A meu irmão João
A meu cunhado, Baltar Henriques Martins
Ao meu amigo Jaime da Rocha
Valente
A
ROMARIA da «Senhora da Saúde»
−
assim sucintamente a designa o povo
−
é
uma das mais antigas do nosso distrito, a mais típica de todas e aquela
que, por certo, maior número de crentes e de curiosos arrasta.
É impossível, à falta de documentos, fixar-lhe o nascimento; mas não
será arrojo o afirmar que a afluência de crentes terá começado em época
anterior ao século XVIII. Ficou-nos essa convicção após a leitura da
monografia do Sr. P.e JOAQUIM MANUEL TAVARES
−
«Para a História do Santuário
de Nossa Senhora da Serra»
−, publicada em 1941,
da qual tomámos para este artigo todas as informações respeitantes à génese e desenvolvimento do culto da Senhora da Saúde. O
autor julga do século XVII várias quadras populares, alusivas a esse
culto. Não é, porém, fácil fixar a data em que foram compostas e caíram
no ouvido do povo. Devem ser posteriores, e não é natural que todas
hajam aparecido ao mesmo tempo. Seja como for, aqui as transcrevemos:
A Senhora da Saúde
o caminho pedras tem;
Se não fossem seus milagres,
já lá não ia ninguém.
A Senhora da Saúde
tem um sobreiro à porta;
dai saúde à minha gente,
que do sobreiro não me importa.
|
A Senhora da Saúde
−
vê-la?
−
lá vai no andor;
viradinha para o mar,
louvado seja o Senhor.
A Senhora da Saúde,
no alto de Castelões,
donde ela está bem vê
no mar as embarcações.
|
/
305 /
A Senhora da Saúde
deita fitas a voar,
branquinhas e amarelas...
Todas
vão cair ao mar.
A Senhora da Saúde
tem um filho serrador,
para serrar a madeira
para o altar do Senhor.
|
A Senhora da Saúde
−
vê-la?
−
lá está no altinho.
Quer chova, quer faça sol,
sempre lá corre um ventinho.
À Senhora da Saúde
p'ro ano lá hei de eu ir,
ou solteira ou casada,
ou criada de servir(1).
|
A primitiva ermida, cuja construção ascende, portanto, a época remota,
ficava no lugar de Gestoso, da freguesia de Castelões de Cambra, e
supõe-se que consistia num pequeno nicho onde foram colocadas as imagens
de Nossa Senhora e de Santo António, ainda hoje existentes. A esta
ermidinha se refere o Livro das visitas pastorais daquela
freguesia, em passo datado de 26 de Novembro de 1753 A primitiva ermida,
cuja construção ascende, portanto, a época remota, ficava no lugar de
Gestoso, da freguesia de Castelões de Cambra, e supõe-se que consistia
num pequeno nicho onde foram colocadas as imagens de Nossa Senhora e de
Santo António, ainda hoje existentes. A esta ermidinha
se refere o Livro das visitas pastorais daquela freguesia, em
passo datado de 26 de Novembro de 1753(2).
Mercê da afluência de romeiros, cada vez maior, foi edificada, em
1782, ermida mais ampla, a duzentos metros do citado lugar, num planalto
da serra do Arestal, donde se descobre, para o lado do mar, deslumbrante
panorama que deve ser dos mais belos do nosso país. Dista uns seis
quilómetros da igreja de Castelões.
No mesmo local e aproveitando-se parte desta ermida, foi construído,
entre 1929 e 1935, o actual santuário (fig. 1), devido ao autor da
monografia a que nos estamos reportando, o qual, então pároco de
Castelões e encarregado de velar também por tudo quanto respeitasse
ao culto da Senhora da Saúde, promoveu a erecção da nova igreja, o
embelezamento do local e outros importantes melhoramentos. |
|
Fig.
1 |
Escreve o Sr. P.e JOAQUIM TAVARES: − «O local do santuário
conservava-se (em 1919) tal qual era em 1782 − um plano em volta da
capela, com rochas aqui e além, um caminho,
/ 305 /
que dava de Gestoso para o
lugar de Decide e outro para a freguesia e a uns sete metros à frente da
ermida, tojo e monte. Terreno baldio, isto é: sem dono: Nada se tinha
feito para melhorar o local, a não ser um pequeno adro
com 34,25 x 17,45 metros no ano de 1895»(3).
