M. de Almeida de Eça, Espinho e o mar, Vol. X, pp. 235-238

ESPINHO E O MAR

UM dos mais notáveis fenómenos de erosão marítima que a costa portuguesa nos tem oferecido nos últimos tempos, é o que, desde alguns decénios, se vem observando no extremo setentrional do distrito de Aveiro, na altura de Espinho.

Esse fenómeno, tendo começado a manifestar-se à volta de 1885 ou 1886, prosseguiu até 1909, ano em que, no centro da povoação, o mar quase atingiu a antiga Assembleia, situada onde hoje se encontra o Casino, e ao Norte, a ponte do rio Mocho, suspendeu-se até à volta de 1930 e recomeçou lenta mas persistentemente, tendo nesta segunda fase absorvido uma faixa de areal que nalguns pontos já é de dezenas de metros de largura, e derrubado centenas de edifícios. Qual é a causa desta erosão? Está dita e redita, e cremos, sem contestação valiosa, que são os molhes exteriores do porto artificial de Leixões.

Com efeito, é sabido que um ramo da grande corrente do Golfo, a corrente de Renell, atingindo o cabo Finisterra, na Galiza, costeia seguidamente o litoral ocidental da península ibérica, só dele se desprendendo na altura do Cabo de S. Vicente, donde, continuando para o Sul, se vai juntar à corrente que alguns oceanógrafos denominam «das Canárias». Nada mais fácil para qualquer habitante do distrito de Aveiro que verificar a existência, velocidade e direcção dessa corrente. Bastar-lhe-á, em dia calmo ou de pouco vento, chegar às praias de Espinho, Torreira, ou Costa Nova, e arremessar para o mar, para além dos limites da arrebentação costeira, um corpo flutuante, − um pedaço de cortiça ou de madeira é suficiente, − e observar o que se dá com ele. Logo o veremos pôr-se em marcha para o Sul e com uma velocidade que regula pela de um indivíduo de mediano vigor caminhando pela areia, isto é, com a velocidade de uns quatro quilómetros ou umas duas milhas por hora.

Já se vê que, se soprarem ventos frescos do quadrante S. O, a velocidade deve diminuir proporcionalmente à sua força e, se esta aumentar, é de prever que talvez a direcção da corrente / 236 / chegue a modificar-se tanto que as águas passem a correr para o Norte.

Outras circunstâncias, tais como marés, tempestades, etc., devem também fazer variar a velocidade e em especial a força viva da corrente.

Nestas condições, qual deveria ser o efeito de um longo paredão, totalmente insubmersível, construído em grande parte perpendicularmente à costa e a uma légua ao Norte da foz do rio Douro? Evidentemente, o que se produziu. Primeiro, as águas que desciam do Norte, encontrando vedada por este paredão a passagem entre a costa e o enorme rochedo denominado Leixão Grande, embateram contra as da massa central da corrente. Depois estas, reagindo, projectaram-nas contra a costa. Sob o embate, cuja força os ventos, os temporais e as marés, sobretudo as equinociais, ampliavam, as areias mobilizaram-se, separaram-se, e foram levadas pelas ondas.

Enquanto a erosão se limitou ao largo areal que então se estendia do rio Mocho às proximidades da fábrica Brandão Gomes, poucas atenções despertou o fenómeno e parece que nenhuns receios. Para tranquilizar os ânimos bastava a frequência com que nas costas arenosas se vê o mar avançar hoje aqui e recuar amanhã ali, num incessante trabalho de agregação e desagregação, que, afinal, acaba por manter o litoral numa linha média.

Além disso, pela larga faixa de areias ameaçada pelas águas, só havia os barcos e as redes das numerosas xávegas então existentes em Espinho e, no verão, as características barracas de banhos, de madeira. Retiraram-se estas, puxaram-se mais para terra os barcos e pronto.

Quando, porém, por 1888, as casas mais vizinhas da orla marítima começaram a ser levadas pelas ondas, foi uma consternação que explodiu em alto alarido verbal e escrito. Mas o Atlântico, implacavelmente prosseguiu na sua obra de destruição, e depois de ter, durante o primeiro decénio da sua investida, derrocado grande parte da velha Espinho, quase toda em casas de madeira, muitas delas de dois andares, entrou por 1898 a desmoronar ruas inteiras de prédios de alvenaria, principalmente na parte Norte da povoação, sobre a qual, nesse primeiro assalto, parece ter incidido a maior força do ataque.

