo, rei dos godos, que pôs fim definitivo à existência política daquele estado em 585. Assim desapareceu outro reino e novas aflições vieram aos católicos. Leovegildo, de acendrado apego a arianismo, perseguiu-os e vexou-os. Muitos prelados foram expulsos das suas dioceses, como Pantarda, de Braga, e Constâncio, do Porto. Mas, também este mal foi de pouca duração. Leovegildo morre em 586 e tudo se modificou. Seu filho e sucessor, Recaredo, tão franco apoio deu ao catolicismo, provendo as prelazias ocupadas pelas arianos, reunindo sínodos, construindo templos e mosteiros, que o final do século VI e todo o século VII são de triunfo para o catolicismo. Os sucessores de Recaredo não foram menos fervorosos do que ele. Sisebuto foi mesmo mais longe, pois abriu a luta contra os judeus, ordenando a expulsão de todos os que se não convertessem. Foram numerosos os concílios, que tomaram gradualmente a forma nova de grandes assembleias legislativas, onde, a par de assuntos religiosos, os reis quiseram / 167 / que se discutissem, outros de ordem política, no interesse da Nação.

Não sei porque estranhos e impenetráveis desígnios de Deus, as grandes épocas de triunfo do catolicismo são seguidas de graves perturbações de ordem política em que sucumbem os impérios: − logo depois de Teodósio, as invasões bárbaras e a queda do império romano; após Teodomiro cai o reino dos suevos; decorrido um século de glórias curtas, sucumbe o império visigótico e os árabes cobrem o solo peninsular.

A invasão árabe, no seu ímpeto triunfante e avassalador, através de quase toda a Península, não teve o carácter feroz e destruidor das invasões bárbaras, três séculos antes. Mais destruidoras foram as lutas da reconquista, desde Covadonga, em 718, até à tomada de Granada em 1492, quando o pendão católico de novo tremulou triunfante em todas as torres da Península. Fernando e Isabel na Espanha, João III em Portugal. Ao longe, o vendaval da Mancha e Alcácer-Quibir.

Durante o domínio árabe, os cristãos foram mais ou menos livres nas práticas do seu culto. Embora sujeitas a certos tributos, algumas instituições religiosas, como o mosteiro de Lorvão, atravessaram todo o período árabe, para desaparecerem quase nos nossos dias.

É de crer que as populações cristãs dentre o Douro e Vouga, embora de contínuo sobressaltadas e rarefeitas pelas guerras de fronteiras, conservassem os seus templos, quer sob o domínio árabe, quer sob o neogodo. Também é de presumir que na região de Vouga, antes de Santa Maria de Lamas, tenha havido outro ou outros templos. Não temos, porém, elementos seguros para localizá-los e descrevê-los, havendo, assim, de passar logo à basílica de Santa Maria de Lamas.

Em 957, Enderquina Pala lega ao mosteiro de S. Salvador de Viseu a vila de Aqualada (Aguada), com a sua igreja de S. Martinho, acrescentando ao legado o mosteiro do MarneI, chamado de Santa Maria.

Diz o documento (P. M. H., Dip. et Ch.):

«...Ego exigua famula dei inderquina qui et palla... ideo offero pro remedio anime mee suburbio colimbrie uilla mea propria aqualada cum sua ecclesia uocabulo sancti martini cum omnibus aprestationibus suis cortes cum casas hortales uineas pomiferas aquis aquarum sesigas molinarum terras ruptas uel inruptas exitus montium per ubique determinauimus ab integro concedo et diuidit ipsa uilla cum uilla barriolo per illa lomba inter ambas illas stratas et torna in cubito sinistro ad partem occidente per lomba usque in riuulo certoma et trouce / 168 / illum riuulum certoma usque ad illam contestam terrenam que diuidit inter uillam uluariam et pergit usque ad montem et ferit in illa mamola que dividit cum uilla sangalios et torna a parte oriente a rippa riuulo certoma ad illa contesta et troce ibí riuulum et perge per sistum per illas uarzenas directum usque ad illum marcum qui sedet ad radicem montis de aqualadela et pergit per montis usque nascitur ille riuulus et torna a parte aquilonis directum per illam ganderam usque in riuulo aqualada et diuidit cum uilla sancta eolalia troucit illo riuulo et pergit per lomba usque at illas stratas.

Adicio etiam monasterium de marneI cum omnibus adjunctionibus suis pernominata sancta maria...»

