UM dos mais notáveis
fenómenos de erosão marítima que a costa portuguesa nos tem oferecido
nos últimos tempos, é o que, desde alguns decénios, se vem observando no extremo setentrional do distrito de
Aveiro,
na altura de Espinho.
Esse fenómeno, tendo começado a manifestar-se à volta
de 1885 ou 1886, prosseguiu até 1909, ano em que, no centro
da povoação, o mar quase atingiu a antiga Assembleia, situada onde hoje
se encontra o Casino, e ao Norte, a ponte do rio
Mocho, suspendeu-se até à volta de 1930 e recomeçou lenta
mas persistentemente, tendo nesta segunda fase absorvido
uma faixa de areal que nalguns pontos já é de dezenas de
metros de largura, e derrubado centenas de edifícios. Qual é a causa
desta erosão? Está dita e redita, e cremos, sem
contestação valiosa, que são os molhes exteriores do porto artificial de
Leixões.
Com efeito, é sabido que um ramo da grande corrente
do Golfo, a corrente de Renell, atingindo o cabo Finisterra,
na Galiza, costeia seguidamente o litoral ocidental da península ibérica, só dele se desprendendo na altura do Cabo de
S. Vicente, donde, continuando para o Sul, se vai juntar à corrente que alguns oceanógrafos denominam «das Canárias». Nada mais
fácil para qualquer habitante do distrito de Aveiro
que verificar a existência, velocidade e direcção dessa corrente. Bastar-lhe-á, em dia calmo ou de pouco vento, chegar
às praias de Espinho, Torreira, ou Costa Nova, e arremessar
para o mar, para além dos limites da arrebentação costeira, um corpo
flutuante, − um pedaço de cortiça ou de madeira
é suficiente, − e observar o que se dá com ele. Logo o veremos pôr-se
em marcha para o Sul e com uma velocidade que
regula pela de um indivíduo de mediano vigor caminhando
pela areia, isto é, com a velocidade de uns quatro quilómetros ou umas duas milhas por hora.
Já se vê que, se soprarem ventos frescos do quadrante S.
O,
a velocidade deve diminuir proporcionalmente à sua força e,
se esta aumentar, é de prever que talvez a direcção da corrente
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chegue a modificar-se tanto que as águas passem a correr para o Norte.
Outras circunstâncias, tais como marés, tempestades, etc., devem também
fazer variar a velocidade e em especial a força viva da corrente.
Nestas condições, qual deveria ser o efeito de um longo paredão,
totalmente insubmersível, construído em grande
parte perpendicularmente à costa e a uma légua ao Norte da
foz do rio Douro? Evidentemente, o que se produziu. Primeiro, as águas
que desciam do Norte, encontrando vedada por este paredão a passagem
entre a costa e o enorme rochedo denominado Leixão Grande, embateram
contra as da massa central da corrente. Depois estas, reagindo,
projectaram-nas contra a costa. Sob o embate, cuja força os ventos, os
temporais e as marés, sobretudo as equinociais, ampliavam, as areias
mobilizaram-se, separaram-se, e foram levadas pelas ondas.
Enquanto a erosão se limitou ao largo areal que então se estendia do rio
Mocho às proximidades da fábrica Brandão Gomes, poucas atenções
despertou o fenómeno e parece que nenhuns receios. Para tranquilizar os
ânimos bastava a frequência com que nas costas arenosas se vê o mar
avançar hoje aqui e recuar amanhã ali, num incessante trabalho de
agregação e desagregação, que, afinal, acaba por manter o litoral numa
linha média.
Além disso, pela larga faixa de areias ameaçada pelas águas, só havia
os barcos e as redes das numerosas xávegas então existentes em Espinho
e, no verão, as características barracas de banhos, de madeira.
Retiraram-se estas, puxaram-se mais para terra os barcos e pronto.
Quando, porém, por 1888, as casas mais vizinhas da orla marítima começaram a ser
levadas pelas ondas, foi uma consternação que
explodiu em alto alarido verbal e escrito. Mas o Atlântico,
implacavelmente prosseguiu na sua obra de destruição, e depois de ter,
durante o primeiro decénio da sua investida, derrocado grande parte da
velha Espinho, quase toda em casas de madeira, muitas delas de dois
andares, entrou por 1898 a desmoronar ruas inteiras de prédios de
alvenaria, principalmente na parte Norte da povoação, sobre a qual,
nesse primeiro assalto, parece ter incidido a maior força do ataque.