A capela da Senhora da Saúde (1782) estava orientada norte-sul; tinha
para o sul a porta principal e media de comprimento 19,50 metros e de
largura, na frente, 6,87. Na frente dela, havia um cabide, seguro por
colunas de pedra sobre uma parede, com as dimensões de
7 e 5,72 metros. A frente era toda de cantaria(4).
O actual santuário «mede 30 metros, por dentro. A parte feita de novo
12,70 x 7,10 metros, e a velha capela, que foi toda aumentada, ficou
servindo de capela-mor e sacristia. A torre mede 28 x
4,90 metros, recebendo luz por onze janelas»(5).
O Sr. P.e JOAQUIM TAVARES informa-nos pormenorizadamente do
trabalho que despendeu para a transformação do local da romaria. Diz
ele: − «Uma humilde ermida, onde não tinham cabido os seus devotos; em
volta, tojo e mato. A pouca distância, a cento e cinquenta metros
aproximadamente, entre o tojo, um cruzeiro secular, de pedra, já
carcomido e bem sacudido pelos ventos e tempestades; para lá, um caminho
de 1,5 metros de largo por entre tojo, cheio de pedregulho,
trilhado pelos joelhos dos peregrinos que cumpriam as
suas promessas»(6). E continua: «Há mais de cinquenta anos, como filho desta terra,
que conhecíamos a romagem e o local visitado por milhares de romeiros;
local que não tinha nada de conforto e insuficiente para receber tantos
hóspedes que do Marão ao Buçaco e da Figueira da Foz à Póvoa do Varzim
aqui vinham e passavam o dia e a noite de 14 para 15 de Agosto, sem
terem onde pernoitar e se recolher, mesmo quando nesses dias havia
chuvas e frio. Víamos os voventes que andavam cumprindo as suas
promessas a serem calcados, embaraçados pelos romeiros, em virtude de o
local ser estreito para acumular tanta gente e a ermida insuficiente
para receber os fiéis que iam depor as suas esmolas aos pés da Virgem,
acotovelando-se no meio da maior desordem. Quase poderemos dizer que as
promessas não se podiam cumprir. Era tal a confusão entre o profano e o
religioso, que quase se confundia tudo no profano». E então − prossegue
o autor − «começámos por conseguir espaço suficiente para o religioso,
alargando o adro da capela, o qual ficou com 143,10 x 27,40 metros de
largo, com cinco patamares ligados
/ 307 /
por escadarias. Dentro deste adro, e a trinta e dois metros à frente da
capela, havia um pequeno fontenário onde se acumulavam os romeiros,
embaraçando os voventes. Mudou-se para fora do adro e com espaço
suficiente para não acumular o povo. Mudou-se o cruzeiro para local onde
se visse da capela; à distância de cento e quarenta e seis metros,
construíram-se três avenidas, desde a capela ao cruzeiro, devidamente
separadas por muros, para por elas os voventes cumprirem as suas
promessas, sem serem embaraçados e atropelados. Nestas avenidas ficam
oito colunas em cimento armado para receberem as estátuas dos quatro
Evangelistas, Cristo Rei, a Virgem Rainha, S. Pedro e S. Paulo. Ao sul
do adro, um lago, que terá no centro uma coluna para receber a estátua
de Nossa Senhora da Boa Viagem, e à entrada do sul tem quatro colunas
para receber as imagens da Fé, Esperança, Caridade e S. Miguel. A capela
foi toda restaurada: apenas se conservou a capela-mor e o altar.
Começaram as obras em 26 de Março de 1929, em 15 de Fevereiro de 1931
benzemos a capela-mor, e em 13 de Agosto de 1936 é toda benzida pelo Sr.
bispo do Porto, D. António Augusto de Castro Meireles»(7). E conclui: − «Faltava-nos afastar a parte profana para onde não
pudesse embaraçar a religiosa. Para isso, tínhamos de descongestionar a
multidão que se aglomerava em volta da capela, cujo espaço teria um
hectare, fora deste só tojo e mato. Abriram-se ruas através desse tojo e
mato, para os romeiros terem onde passear. Havia dois coretos, um de
cada lado da capela, onde duas filarmónicas faziam ouvir as notas
musicais, que ainda mais ajuntavam os romeiros. Mudámo-los, construindo
outros à distância de cento e cinquenta metros para o poente. Como não
houvesse local apropriado, senão em volta da capela, para a mocidade se
divertir, perturbando com o barulho os actos do culto, mandámos arrotear
e arrancar todo o tojo no largo onde estava o velho cruzeiro e que
ficava fronteiro aos coretos, para aí, a cento e cinquenta metros da
capela, dar asas à folia e à mocidade que brinca, sem sentir o mal da
poeira e o sol ardente que lhe cresta as faces e lhe queima a alma, para
mais tarde vir de joelhos, trilhando o pó que fez, pedir a saúde Aquela
que é o refúgio dos pecadores.