É, assim, certo que em 957 havia no MarneI um Mosteiro, o qual deve vir de data anterior, pois não diz o documento referido que Enderquina Pala o tenha edificado. Precisamos, antes de mais, de saber o que era um mosteiro nestes tempos, para que a dedução dos factos não seja prejudicada com as modernas ideias de grandeza que esta palavra desperta no nosso espírito. O documento de 1019, relativo ao mosteiro de Sever, diz-nos claramente o que ele era: um pequeno templo e uma casa de habitação para duas ou três pessoas. Quando Almançor, em 997, fez a penúltima incursão, só havia ali uma pessoa em vida monástica − o diácono Sandino, e deduz-se deste mesmo documento que nunca houvera antes mais de duas. Assim devia ser o mosteiro do MarneI. Estes mosteiros, que eram numerosos nesta época, viviam das rendas das terras que lhes eram doadas, das quais se haviam de separar as prestações devidas ao senhor do mesmo mosteiro. Enderquina Pala não fez doação, ao mosteiro do Salvador, da propriedade plena do mosteiro do MarneI, mas das prestações e mais direitos que tinha sobre o mesmo mosteiro. Sobre esta Enderquina Pala direi quando tratar dos Senhores do MarneI. Por agora, basta-nos saber que esta Senhora era pessoa de nobreza, que certamente não viveu em nenhuma das terras que doou. Ela, ou seus antepassados, devem tê-las havido de favor régio, como resulta da confirmação do rei Sancho neste documento de 957, e dos reis Ramiro, Sancho e Bermudo na de 961, a que vou já referir-me. Estes documentos não careceriam de confirmação real, se não subsistissem direitos reais sobre os bens a que se referem.

Onde seria situado este mosteiro do MarneI? No lugar onde mais tarde foi construída a Basílica, isto é, na margem esquerda do rio?

Em 961, a mesma Enderquina Pala faz doação ao convento de Lorvão do mosteiro de vila de Speraindeo e outros. / 169 / − «...ln primis uilla speraindeo ubi recondite sunt reliquie sub aula sancti salvatoris et omnes sancti apostoli siue et reliquiarum sancte marie semper uirgo permanens cum suas virgines, ipsa uilla jam dicta cum omnes aiacentiis et prestationibus suis et alias uillas pernominatas, id sunt − talaba uilla noua ubi alium monasterium fundatum est cum omnes adiectionibus suis. Et adicio etiam alia mea uilla sauugosa per suis locis et terminis antiquis et laurosa ferronio et uineas quod sunt in ripa pauie et uilla de sancta eolalie cum omnibus prestationibus suis, et suniloni, omnes as uillas in urbis uiseo sunt constructas, et de urbis colimbrie concedimus ad jam supradictum monasterium uilla aqualada quomodo exparte cum barriolo et de alia parte cum auelanas cum sangalias et monasterium de marnelle que uocitant sancta maria de lamas cum suas uarzenas et cum omnibus prestationibus suis...» (Dip. et Ch.).

Assim, pelo documento de 957, Enderquina doou o mosteiro de Santa Maria de Lamas, ao mosteiro do Salvador, em Viseu, e por este de 961 doou um e outro ao Convento de Lorvão, acrescentando-lhe muitas outras vilas além de Aguada, que também já faziam parte do primeiro.

A doação de Enderquina Pala refere-se só ao mosteiro de Santa Maria de Lamas e não à vila de Lamas. Esta vila não era sua, pois andava dividida entre os herdeiros da Condessa Mumadona − O seu filho Gonçalvo Mendes doou em 981, ao mosteiro de Lorvão, a quarta parte de Paus e de Lamas, declarando que doava «quanto mihi competit inter meos heredes».

Todos os que em seus escritos se têm referido a este templo de Santa Maria de Lamas, ou do Marnel, supõem que ele tinha seu assento na margem esquerda, onde mais tarde, no século XII, foi reconstruído. Parece que lhes assiste razão. Diz o referido documento de 967: − «Monasterium de Marnelle que vocitant sancta maria de lamas cum suas varzenas...» Ora estas varzenas são aquelas que ainda hoje ficam adjacentes à antiga igreja de Lamas, construída ou reconstrui da em 1170. O mosteiro devia estar junto destas varzenas, pois de outro modo haveria necessidade de as identificar, o que não se fez.

Depois destes documentos, não encontrei outras referências ao mosteiro do MarneI. Este silêncio deve ter uma explicação: foram as incursões de Almançor, o terrível general do califa Hian. Quase todas as cidades cristãs foram tomadas e desmanteladas. Em 987 cai Coimbra e depois, durante mais de doze anos, toda a nossa região foi muitas vezes atravessada pelos seus exércitos, que semearam a destruição por toda a parte. «No meio de tantas desventuras:» − diz HERCULANO / 70 / − «chegou o fim do século X e do reinado de Bermudo lI, falecido em 999. O astro brilhante que alumiara os passos de Pelágio, dos três primeiros Afonsos e de Ramiro II, parece que se imergiu nas mais espessas trevas durante esse longo reinado. Apenas nos desvios selváticos das Astúrias evitaram os cristão a última ruína». A doação do mosteiro de Sever, já referida (P. M. H., doc. CLXXXIV) − diz que os Ismaelitas vieram de Coimbra e devastaram as cidades e lugares santos até ao Douro. Santa Maria de Lamas ficava no caminho que os conduzia ao Norte, e, por isso, não podia escapar à sua fúria. Foi destruída, como foram outras. No testamento de Zalama, em 1018 (doc. CCCXXXIII), diz este: «...edifiquei a basílica de São Miguel no meu quinhão da vila de Recardães...» Edificou-a porque provavelmente tinha sido destruída. Diz DUARTE NUNES DE LEÃO que o Conde D. Henrique erigiu as igrejas do Porto, Lamego e Viseu, destruídas pelos sarracenos.