Durante esses anos de angústias, foram tomadas algumas providências
governamentais. Falou-se, projectou-se, mas afinal, nada de eficaz se
efectuou e a obra de destruição prosseguiu com tal fúria que, de 1898 a
1908, desapareceram, levadas pelas ondas, a larga praça da Senhora da Ajuda e muitas ruas,
orladas de prédios de alvenaria e que se estendiam entre aquela praça e
a linha férrea do Norte.
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Nessa altura, porém, a
situação estabilizou-se. O mar cessou de roer a
costa, e Espinho, tranquilizada, passou a dilatar-se em alinhadas ruas,
pelas vastos terrenos a oriente do caminho de ferro, transformando-se na
grande e progressiva vila que hoje é.
Mas, neste inconstante mundo, não existe tranquilidade duradoura.
Desde há muito se notava que a entrada de navios na porto de Leixões,
sobretudo quando batida a costa por impetuosos temporais de N.O., era
difícil. Além disso, a distância de duzentos metros entre as cabeças do
malhe Narte e a do Sul, dava fácil acesso às amplas ondulações do
mar que iam agitar perigosamente as águas da bacia limitada
pelos molhes. Como eliminar estes males? Reflectiu-se, discutiu-se, e
por fim chegou-se à conclusão de que só construindo-se um esporão, que,
partindo do paredão Norte na altura do Leixão Grande, se prolongasse no
sentido aproximado de S.S.O., uns quatrocentos metros.
A obra devia ser, além de dispendiosa,
difícil, pois atingiria, para o
extremo, profundidades de uns dezoito metros abaixo do zero hidrográfico. Todavia, como era indispensável para a segurança e comodidade
do porto artificial, foi
projectada, aprovada e iniciada.
Começada à volta de 1930, prosseguiu morosamente, e por 1934 ainda
não ia em meio. E nos anos seguintes, interrompida por largos períodos
de mau tempo e dificultada pelo crescente aumento de profundidade e por
outras causas,
ainda avançou mais lentamente.
Os seus efeitos sobre a costa de Espinho em breve cpmeçaram a fazerem-se
sentir. Deslocadas da seu leito estabilizado, repelidas mais para o
largo pelo aumento do antigo obstáculo à sua descida para o Sul, as
águas da corrente marítima costeira reagiram primeiro descrevendo uma
curva mais alongada, e em seguida, incidindo sobre a costa de Espinho com mais força. E desta vez, como era lógico,
o centro dá incidência localizou-se mais ao Sul, situando-se entre a Esplanada e a fábrica
Brandão Gomes. Daí as destruições de que, nos últimos anos, Espinho
vem sendo vítima.
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Será o mal sem remédio eficaz? Parece que não, pois, segundo refere a
imprensa, as obras de defesa, que, desde há anos, têm sido efectuadas na
costa de Espinho, estão dando bom resultado e, por isso, espera-se
fundadamente que acabem par colocar aquela praia ao abrigo das
investidas do mar. Mas se com elas tal se não conseguir, haverá ainda um
recurso.
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Como é sabido de todas as pessoas um pouco lidas em assuntos
geográficos, existe no norte da Europa um país, a Holanda, cujo
território está em grande parte abaixo do nível do mar, mas que os
holandeses puseram em seco. Estes, ligando por poderosos e por vezes
extensíssimos
diques artificiais as dunas levantadas do fundo arenoso do
mar do Norte pela acção das vagas e das correntes, criaram grande parte
das dilatadas e férteis planícies que são o orgulho e a glória da
agricultura holandesa.
Estas planícies estão em grandes extensões, pouco acima do nível do mar,
ao nível do mar, e até abaixo dele, descendo algumas à cota de quatro
metros negativos. Para as manter emersas, é indispensável um complicado
sistema de
diques, canais e moinhos elevatórios de água.
Daí a forçada especialização da engenharia holandesa
neste género de trabalhos, sobretudo em diques.
Sob a acção de violentas tempestades,
estes, às vezes
cedem e produzem-se terríveis inundações.
Mas estas catástrofes são excepcionais.
Em regra, os diques resistem vitoriosamente às fúrias
do mar do Norte.
Ora, para construir esses diques e velar pela sua conservação, possui há
muito a Holanda um corpo de técnicos altamente treinados e especializados.
Educados nesta dura escola, são os melhores do mundo.
Porque se não convida, pois, um desses técnicos a estudar e realizar a obra,
para ele certamente comezinha, de defender
eficazmente dois ou três quilómetros de costa portuguesa?
E aqui está, talvez, se outra não for encontrada, a solução
definitiva do problema, de Espinho.
Aveiro (Esgueira), 27 de
Setembro de 1945.
MANUEL DE ALMEIDA DE EÇA |