Não havia habitações (só no lugar de Gestoso, a trezentos passos do
local). Construímos uma para nós e para recolher algum romeiro que se
achasse doente durante a viagem, a qual foi estreada no próprio ano em
que a mandei construir, pois os dois dias da romagem foram de chuva e
frio como não havia memória. Não havia pensão onde os romeiros
/ 308 / pudessem limpamente obter refeição (quase todos traziam farnéis).
Mandámos construir casa onde os mais exigentes pudessem cometer o quinto
pecado mortal. Tudo isto, para ir civilizando a parte profana e para os
que viessem de novo desfrutar as paisagens que daqui se avistam não
levassem a impressão, que muitas vezes tivemos, que a
romagem da Senhora da Saúde era um Carnaval em Agosto»(8).
*
* *
Pelo menos há cinquenta anos, os romeiros acorrem à Senhora da Saúde nos
dias 13, 14 e 15 de Agosto. De ordinário, os que vão no dia 13 regressam
em 14, e os que vão no dia 14 voltam para casa em 15. Os dois primeiros
dias são para os de mais longe − para os «marinhões» (Murtosa, Veiros),
para os de Estarreja, Pardilhó, Avanca, Válega, Loureiro, etc.; o dia 14
para os romeiros de mais perto − Oliveira de Azeméis, Vale de Cambra e
Macieira, Sever do Vouga, etc.; ó último dia é o da festa destinada
propriamente aos povos da região.
É espantosa a resistência dos romeiros da beira-mar, que fazem todo o
percurso, de cinco, seis e mais horas, a pé, a gente moça sempre a
cantar e a dançar, aos magotes, grande parte do tempo através da Serra,
por árduos e íngremes caminhos de cabras, afrontando, com incrível
estoicismo, já as calmas, já os ventos e chuvas. Saem de casa alta noite
e vão amanhecer já à vista, bem próxima, da capela da Santa; os da
Murtosa, Veiros e Estarreja, principalmente, têm o Pinheiro da Bemposta
por passagem obrigatória. Aí descansam e tomam suas refeições à volta, e
muitos nessa freguesia passam a noite de 14 para 15, mas antes de se
acomodarem sob as ramadas dos pátios, em camas de fetos, não deixam de
organizar seus bailes e descantes, continuação dos que organizaram lá na
Serra, à volta da ermida.
Muitas vezes lhes observámos essa costumeira, quando, em criança, os
víamos passar. Como apareciam sempre muitas caras conhecidas dos anos
anteriores, fácil nos foi concluir que, para muitos, ir à Senhora da
Saúde constituía obrigação como qualquer outra. Bem no-lo confirmou, há
poucos anos, um romeiro, de seus oitenta bem puxados, a quem perguntámos
quantas vezes já teria ido à Senhora da Saúde... A resposta foi pronta e
solene: − Com esta são setenta, meu senhor. Só deixarei de lá ir quando
as pernas me emperrarem de todo!
/ 309 /
[Vol. XII - N.º 48 - 1946]
*
* *
Sob o ponto de vista religioso, a romaria da Senhora da Saúde não difere
de qualquer outra do nosso distrito. Assiste-se ao cumprimento das
promessas feitas pelos crentes, que nas suas aflições, doenças ou
infelicidades, recorrem à intervenção da Santa. Consistem elas em rezas,
ofertas de cera, dinheiro ou objectos de oiro, só ou conjugadas com
esses impressionantes sacrifícios de percorrer de joelhos a assaz longa
distância que vai do cruzeiro erguido ao fundo das três avenidas que
dele conduzem ao santuário, e de dar umas tantas voltas à roda da
capela, sempre de joelhos, embora, para evitar que eles sangrem, os
peregrinos os protejam com pequenas almofadas de pano, devidamente
ligadas.