A reconstrução destes templos não se fez logo que cessaram as invasões. Fez-se lentamente, durante quase dois séculos. As do Porto, Viseu e Lamego só foram levantadas mais de um século depois. A do Porto foi restaurada por D. Hugo com auxílio do Conde D. Henrique e D. Teresa, no primeiro quartel do século XII. Se isto aconteceu à igreja do Porto e outras de grande importância, não pode estranhar-se que Santa Maria de Lamas, ou do MarneI, só fosse reconstruída em 1170.

Em 1050 Gonçalvo e sua mulher Flâmula fazem inventário de seus bens, e entre eles, os que possuíam nas margens do Vouga:

«...Sancta Maria de Lamas mediate integra per suos terminos per ut sparte per illa petra de contensa et de alia parte per illa lagona de sub porto de belli et quomodo diuidit alia parte uauga per cima de illa lacona de sub porto de belli in suo directo diuide cum belli...» (P. M. H., doc. CCCLXXVIlI).

Aqui nos aparece Santa Maria de Lamas. Não se trata, porém, da igreja e seu mosteiro, mas da vila à qual se dão as seguintes confrontações: pelo Norte, Belli − Lagoa de Belli − Rio Vouga; Nascente, com a pedra da Contensa; Sul, com Pedaçães. O mosteiro e templo ficavam entre Pedaçães e a Contensa. A referência a eles seria necessária, se existissem.

Em 1077 a situação era ainda a mesma, pertencendo Santa Maria de Lamas a Pelágio Gonçalves, filho do Gonçalvo anterior. Pelágio fez também inventário, do qual se vê que as confrontações de Lamas eram as mesmas: «... et de auolengo medietate de sancta maria de lamas quomodo diuide cum padazanes per illo sauuqueiro que sta in illa coua de riba / 171 / de uauga et de alia parte per illa lagona de susana per illo bico de sub porto de belli et in suo directo trans uauga et de alia parte per petra de contensa...» (P. M. H.).

Em 1143, Afonso Henriques faz doação a Maria Fromarigues da herdade de padarcanes (Pedaçães) «... de mea propria hereditate que vocatur padarcanes in territorio uauga per illos terminos, per quos plantauit eam pater tuus fromaricus gutieriz, scilicet per illum fontanum baoca et uadit per illum sautum et uenit inde ad correga cerual et uadit per illum barril de triluar et reuertitur ad riuulum MarneI...» (REUTER, Doc.tos da Chancelaria de Afonso Henriques, pág. 179).

 

 
 

A Igreja de Santa Maria de Lamas no seu aspecto actual.

 

Pelas confrontações dadas a esta propriedade de Pedaçães, uma parte, se não toda a zona, onde duas dezenas de anos depois se constituía o passal do novo templo, está incluída nesta propriedade. Se nela houvesse algum templo ou mosteiro, este documento não podia deixar de referir-se a ele.

O silêncio destes dois documentos em relação à igreja do Marnel, a falta de outros que a mencionem, levam-me a acreditar que ela foi realmente destruída nas invasões do Almançor.

Na actual igreja de Nossa Senhora da Assunção de Lamas, na parede da sacristia, há uma lápide com inscrição que foi trazida do velho templo, quando se fez a transferência no decorrer do século XVIII. Diz esta inscrição: Dedicata fuit haec Eclesia de S. Maria de Lamas ab Episcopo Dom Michaelo Colimbriensi, et per manus Veremundi. Ecclesiae / 172 / Presbyteri, sub era 1208 sexto idus Maij, in festivitate sanctorum gordiani et Epimachi, in honorem Sanctae Mariae Virginis, ano ab lncarnatione Dei 1170 regnante apud Portugale Alphonso comitis Henrici et Reginae Theresiae filio, multorum sanctorum Reliquiae in praefactae Ecclesiae Altaribus habentur, de sepulchro B. Mariae Virginis, et Reliquiae Sanctorum Felicissimi, et Agapiti, S. Sebastiani, et Sanctae Marinae et de Sepulchro Domini; et qui scripsit vivat in aeternum.

O bispo de Coimbra, D. Miguel, sagrou esta igreja no ano de 1170, em 10 de Maio, dia dos santos mártires Gordiano e Epímaco, em honra da Santa Virgem Maria, por mãos de Veremundo, presbítero da Igreja, reinando D. Afonso, filho do Conde D. Henrique e da rainha D. Teresa. Nos altares desta igreja existem muitas relíquias dos sepulcros da Virgem Maria e de Nosso Senhor Jesus Cristo, e dos santos Felicíssimo, Agapito, Sebastião e Marinha; e quem isto escreveu viva eternamente.

