Luís Gomes de Carvalho, Memória descritiva da abertura da barra de Aveiro, Vol. XIII, pp. 58-69

PRIMEIRA PARTE

DA MEMÓRIA DESCRITIVA

Estando empregado em serviço de S. A. R. .na cidade do Porto, recebi em Janeiro de 1802 do Ex.mo D. Rodrigo de Sousa Coutinho, depois conde de Linhares, um aviso em data de 2 do referido mês e ano, pelo qual este ministro me comunicava que S. A. R. havia dado as ordens ao superintendente da barra de Aveiro, para a continuação das obras da mesma barra, ouvindo sobre isso ao coronel, depois brigadeiro Oudinot. Neste aviso nos recomendava a ambos que lhe remetêssemos com a possível brevidade um extracto das nossas ideias sobre a continuação da dita obra, e daquelas que julgássemos poderem empreender-se sem maiores despesas por então, mas que pudessem depois aumentar-se proporcionalmente até se conseguir a completa execução das mesmas obras: e que S. A. R. havia de ter em muito particular consideração os trabalhos que assim eu como o dito brigadeiro meu sogro fizéssemos subir à sua real presença sobre um objecto tão importante de que, dizia ele, a nossa inteligência e zelo prometiam os melhores resultados. (Veja-se o doc. n.º 2).

Este régio aviso que recebi, e comuniquei logo a meu sogro, com quem vivia juntamente, foi o primeiro documento por onde soubemos que novamente se tratava da empresa tantas vezes começada, e outras tantas abandonada, isto é, da abertura da barra de Aveiro; ele era da mesma data, e expedido pela mesma repartição por onde o foram as primeiras ordens dirigidas para Aveiro ao superintendente da mesma barra, às quais o mencionado ofício se referia. Em consequência do referido aviso e ordens, nós partimos ambos da cidade do Porto no dia 21 de Janeiro do dito ano para cumprirmos o que S. A. R. nos ordenava, e chegámos a Aveiro no dia 22, onde já nos esperava o superintendente, então provedor da comarca, e depois desembargador do senado, João Carlos Cardoso Verney(1), que fazendo-nos a mais obsequiosa / 59 / recepção e hospedagem, nos prestou por outra parte todos os auxílios e quanto precisámos, com tanta pontualidade que logo no mesmo dia começámos as nossas primeiras averiguações, e nos seguintes os trabalhos de planteações, nivelamentos, e observações, sobre as quais havia de ser depois calculado o plano para as obras da barra da mesma cidade, que da parte de S. A. R. se nos pedia, e cada um de nós devia apresentar, extratando e remetendo o resultado das nossas respectivas ideias.

Esta cidade está situada em 40º 38' 40" de latitude norte, e 10º 58' 12" de longitude contada do 1.º meridiano que passa pela ilha do Ferro, segundo o excelente Roteiro das Costas de Portugal, que devemos ao infatigável zelo e conhecidos talentos de M. M. Franzini, que nesta parte se conformou com a série da triangulação e escrupulosas observações do sábio astrónomo português F. A. Ciera meu mestre, e seu hábil colaborador C. F. de Caula; está colocada perto e a este da actual foz do Vouga, ou Nova Barra, quase no meio da costa do mar da província da Beira, ou proximamente a distâncias iguais do Porto, e Figueira ou das fozes do Douro, e Mondego; e quase no meio também da margem oriental de uma ria imensa que se estende de Ovar até Mira pela extensão de 9 léguas, paralela à costa do mar, em cuja ria entra o Vouga 2 léguas ao norte da mesma cidade, que pelo outro lado fica circundada a uma légua de distância, isto é, ao nascente e sueste, pelos rios Vouga, Águeda, e Cértima, e seus ricos, amenos, e deliciosos campos; de sorte que Aveiro fica em uma espécie de península agradavelmente terminada deste lado, tendo pelo norte e poente a grande ria coberta de marinhas de sal e muitas ilhas; oferecendo um porto dos mais seguros e extensos da Europa, e tão vasto que nele cabem muitos milhares de navios, os quais mesmo / 60 / chegam até às pirâmides que terminam o cais de Aveiro. Um largo esteiro derivado de cale, fundo onde chegam os navios, e guarnecido de um elegante cais e passeio de um e outro lado, e por onde os barcos entram e saem à vela carregados, divide a mesma cidade em duas partes, ou grandes 'bairros, cada um dos quais contém duas freguesias, que são comunicadas por duas pontes de pedra, o que lhe dá uma forma pitoresca muito agradável; muitos viajantes, e estrangeiros lhe têm dado o epíteto de Veneza, e ao país o de Holanda portuguesa. Um longo areal que não chega a 1/4 de légua de largura termo médio, e se estende quase norte sul, separa desde Ovar até Mira a ria do oceano, em cuja costa se contam seis estabelecimentos de pesca de sardinha com as redes de arrastar chamadas artes, ramo sumamente importante. Todo o país vizinho, e quanto cerca Aveiro de perto, e a grandes distâncias, é abundantíssimo em vinhos generosos e muito estimados na América e países do norte, conhecidos debaixo do nome de vinhos de Anadia; abunda em toda a sorte de grãos, em azeite, frutos, gados, madeiras, etc. e é sem contradição um dos mais ricos, mais povoados, e mais belos países de Portugal, e talvez do mundo. Os ventos nortes mui frequentes, e que sopram rijamente na primavera e estio, são às vezes incómodos; mas eles por outra parte lhe procuram um estio livre dos ardores do calor próprio do nosso clima nessa estação; e o seu assento quase igual, e pouco superior ao nível do mar faz que não seja muito fria no inverno e que o outono seja mais agradável e temperado.