Mas uma tradição que ali se mantém e nos não consta exista em qualquer
outra romaria são os «enterros». Encostados ao santuário, pelo menos
dois caixões, sem tampa, esperam que algum romeiro os alugue e utilize.
Acompanhado de pessoas de família ou da sua amizade, o que fez a
promessa de ir por morto no caixão dirige-se para o cruzeiro, e aí se
organiza originalíssimo cortejo. Velho, velha, rapaz ou rapariga
coloca-se dentro da urna, previamente posta ao alto por algum dos quatro
«pegadores». Caixão e paciente são colocados na posição normal, um dos
circunstantes cobre o romeiro com um lençol, e o «enterro» segue em
direcção da capela. Atrás, vão os companheiros e companheiras do
peregrino; e, se este tem posses, uma das bandas de música fecha o
cortejo, tocando uma marcha fúnebre. Chegados ao santuário, é de uso dar
uma ou mais voltas, consoante a promessa, à roda dele. Assistimos várias
vezes a este macabro espectáculo, bem pouco próprio do nosso tempo, que
tanto origina cenas desagradáveis, como provoca os risos da assistência.
Com efeito, romeiros há, principalmente raparigas mais impressionáveis,
que chegam a perder os sentidos na ocasião em que os amortalham para a
fúnebre viagem; e o cómico é inevitável, quando acontece ser o caixão
pequeno demais para as dimensões do corpo...
*
* *
No dia 13, faz-se a montagem do cenário onde se movimentará a enorme
multidão que ao santuário aflui nesse dia e no seguinte. A azáfama
começa, logo de manhã.
Chegam romeiros, cada vez mais romeiros, aos grupos, brincando e
cantando, a solo ou acompanhados pelas orquestras
/ 310 / de violas, «harmónicas», tambores, pandeiretas e ferrinhos, as
mulheres com os cestos dos farnéis à cabeça, não raro postos em Cima dos
xailes dobrados, os homens com o casaco e muitas vezes com os sapatos
dependurados no pau de lódão e levando alguns, a tiracolo, um enorme
chavelho de boi, cheio de vinho, ou pronto a recebê-lo...
Vão chegando bandos de mendigos e de ciganos, e uns e outros tratam de
estabelecer o seu acampamento no local que lhes é destinado, a pouca
distância do largo, coberto de relva e plantado de carvalhos seculares,
situado em plano bastante inferior ao do santuário, aonde vem desembocar
a estrada que conduz a Vale de Cambra. São as turbas de nómadas,
farrapos humanos que enxameiam feiras e romarias. Outras, famílias de
mendigos acham preferível esperar os romeiros nos caminhos; e assim, já
os podemos encontrar a uns quinhentos metros do arraial, estendendo a
mão aos transeuntes, entoando as suas lamurientas melopeias
intermináveis, e ostentando, verdadeiros ou fingidos, achaques e
aleijões:
− Ajudai este desinfeliz, tolhidinho de todo, que já não pode trabalhar!
− Ai, meu rico senhor, Deus permita que nunca se veja numa escuridão
como esta!
− Arreparai, ó gente, para a miséria da cabeça deste menino!
− Deixai ficar a vossa bendita esmolinha!
Surgem as botequineiras − as mulheres do «café de assobio» − e os
proprietários dessas pitorescas casas de pasto ambulantes, onde em anos
de fartura se come carne de vitela, ali mesmo abatida e ali cozinhada em
autênticos fogões de ferro, e todos se lançam à extenuante tarefa de
preparar os seus retiros. Os pinhais das circunvizinhanças têm de
fornecer, sem remuneração para os donos, a matéria prima com que se
improvisam as alpendradas para os botequins e para os demais albergues.
Bastam alguns troncos de pinheiros novos, espetados verticalmente;
pregados a esses, outros troncos, e por cima, a servir de tecto, ramos
dos mesmos pinheiros ou dalgum carvalho que se teve mais à mão.
O chão... esse é tapetado de fofa cama de fetos, para os «fregueses» que
aí queiram passar a noite.
Instalam-se os fotógrafos, esses próximos da capela, com os seus
«ateliers» munidos de variados panos de fundo; os fabricantes de
limonadas e de pirolitos têm trazido em camionetas máquinas,
ingredientes e vasilhame e preparam tudo para que, à hora do calor, nada
falte aos sequiosos; já se vêem, nos lugares próprios, carros com pipas
de vinho, ao lado das quais se vão dispondo assentos de msdeira −
simples tábuas pregadas a estacas de pinho −, destinadas aos
/ 311 / infalíveis
devotos do deus Baco; e constroem-se barracas para as tendas de
brinquedos, de velas e objectos de cera para oferendas, e de
quinquilharias.