Ou construção nova ou reconstrução da antiga, este templo já não foi levantado por particulares como coisa sua, mas pelo bispo com a ajuda dos vizinhos, cujas necessidades ia servir.

Se a construção fosse feita por particular, como tantas dos séculos IX e X, não deixaria a lápide de mencionar o seu nome, nem este consentiria na omissão, pondo em dúvida os seus direitos. Creio assim que o templo foi obra colectiva do bispo e do povo. A freguesia levantava-se para a vida política da nação em sua infância.

A inscrição diz-nos ainda mais alguma coisa. Se a igreja foi sagrada pelo bispo D. Miguel de Coimbra, significa isto que tinham cessado os direitos do Mosteiro do Lorvão, ao qual a igreja tinha sido doada em 961 por Enderquina Pala, Como? É natural que os direitos do Mosteiro de Lorvão, depois da passagem de Almançor, se tivessem tornado precários com a destruição do templo, mas esta circunstância não legitimava os direitos do bispo. Na verdade, estes têm mais sólido fundamento, que foi a doação feita à Sé de Coimbra do Mosteiro de Lorvão pelo Conde D. Henrique «.. ..damus supradictum coenobium cum suis adjectionibus cunctis quae ad illud pertinent, tam ecclesiaria quam laicalia, terras, villas culta et inculta, et omnia quae scripta sunt in testamentis ejusdem Coenobi praedicti...».

O novo templo ficava, assim, integrado na disciplina geral da igreja, na subordinação do bispo, em que se manteve até o seu desaparecimento.

Diz a inscrição que a igreja foi sagrada pelo bispo per manus Veremundi. Alguns traduzem estas palavras por «a instâncias de Veremundo» para desta maneira dar a / 173 / sagração como feita directamente pelo bispo. Não me parece que tenham razão. A significação daquelas palavras é mesmo por mãos de, e isto quer dizer que a igreja foi sagrada pelo tal Veremundo, representando o bispo. Igual expressão se encontra noutros documentos, como no da consagração da igreja de S. João de Tarouca por João, arcebispo de Braga, e D. Pedro Sénior, bispo do Porto: − «Era 1207 − 15 kal. Junii − dedicate fuit eclesia ista per manus Joannis Bracharensis Archiepiscopi et Petri 3.º Portugalensis...»

A alma da freguesia, gerada e fortalecida no convívio e desenvolvimento da vila romana, sobreviveu ao fraccionamento desta na reconquista, para agora lhe congregar de novo as partes na configuração geográfica com que havia de atravessar os séculos. O bispo D. Miguel, consagrando a igreja de Santa Maria de Lamas, dizia às povoações vizinhas, já de há muito espiritualmente unidas, que aquele templo lhes marcava o seu lugar no reino de Deus, como as confrontações antigas lhe definiam a posição no reino da terra, conquistado e organizado por Afonso Henriques. Deus. Pátria. Rei.

Não devemos estranhar que a igreja não fosse directamente sagrada pelo bispo. Naquele longínquo passado, os bispos pouco tempo assistiam na sede das suas dioceses. Viviam na corte, onde quer que ela estivesse, acompanhando os reis nas suas frequentes viagens. Em Setembro de 1169, D. Afonso Henriques concedeu foral a Linhares. Não diz a escritura o lugar em que foi feita, mas é de presumir que fosse em Coimbra, onde foram outorgados outros na mesma época. A ela estavam presentes, e confirmam, os filhos do rei D. João; arcebispo de Braga; Gonçalvo, bispo de Viseu; D. Mendo, bispo de Lamego; D. Miguel, bispo de Coimbra; D. Pedro, bispo do Porto; D. Álvaro, bispo de Lisboa; D. Soeiro, bispo de Évora. Isto significa que nesta data todos os bispos de Portugal estavam junto da corte. Em Março de 1170, a corte permanecia ainda em Coimbra, porque nesse mês e ano foi concedida a carta de foral aos mouros forros de Lisboa, Almada, Palmela, Alcazar, com a assinatura do rei e de seu filho D. Sancho, confirmando os 'bispos, e entre eles D. Miguel.

Não teve a inscrição intuitos meramente comemorativos, nem foi provavelmente colocada por iniciativa daquele que a lavrou e aproveitou para solicitar a vida eterna. Ela teve, repito, uma significação mais larga: era a afirmação dos direitos e jurisdição do bispo, que era preciso deixar bem gravada, a fim de evitar discussões futuras. As questões que se levantaram entre particulares, e até entre os próprios bispos, sobre a propriedade de alguns lugares santos, foram numerosas e graves. Documentos de Sever de Vouga e / 174 / Arouca mostram bem a natureza e repercussão que elas tiveram na nossa região.

Muitos fundadores de mosteiros e igrejas conservavam-nos sob seu domínio, para viverem das suas rendas. Os descendentes dos fundadores do mosteiro de S. Pedro de Águas, Garcia Rodrigues e mulher, D. Dordia, temendo a maldição da escritura contra os que se serviam dos bens da igreja em usos profanos e, se tornavam senhores deles, fazem larga doação ao mesmo mosteiro, desistindo de todos os seus direitos (Mon. Lus., pág. 529, vol. VIII).