Lançando as primeiras vistas sobre esta cidade tão liberal'mente favorecida pela Natureza, e que tanto havia figurado ainda nos séculos XV, e XVI como porto marítimo, e povo mercantil, pois só para a especulação da pesca do bacalhau no banco da Terra Nova chegou a armar alguns anos 60 navios, e contava um total de mais de 150 embarcações próprias; que contava também 2.500 fogos e 12.000 habitantes pelas mesmas épocas, e que havia sido tão opulenta e tão rica; nós não vimos nem sequer um iate que restasse de uma marinha tão florescente e tão numerosa; dos seus 12.000 habitantes apenas restavam uns 3 para 4.000 no maior abatimento, quase todos miseráveis, e doentes grande parte do ano; a cidade estava destruída na mesma proporção da decadência da sua população, e importância, e sem comércio algum. A barra que devia ter sido boa e muito capaz, pois que uma grande marinha a havia frequentado, estava entupida pelas areias, e só tinha cinco palmos de água na baixa-mar; a estagnação e retrocesso das águas do Vouga não só tinham abismado as marinhas de sal, e uma grande parte dos campos do mesmo rio, e alguns bairros da cidade mais baixos; mais faziam com que o mal / 61 / progredisse, e que novas submersões ameaçassem sucessivamente os mais ricos campos e belas porções desta comarca.

Confesso que à vista de um semelhante espectáculo nem distrair podíamos a impressão dolorosa que nos causava o espantoso contraste que fazia o estado da nulidade a que víamos reduzido Aveiro, com o que esta cidade havia sido dois séculos antes, segundo as descrições que dela fizeram Freire, e Carvalho nas suas Cosmografias, e Pimentel na sua Arte de Navegar; e segundo o confirmam todos os factos do mais notório conhecimento no país, e sabidos por toda a Nação.

Passando depois a examinar com todo o cuidada o estado da questão importante que nos estava confiada, e que só podia pôr termo a tantos e tão incalculáveis males, e evitar o seu futuro progresso, e enfim salvar e regenerar um país inteiro, e os povos que faziam uma parte tão importante do reino, nosso primeiro cuidado foi examinar a natureza, localidade, e estado das obras intentadas, e começa das segundo constava da história das tentativas feitas em diversas épocas, e reinados, referidas já na Introdução; porém qual não foi a nossa surpresa quando examinando tudo nada achámos e nada vimos de obras começadas noutro tempo com o fim de abrir uma barra!