Durante esses anos de angústias, foram tomadas algumas providências governamentais. Falou-se, projectou-se, mas afinal, nada de eficaz se efectuou e a obra de destruição prosseguiu com tal fúria que, de 1898 a 1908, desapareceram, levadas pelas ondas, a larga praça da Senhora da Ajuda e muitas ruas, orladas de prédios de alvenaria e que se estendiam entre aquela praça e a linha férrea do Norte. / 237 /

Nessa altura, porém, a situação estabilizou-se. O mar cessou de roer a costa, e Espinho, tranquilizada, passou a dilatar-se em alinhadas ruas, pelas vastos terrenos a oriente do caminho de ferro, transformando-se na grande e progressiva vila que hoje é.

Mas, neste inconstante mundo, não existe tranquilidade duradoura. Desde há muito se notava que a entrada de navios na porto de Leixões, sobretudo quando batida a costa por impetuosos temporais de N.O., era difícil. Além disso, a distância de duzentos metros entre as cabeças do malhe Narte e a do Sul, dava fácil acesso às amplas ondulações do mar que iam agitar perigosamente as águas da bacia limitada pelos molhes. Como eliminar estes males? Reflectiu-se, discutiu-se, e por fim chegou-se à conclusão de que só construindo-se um esporão, que, partindo do paredão Norte na altura do Leixão Grande, se prolongasse no sentido aproximado de S.S.O., uns quatrocentos metros.

A obra devia ser, além de dispendiosa, difícil, pois atingiria, para o extremo, profundidades de uns dezoito metros abaixo do zero hidrográfico. Todavia, como era indispensável para a segurança e comodidade do porto artificial, foi projectada, aprovada e iniciada.

Começada à volta de 1930, prosseguiu morosamente, e por 1934 ainda não ia em meio. E nos anos seguintes, interrompida por largos períodos de mau tempo e dificultada pelo crescente aumento de profundidade e por outras causas, ainda avançou mais lentamente.

Os seus efeitos sobre a costa de Espinho em breve cpmeçaram a fazerem-se sentir. Deslocadas da seu leito estabilizado, repelidas mais para o largo pelo aumento do antigo obstáculo à sua descida para o Sul, as águas da corrente marítima costeira reagiram primeiro descrevendo uma curva mais alongada, e em seguida, incidindo sobre a costa de Espinho com mais força. E desta vez, como era lógico, o centro dá incidência localizou-se mais ao Sul, situando-se entre a Esplanada e a fábrica Brandão Gomes. Daí as destruições de que, nos últimos anos, Espinho vem sendo vítima.

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Será o mal sem remédio eficaz? Parece que não, pois, segundo refere a imprensa, as obras de defesa, que, desde há anos, têm sido efectuadas na costa de Espinho, estão dando bom resultado e, por isso, espera-se fundadamente que acabem par colocar aquela praia ao abrigo das investidas do mar. Mas se com elas tal se não conseguir, haverá ainda um recurso. / 238 /

Como é sabido de todas as pessoas um pouco lidas em assuntos geográficos, existe no norte da Europa um país, a Holanda, cujo território está em grande parte abaixo do nível do mar, mas que os holandeses puseram em seco. Estes, ligando por poderosos e por vezes extensíssimos diques artificiais as dunas levantadas do fundo arenoso do mar do Norte pela acção das vagas e das correntes, criaram grande parte das dilatadas e férteis planícies que são o orgulho e a glória da agricultura holandesa.

Estas planícies estão em grandes extensões, pouco acima do nível do mar, ao nível do mar, e até abaixo dele, descendo algumas à cota de quatro metros negativos. Para as manter emersas, é indispensável um complicado sistema de diques, canais e moinhos elevatórios de água.

Daí a forçada especialização da engenharia holandesa neste género de trabalhos, sobretudo em diques.

Sob a acção de violentas tempestades, estes, às vezes cedem e produzem-se terríveis inundações.

Mas estas catástrofes são excepcionais.

Em regra, os diques resistem vitoriosamente às fúrias do mar do Norte.

Ora, para construir esses diques e velar pela sua conservação, possui há muito a Holanda um corpo de técnicos altamente treinados e especializados.

Educados nesta dura escola, são os melhores do mundo.

Porque se não convida, pois, um desses técnicos a estudar e realizar a obra, para ele certamente comezinha, de defender eficazmente dois ou três quilómetros de costa portuguesa?

E aqui está, talvez, se outra não for encontrada, a solução definitiva do problema, de Espinho.

Aveiro (Esgueira), 27 de Setembro de 1945.

MANUEL DE ALMEIDA DE EÇA

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