Os herdeiros dos fundadores ficavam todos com o direito de padroado, que lhes dava especiais regalias, como rações e comedorias. Casos houve, como no mosteiro de Pedroso, em que o número dos padroeiros se tornou tão grande e faziam tais extorsões, que foram necessárias providências régias a fim de evitar que os monges ficassem impossibilitados de atender ao espiritual e temporal.

Os bispos abriram lutas contra este estado de coisas, mas esta luta durou séculos. A inscrição de Lamas é uma manifestação dessa atitude episcopal.

Quem seria este Veremundo que sagrou, ou antes, por cujas mãos foi sagrada a Igreja de Lamas? Se aceitássemos a tradução do Santuário Mariano, isto é, que a igreja fora sagrada a instâncias de Veremundo, a inscrição teria uma significação oposta à que lhe atribuo, pois em tal caso, tudo indicava que o tal Veremundo, presbítero, era o verdadeiro senhor do templo. Mas assim não é, como disse, e este Veremundo foi apenas representante do bispo D. Miguel e seria, porventura, o seu sucessor, que nos aparece sagrado entre 1176 e 1178, falecendo pouco depois.

A igreja sagrada em 1170 conservou-se até ao terceiro quartel do século XVIII, quando foi transferi da para Lamas. Desde muitos anos antes da transferência já os serviços que prestava eram restritos, sendo os actos da vida religiosa da freguesia praticados na capela do Santíssimo, de Vouga, também já desaparecida.

O Padre CARVALHO diz na sua Corografia que o MarneI enchia, passando as águas por cima da velha ponte. Sendo assim, o acesso à igreja, nesta altura, isto é, no fim do século XVIII, devia ficar impedido durante todo o Inverno e ainda parte da Primavera. Para ali chegarem, os fregueses da margem direita teriam de servir-se da bateira.

O que era esse templo sagrado em 1170 e desaparecido setecentos anos depois?

A distância de alguns metros apenas do lugar em que ele se erguia, persiste ainda resto da casa que serviu de residência ao pároco da freguesia. Em volta, as várzeas e montados do passal até hoje não partilhado e em mãos de / 175 / particulares. Escrevendo sobre esta residência, diz PINHO LEAL: «Tem três janelas todas para o lado da igreja e dos outros três lados só tem uma seteira em um deles. É de robusta construção como uma fortaleza. A casa, baixa, com uma pequena torre (ou chaminé?) que sobe até a altura do telhado. A porta de entrada é gótica e parece ter sido de peças aproveitadas de um outro arco mais antigo e maior. Supõem alguns que seria tal casa a residência de Enderquina Pala, ou dos antigos senhores da igreja.»

Esta casa, que foi de dimensões moderadas, parece ter sido construção do século XVII, e nada teve que despertasse a atenção. A torre a que se refere PINHO LEAL seria somente a chaminé da cozinha, que ficava na loja. Foi a residência do pároco enquanto a igreja ali se conservou.

PINHO LEAL chegou mesmo a supor que aquela casa houvesse sido habitada por Enderquina Pala. Em primeiro lugar, Enderquina nunca teria vivido no Marnel; em segundo, ainda que vivesse, não haveria sido naquela casa, em que não se encontrou elemento que atestasse tão grande antiguidade. A entrada gótica, feita de materiais provenientes de outra construção, é contra a suposição de PINHO LEAL, porque o estilo gótico é posterior ao século X, em que viveu Enderquina.

Quanto à igreja, também esta nada tinha de grandioso. Estava ainda de pé quando o P. CARVALHO escreveu a sua Corografia, e muitos outros, antes e depois dele, escreveram sobre MarneI. Nenhum se referiu ao templo, apontando-lhe grandiosidade. É porque a não tinha. A avaliar pela área definida pelos restos dos alicerces ainda existentes, a igreja era mesmo de pequenas dimensões, pouco maior que a ermida do Santíssimo de Vouga. Os materiais que dela foram retirados e aproveitados são comuns, sem quaisquer sinais de imponência. Construída para uma população rarefeita pelas guerras constantes de conquista e reconquista, não tinha necessidade de grandes proporções.