De todas elas apenas restava uma pouca de pedra, a maior parte já submergida pelas areias, com uma certa direcção M 13, vestígios da tentativa malograda logo abaixo da Vagueira, começada em 1780, e abandonada em 1783 (docs. n.os 4, 6 e 7 da Introdução) com o fim parece de segurar ali a barra para que mais não caminhassse para o sul, o que não conseguiram; e aonde mesmo a barra seria já pouco vantajosa, ainda quando se tivesse ali podido segurar, ou abrir de novo; e que portanto nada havia a continuar sobre obra alguma começada, nem havia nada a aproveitar de tudo quanto se tinha feito em Aveiro com o fim de abrir uma barra, senão dessa pouca pedra espalhada por M 13, abaixo da Vagueira, e que se pudesse aproveitar, desenterrando-a, como de uma pedreira, para a transportar depois ao local onde conviesse, e se assentasse de fazer a obra capaz de abrir uma barra e de regenerar Aveiro, restaurar o seu porto, e todo o país abismado; e que era portanto necessário novo plano tanto para a escolha do local como para expor os novos e convenientes métodos para realizar a abertura da nova barra, e de uma barra permanente que produzisse os fins desejados e ordenados (no doc. n.º 2); e além disso se obtivesse uma barra profunda e boa para navios; isto mesmo já havia sido reconhecido por S. M. muito tempo antes (veja-se o doc. n.º 9 da Introdução). De tudo isto demos conta a S. A. R. em ofícios separados, e concebidos segundo as ideias combinadas, e as que cada um de nós havia feito mais apuradas da grande questão que ocupava certamente todos os nossos pensamentos. Ao que eu / 62 / tive a honra de expor ao mesmo senhor nesse tempo sobre este assunto importante, e que se verá expendido na seguinte Memória, foi S. A. R. servido fazer expedir os avisos n.os 12, 13 e 15, nas datas de 29 de Abril, 3 de Junho, e 6 de Setembro de 1802 pela repartição do Ex.mo Conde de Linhares. Pelo primeiro destes avisos S. A. R. foi servido mandar-me expressar a sua régia confiança relativamente aos meus trabalhos na comissão da barra de Aveiro, esperando que eles corresponderiam perfeitamente à sua expectação, o que o dito conde igualmente desejava ver realizado, assim como o poder brevemente levar à real presença do mesmo augusto senhor o mapa e plano para a nova barra, e certificar a S. A. R. de que por meio das minhas bem dirigidas operações (dizia ele) veriam estes povos mais apartados de si todos os males que dantes os afligiam; cuja felicidade era o que mais tocava o paternal coração de S. A. R. E pelo outro aviso n.º 14 S. A. R., fazendo-me a honra inapreciável de louvar o meu zelo, de novo me recomendava a continuação da minha actividade a bem do real serviço, e dos povos desta comarca; e finalmente pelo documento n.º 15 S. A. R. se mostra satisfeito pelos meus trabalhos e serviços relativos a esta empresa da nova barra de Aveiro, até fazendo-me generosas promessas das suas régias recompensas para quando se conseguisse o fruto dos meus trabalhos, de que o mesmo senhor se achava bem informado, segundo a frase do mesmo aviso (doc. n.º 15) já citado.

Durante o tempo em que levantava a planta da ria e do país, eu me entregava, como disse, às mais escrupulosas observações e indagações, para descobrir a origem e a causa geral dos males que pesavam sobre Aveiro, e poder depois formalizar com segurança o plano de que me achava encarregado, juntamente com meu sogro, e que adiante se verá; de cujos progressos dava pela minha parte regular conta a S. A. R., como disse, e consta dos citados documentos (n.os 12, 13 e 15), que muito me recomendava a brevidade, e a remessa do meu plano; o que bem mostra, além da confiança honrosa com que era servido honrar-me, qual era o empenho do mesmo senhor e do seu incansável ministro o Ex.mo Conde de Linhares para acelerar os trabalhos relativos ao projecto da regeneração física de Aveiro. Foi para este digno objecto dos seus paternais cuidados, que S. A. R. fez o generoso donativo de todas as muralhas do recinto da fortificação antiga que circundava parte da cidade de Aveiro, e ordenou que fossem demolidas, e a pedra resultante empregada nas obras novas para a nova barra. Veja-se o documento n.º 16, cópia da provisão expedida pela Junta dos Três Estados em 1802 à superintendência da mesma barra, que se acha registada nos livros da mesma, cuja cópia dou aqui; mas não / 63 / a darei de muitas outras ordens régias a que me referirei ao diante quando elas forem privativas da superintendência, cujo ramo económico apesar da sua importância e nexo, não faz propriamente o objecto, nem cabe nos limites deste escrito, cuja matéria se limita ao meu ramo, e versa sobre os planos e execução hidráulica das obras. Contudo algumas vezes farei menção de alguns (assim como já tenho feito na Introdução, e acabo de fazer nesta I Parte) quando tiverem um maior nexo ou analogia com ele, ou de que for preciso ou mais conveniente dar a cópia.