Vão aparecendo, de todos os lados, mas em especial dos lados da
beira-mar, por vezes em intermináveis filas ao longo dos carreiros que
levam ao local da romaria, as doceiras, as mulheres das padas e das
regueifas doces, as vendedeiras de fruta, melancias e melões, os
vendedores e vendedeiras de mangericão, etc. É um verdadeiro fervet
opus, por toda a parte.
E os romeiros aparecem de todos os lados, constantemente! Constantemente
se ouvem, perto ou longe, cantos, apupos, gritos de exuberante alegria!
*
* *
O principal espectáculo é o do dia 14, o mais importante dos três. No
dia anterior, à noite, tem havido a moderna procissão das velas,
arremedo de Fátima; mas as cerimónias religiosas dentro do santuário
realizam-se em 14. Como no dia anterior, romeiro que chega para cumprir
a sua promessa é romeiro que vai imediatamente desobrigar-se dela. Tem
pressa, porque depois já se julga apto a entregar-se aos folguedos,
prolongamento dos da longa caminhada. E então, fora dos locais
exclusivamente destinados às práticas religiosas, crentes e descrentes,
peregrinos e curiosos, todos dão largas à sua alegria. Aqui, bailes e
danças populares, cheios de vida e cor, em redemoinhos fantásticos, no
meio de nuvens de poeira negra; acolá e além, grupos de Manéis e Marias,
com suma delícia de larga assistência, improvisam cantigas ao desafio,
sempre ao som de violas, «harmónicas», tambor e ferrinhos; mais além,
grupos de romeiros estão gozando, sob a pesada sombra dos pinheiros, as
delícias do farnel, amplamente regado pelo vinho que ali perto lhes é
fornecido; a cada passo, grupos de namorados; magotes de moços e moças,
cobertas as cabeças com chapéus de palha, enfeitados, ou com chapéus de
papel de fantasia, comprados a qualquer dos numerosos vendedores
ambulantes, correm uns atrás dos outros, agatanham-se, tentam mutuamente
derrubar-se, dão-se as mãos em longas bichas, e percorrem, à doida,
todos os recantos do vasto arraial, tropeçando nos que passam ou nos que
assistem àquela tumultuosa quermesse, − e não têm parança! Há qualquer
coisa de carnavalesco neste espectáculo, e será difícil poderem as
autoridades eclesiásticas pôr-lhe termo ou sequer atenuar-lhe o carácter
pagão. Lá em baixo, no principal largo da romaria, carros de cavalos,
/ 312 /
camionetas de carga, automóveis esgalhados e sujos ou carros de
categoria, pertencentes a gente rica que ali veio divertir-se,
misturam-se com a multidão, sempre diferente, sempre renovada, num
conjunto de indiscriminada variedade e desordem, digno de ver-se.
*
* *
Nos primórdios da romaria e até a abertura do primeiro arremedo de
estrada que liga o local ao Vale de Cambra, todos os visitantes, para
cumprimento de suas promessas ou, simplesmente para satisfação da sua
curiosidade, tinham de calcorrear quilómetros e quilómetros por ínvios
caminhos. Depois daquele melhoramento, feito sem qualquer auxilio do
Estado, passaram alguns, quando muito, a arriscar a escalada da Serra em
carros de cavalos e ultimamente em automóvel, por estrada cheia de
precipícios. O que será a romaria da Senhora da Saúde da Serra quando
estiver concluída a estrada de Macieira de Cambra às Talhadas, cujos
trabalhos se acham em curso? Muitos mais forasteiros acorrerão, decerto,
ao privilegiado local. O turista não perderá o seu tempo, mesmo que o
visite fora da época; mas preferível será que o faça no dia 14 de
Agosto, para então verificar a veracidade de tudo quanto acima
relatámos, e ainda o mais que a nossa pena não soube exprimir. Mas só o
espectáculo do panorama sobre o Vale de Cambra e sobre o mar, a perder
de vista para o norte e para o sul, o compensará largamente do tempo
gasto na excursão, − porque é um verdadeiro encantamento!
JOSÉ PEREIRA TAVARES |