A freguesia de Lamas, a mais pequena do concelho de Águeda, é circundada pelas freguesias de Valongo, Macinhata, Alquerubim e Trofa. Estou certo de que qualquer destas tem hoje mais população do que todas juntas nos meados do século XII. É por isso que não me repugna acreditar a velha tradição de que em tempos muito remotos traziam a enterrar no templo e adro de Santa Maria de Lamas «os defuntos de muito longe, desde Aveiro, de barco, rio acima». Há evidente exagero nesta tradição. Ao tempo em que foi construído o templo, no século XII, é bem possível que algumas vilas vizinhas, ou mesmo relativamente afastadas, ainda não tivessem construído ou reconstruído o seu, e daí o virem a enterrar no adro e nave da nova igreja / 176 / os seus mortos. Acredito, entretanto, que esta tradição tenha as raízes mais à superfície do tempo. Todos os enterramentos se fizeram no adro e dentro da velha igreja até que esta foi transferida. Ora, já nos fins do século XVII o acesso ao templo, em parte do ano, só poderia efectuar-se, repito, para as populações da margem esquerda do Marnel, por barco. É mesmo natural que esta dificuldade e necessidade viessem de muito antes, pois naquele tempo já as grandes inundações passavam por cima da ponte, e para impedir os caminhos de acesso bastaria apenas que elas atingissem dois terços dos olhais. Quer isto dizer que aquela situação apontada pelo P. CARVALHO levou muito tempo a realizar-se e, assim, não será fora da razão dizer que os enterramentos da parte da freguesia feitos por barco, rio acima, vem de muito antes do século XVII, e nesta prática é que se deve ter originado a tradição referida.

Diz Frei AGOSTINHO DE SANTA MARIA, em Santuário Mariano, que a basílica de Santa Maria de Lamas fora templo afamado, com grande frequência de fiéis que vinham de longe trazer as suas oblatas e cumprir, cheios de gratidão e fé, as suas promessas. Não sei onde Frei AGOSTINHO fundamenta a sua informação. De acordo com ela está a tradição.

No século XVII a igreja de Santa Maria de Lamas tinha já perdido o seu antigo prestígio. As relíquias, que fizeram a honra de seus altares, tinham desaparecido. Como, não se sabe. Talvez levadas por particulares e desaparecidas depois que as gerações perderam a memória da sua origem e significação.

No local apenas resta pequena parte dos alicerces, que mais não pouparam o tempo e o alvião. Alguma coisa, porém, mais lá estava e está ainda: é uma ossada, que a enxada impiedosamente remexe, mas não extingue − são as gerações sobrepostas de oito séculos que ali jazem.

Um velho, natural de Vouga, a quem a morte há poucos anos roubou a esperança de voltar à Pátria, contou-me, um dia, esta história:

«Numa noite cálida de Maio de há perto de trinta anos, quando as forças da mocidade guiavam os passos da minha vida e punham diante dos meus olhos o doce jardim da felicidade que ainda agora busco na fúria dos meus sonhos, andava eu alegre e descuidado à pesca nas águas do MarneI. As trovoadas dos dias anteriores tinham feito transbordar os rios e enchido a pateira até perto do ArrabeI. O homem da bateira, com larga experiência de sertelar, conduziu-me para um ponto muito próximo do local do velho templo de Santa Maria de Lamas. Era grande a escuridão e o silêncio, apenas quebrado pelo chape-chape dá água na terra próxima. / 177 /

Local da primitiva Igreja de Santa Maria de Lamas

Passava da meia noite. Sentimos passos descendo a encosta, fenómeno estranho àquela hora naquele lugar; apurámos os ouvidos e os olhos, esforçando-nos por rasgar a escuridão que nos envolvia. Momentos depois acendeu-se uma luz, e depois outra, e outra, até cinco. Ao clarão dela, divisámos cinco vultos, um homem, uma mulher e três mancebos, que, depois de ordenarem as velas em cruz, vestiram sobre as próprias roupas uma espécie de túnica branca, ajoelharam-se e começaram as suas rezas. Ouvia-os distintamente, porque oravam em voz alta. Recordo ainda muitas das suas palavras e súplicas. «Aqui estamos, Santa Maria de Lamas e almas do Marnel, a cumprir a promessa feita por nossos antepassados e escrupulosamente cumprida de geração em geração, como me ensinaram meus pais, que é como estes ouviram dos seus. E manda esta promessa que cada geração aqui venha, ao menos uma vez na vida, trazer o alívio das suas orações às almas penadas daqueles que aqui foram sepultos, e as preces, ó Virgem Santa, para que nos não desampareis e a Vossa bênção nos preserve do mal, como preservou os que começaram esta prática piedosa e os que lhes sucederam até nós. A iniquidade endureceu o coração dos homens que levaram para outra parte o vosso templo, deixando ao abandono este lugar santo onde agora crescem as silvas e os cardos. Debaixo dos nossos joelhos, profanadas pelos pés sujos dos homens sem fé e perturbadas na sua paz sepulcral pelo cantar impiedoso da enxada, estão as ossadas que os séculos não consumiram nem consomem, / 178 / porque esperam o grande dia. Aqui vim com meus pais muitos anos atrás, e aqui venho agora com meus filhos rogar pelas almas que sofrem a ansiedade do julgamento final, em cumprimento do voto feito e que para todo sempre será lembrado».