A estação invernosa e contrária aos trabalhos de campo, para levantar o mapa da ria, e para as muitas observações, que era necessário fazer e repetir em diferentes tempos e diversas circunstâncias, se prolongou bastantemente naquele ano, de maneira que só em Junho do mesmo ano de 1802 (e o mesmo aconteceu a meu sogro) nos foi possível de ter a honra de remeter os nossos planos a S. A. R. como consta do documento n.º 14; o meu foi desenvolvido na Memória que então fiz e agora vou dar por cópia, assim como a do mapa da ria (fig. 1) e um perfil (fig. 2) que o acompanhou, e a que tudo se referia para uma perfeita inteligência. Mas por isso mesmo que a conclusão dos planos se demoravam por necessidade, e a estação própria para tais trabalhos estava chegada, se tinham começado com o consentimento e aprovação de S. A. R., no fim de Março antecedente alguns trabalhos preparatórios e de menos momento enquanto se não concluíam, e apresentavam os ditos planos, e enquanto não fossem aprovados pelo mesmo senhor; o que efectivamente
aconteceu em 5 de Julho desse ano como se vê do documento n.º 14, pelo qual consta que o mesmo augusto senhor honrou com a sua régia aprovação os nossos planos, isto é, o que eu poucos dias antes havia remetido, assim como o que pela mesma ocasião disse sobre o mesmo assunto o brigadeiro meu sogro; dignando-se outrossim S. A. R. fazer-nos ao mesmo tempo, e no mesmo ofício, a honra de nos encarregar novamente a ambos da execução dos mesmos planos, e de lhe irmos dando conta de tudo o que fossemos observando; em consequência do que se começaram trabalhos importantes, que continuaram e progrediram, como se dirá na II Parte. Permita-se-me notar aqui que S. A. R. fez tanto apreço dos nossos planos que, depois de mandar cópias para a secretaria de Estado dos Negócios da Fazenda, e para a Sociedade Real Marítima e Geográfica, guardou os originais no seu régio gabinete como se vê do citado documento n.º 14.

Segue-se agora a cópia da Memória e plano que fiz em 1802, que S. A. R. aprovou, que se acha já executado, e que hoje faz quase toda a matéria desta I Parte, como eu o havia anunciado na distribuição que fiz deste escrito.

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(1) Este digno magistrado, que infelizmente a morte roubou já ao serviço público, cujo notório zelo, desinteresse, inteligência e honra, S. A. R. tem reconhecido pelos elogios e louvores que lhe mandou dar no seu real nome, como consta de muitos avisos que se acham registados nos livros do juízo da Superintendência da Barra de Aveiro; e até pelas honrosas recompensas, e promoções com que em poucos anos o mesmo senhor o elevou na carreira da magistratura; este digno magistrado fez tudo quanto lhe foi possível para me prestar nas precisas épocas quanto precisei, e quanto dele dependia para executar os planos, e realizar a empresa que me estava confiada; sem a sua inalterável constância, actividade, e prontidão em auxiliar-me certamente não bastaria a minha perseverança na espinhosa série dos trabalhos que precederam e prepararam um resultado tão feliz, e para que ele certamente influiu muito. É com o maior prazer que eu cumpro hoje um dever a que ele tem incontestáveis direitos; e se não é a amizade que nos ligou estreitamente, e que tanto concorreu para o sucesso da mesma empresa, à testa da qual 8 anos nos achámos nos nossos ramos respectivos animados sempre do mesmo espírito, e dos mesmos desejos de chegar ao grande fim, quem me convida hoje a fazer dele honrosa menção, também não era de um amigo, e fiel companheiro de quem ele havia receber nesta ocasião a injustiça de esquecer os seus serviços e o seu nome..

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