As orações e súplicas continuaram por mais de uma hora. Terminadas, despiram as roupas brancas, acomodaram-nas num pequeno saco de chita xadrezada e foram-se pelo mesmo caminho por onde vieram. Não me foi possível reconhecê-los, não sei donde vieram. Dalguma freguesia vizinha, talvez de muito longe. Da minha memória não foi possível apagar a lembrança dessa noite. Aquela voz soa ainda aos meus ouvidos como soou naquela hora. Não é a voz dum homem, mas a de todas as gerações que viveram desde o fundo dos tempos sob a protecção de Santa Maria de Lamas. É a lamentação repassada de amargura contra aqueles que, abalados na fé de seus maiores pelas ideologias fatais de nossa idade, levaram do chão sagrado do MarneI as santas imagens e relíquias perante as quais nossos pais lograram a justiça que jamais pode ser alcançada dos homens. Desde quando vinha esta prática não o sei, mas o povo, que em seus ditos sempre tem alguma razão, continua a dizer, que nas noites escuras da Primavera as bruxas vêm adejar e poisar na terra fria do Marnel, onde concertam com os mortos o mal que hão-de fazer aos vivos por suas maldades.
«Aqui, tão longe da Pátria, já gastas as forças pelos ásperos trabalhos duma vida que não conheceu descanso, mas ascendido o entusiasmo da fé pela nostalgia enervante, também aquela voz me chama a todos os momentos a levar ao MarneI o ardor das minhas orações pela alma de meus antepassados que ali ajudaram a lançar as colunas da minha Pátria, por cuja segurança vela ainda Santa Maria de Lamas. Nesta hora em que os homens, fazendo-se inimigos de Deus e perdida toda a confiança em si, não sabem o que querem, chocam-se e destroem-se na luta vã de procurar o caminho perdido, Santa Maria de Lamas escuta-me e Deus há-de permitir que eu volte à terra bendita do MarneI e lá fique para todo o sempre.»

Mas Santa Maria de Lamas não escutou a sua prece.

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Nas informações de 1721 dadas pelo Pároco LUÍS ARANHA COUTlNHO(1), lê-se: «Não consta haja na igreja matriz desta Freguesia, nem capelas dela, alguma relíquia insigne ou que por tal se venere manifestamente...» / 179 /

Nesta data, a igreja estava ainda no velho local. É o que nos diz o mesmo Pároco: «Há nesta freguesia, além da igreja matriz, quatro capelas, todas do povo desta Freguesia, sem serem de instituidores particulares. Uma delas, situada na vila de Vouga, com a veneração da imagem de S. Martinho Bispo, em a qual está o Sacrário do Santíssimo, em razão de não poder estar ria igreja matriz, por esta estar em um ermo e deserto situada».

A razão da transferência do sacrário para a capela de S. Martinho, em Vouga, feita em data desconhecida, não foi somente a de ser ermo o lugar em que estava a igreja, mas ainda, e principalmente, a do difícil acesso, sobretudo nos meses de Inverno. Já anteriormente disse o P.e CARVALHO, cuja obra é dos primeiros anos do século XVIII, informa que as águas no Inverno cobriam a velha ponte, tornando-a intransitável; e sendo assim, a igreja ficava cercada de água, com excepção do sector Este-Sudeste. Também é de crer que o templo já então não estivesse em boas condições de conservação e asseio.

O sacrário conservou-se na capela de Vouga durante muito tempo, creio que mesmo ainda depois de feito o corpo principal da igreja nova. Ali mesmo se teriam feito enterramentos, antes de abandonada a igreja velha. As ossadas que aparecem no chão da capela parecem indicar que assim foi.

A construção da nova igreja ficou resolvida em 1771, escolhido o local da Cruz, ao cimo da quinta que ainda hoje conserva este topónimo. A escolha do referido local deu ensejo a discussões que chegaram a irritar os ânimos.

Requerida a licença ao Bispo de Coimbra pelo Prior dá igreja, Domingos de Carvalho, estava a capela de N. S. da Assunção em condições de servir ao culto em 1776. Porque a fizeram Igreja de N. Senhora da Assunção, esquecendo a velha invocação de Santa Maria de Lamas, ou do MarneI, não o sabemos. Era uma simples capela, e como esta não satisfazia a todas as exigências do culto, parte deste continuava a praticar-se na capela de Vouga.

Esta situação manteve-se até meados do século XIX.

A Junta de Paróquia, em sessão de 5 de Maio de 1850, resolveu pedir à Câmara Municipal autorização para obter os meios necessários às obras da igreja, que, diz a acta, «bem pode dizer-se que é aquela do Concelho que se acha em pior estado».

Em sessão de 9 de Junho do mesmo ano, resolveu a Junta, para satisfazer o pedido do Governador Civil, mandar ao Administrador uma especificação das obras necessárias, e seu orçamento. Foram peritos os carpinteiros Manuel Francisco Corga, de Brunhido, e António Martins, de Vouga. / 180 /

Eis o orçamento: Tribuna e altar, 120.000 reis; paredes da capela-mor, 60.000 reis; tirantado para a mesma, 9.600 reis; frechais, idem, 1.400 reis; pregos, 3.200 reis; telha, 7.200 reis; forro de castanho, 14.400 reis. Total, 215.800 reis.

Em sessão de 29 de Agosto resolveu-se oficiar à Câmara e Governador Civil, pedindo uma resposta sobre as obras e orçamento.

Tal resposta nunca chegou.

Em 22 de Março de 1854, o Regedor, José Rodrigues de Avivar e Melo, mandou convocar uma sessão extraordinária da Junta, na qual disse:

«...que tinha mandado convocar extraordinariamente esta Junta para deliberar sobre o seguinte que propunha para se deliberar desde já: Se a igreja desta Freguesia estava ou não estava nas circunstâncias de nela se celebrar o culto divino, e se se pode ou não conservar a Freguesia, e se deve ser suprimida ou não suprimida. Sobre o que deliberou esta Junta, por maioria, que devia ser suprimida. E sendo vencido nesta parte o Reverendíssimo Presidente, José Marques Vidal, por ele foi logo dito que a dita igreja está nas circunstâncias de nela se poder com decência celebrar o culto divino e que se ela precisa de alguns consertos, como realmente precisa, a maior parte do povo desta Freguesia tem declarado, publicamente, que se obriga a fazer nela os reparos essencialmente precisos...» E assim ficou sem efeito a resolução tomada.

Em 1855, foi feita uma vistoria pelo Administrador do Concelho, cumprindo ordens do Governador Civil, e a propósito desta, em sessão de 22 de Março, diz o referido José Rodrigues de Avivar e Melo: «Agora, para melhor corroborar a informação que o mesmo Senhor Administrador houver de dar a tal respeito, proponho que a Junta deliberasse como entendesse sobre o exposto, e bem assim se convinha ou não a supressão da Freguesia... a Junta deliberou por maioria o seguinte: que esta igreja carecia de grandes consertos e obras novas, que demandam muitas despesas; que não tinha altar-mor, nem trono, nem tribuna onde se expusesse o Sacramento, nem os precisos paramentos... que convinha a suspensão dela. Desta deliberação ordenaram que o Secretário desse cópia ao Regedor desde já».

O Prior, vencido, pediu que se adiasse a decisão para o dia 2 de Abril, no que foi atendido. A Junta, porém, só voltou a reunir-se em 2 de Fevereiro de 1856, mas nem nesta nem nas seguintes sessões tratou das obras da igreja. O Prior continuava o mesmo, mas o Regedor não voltara às sessões.

Na sessão de 2 de Fevereiro foi lido um ofício-circular do Presidente da Câmara, que dizia o seguinte: «A Câmara Municipal, querendo levar a efeito a lei e mais ordens do / 181 / [Vol.  XIII - N.º 51 - 1947] Governo de Sua Majestade, que manda construir cemitérios em todas as freguesias, não só para fazer acabar a velha e repreensível indecência de fazer da Casa do Senhor depósito de carne podre, mas para tirar dentre nós esse foco de epidemias e mortalidades, que tão nocivo se torna, agora principalmente, que nos temos achado a braços com o terrível
flagelo da cólera-morbus».

E a Junta passou a tratar do cemitério e conserto de caminhos, até que em sessão de 20 de Janeiro de 1858 foi autorizado o pagamento do forro da igreja com o produto de uma terra nas Arrotas de Cima, desapropriada para a nova estrada real.

Em 1862 são feitos o coro e torre.

Em sessão de 2 de Março de 1868 resolveu a Junta pedir um auxílio à Comissão da Bula da Santa Cruzada para as obras da igreja e paramentos.

Em Novembro recebeu a Junta o auxílio de 100.000 reis. Com este auxílio e uma subscrição voluntária fizeram-se a capela-mor e outras obras...

Em sessão de 30 de Março de 1873 disse o Pároco: «...que, conquanto se tenham feito algumas obras importantes, como a nave e capela-mor nesta igreja, à custa de subscrição voluntária dos fregueses, ainda assim eram precisas outras e importantes obras...» E pedia que se oficiasse ao Conselho do Distrito e Câmara a pedir autorização para uma derrama da quantia «que for orçada para pintura e douramentos da tribuna da capela-mor e de um retábulo que há-de ser colocado no altar do Santíssimo Sacramento; soalho novo e barrotamento do pavimento da igreja; guarnição de paredes interna e externa do templo; ligamento da capela-mor, conserto da casa da sacristia...» E logo nesta sessão se nomearam peritos para os orçamentos, que foram, para o da pintura, Manuel António dos Santos e José António dos Santos, do Beco, e José Luís, da Mesa; para o da alvenaria e carpintaria, José de Almeida Vidal, José de Almeida Vidal Júnior, do Toural, e Manuel Ferreira da Cruz, de Pedaçães. A este tempo era regedor Patrício Marques, e pároco encomendado António Ferreira da Rocha.

Em 1875 as obras do altar-mor estavam prontas e foram executadas pelos artistas José Vidal, entalhador, de Albergaria, e José António dos Santos, dourador, do Beco.

Assim se gastaram 100 anos na construção do pequeno templo.

AUGUSTO SOARES DE SOUSA BAPTISTA

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(1) ROCHA MADAHIL, Arquivo do Distrito de Aveiro, vol. 111, pág. 317.

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