IDENTIFICAÇÃO DE UMA
PERSONAGEM DE «A ILUSTRE CASA DE RAMIRES»
SEMPRE me seduziu o
problema de identificação de
pessoas e de lugares posto em A Capital, o romance
póstumo de EÇA DE QUEIRÓS tão estranhamente desprezado, apesar das virtudes que sobrelevam alguns
defeitos e certas dúvidas da sua génese, por quantos se interessaram, até agora, pelo estudo e exegese do espólio literário
do grande romancista. Problema de identificação esse que,
uma vez resolvido e aclarado, pode contribuir, de maneira
apreciável, para a explicação das tendências do escritor no
que concerne à escolha de ambientes para os seus romances.
O desempenho de funções burocráticas em Leiria havia
de sugerir a EÇA o enquadramento propício a O Crime do
Padre Amaro, cujas personagens − na afirmação do Conselheiro ANTÓNIO
CABRAL − são fotografias exactíssimas e flagrantes de pessoas e tipos daquela cidade. Preocupou-me,
por isso, desde logo, esquadrinhar o motivo por que EÇA DE
QUEIRÓS localizou grande parte da acção de A Capital na
pacata vila de Oliveira de Azeméis. A certeza, fundamentada em razões
obviamente públicas, de que o romancista
não devia ter procedido com meros informes de outiva, induziu-me a promover pesquisas que concluíram num resultado (feliz, no meu
julgamento...) de que dei relato em duas despretensiosas crónicas em tempo insertas no
"Diário Popular"
e agora recopiladas, mercê de um desvanecedor convite,
para os apontamentos então coligidos se não perderem sem
registo definitivo e de modo a poderem tornar-se aproveitáveis a quem, por acaso, se proponha aproveitá-los.
É um modesto contributo, e uma homenagem apagada,
na hora de bom senso em que, galhardamente, se põem em
prática as mais acertadas iniciativas para comemorar o primeiro centenário do nascimento do sublime EÇA.
/ 146 /
*
* *
Embora não me fosse dado encontrar documentos que
falem da permanência de EÇA DE QUEIRÓS em Oliveira de
Azeméis, tenho como prova respeitável − e suficiente − o testemunho solene
da tradição oral, que conta ter sido o autor de O Primo Basílio visita
assídua do solar do Côvo, a pouco
mais de um quilómetro da vila, à margem da estrada que
segue até Vale de Cambra.
Nos agitados tempos da
mocidade, foi companheiro de
EÇA, na histórica viagem ao Oriente, D. Luís de Castro
Pamplona, Conde de Resende, − e tal viagem é deveras elucidativa quanto à íntima amizade que os ligava. Acontece,
ainda, que o Conde de Resende mantinha as melhores relações de intimidade com seus primos D. Gaspar Maria de
Castro Lemos Magalhães e Meneses Pamplona, Conde do
Côvo, e seu irmão D. António de Castro e Meneses Pamplona. Por sinal, o feitio irrequieto e imprudente do Conde
de Resende não era muito do agrado dos familiares da Casa
do Côvo, que ambicionavam companhia mais sossegada para os seus
herdeiros.
A Condessa do Côvo, D. Sofia Adelaide Ferreira Alves de Castro Lemos,
esposa de D. Gaspar, havia de ser, mais
tarde, uma das testemunhas do matrimónio de José Maria
Eça de Queirós com D. Emília de Castro Pamplona, irmã do Conde de
Resende.
Há, pois, sobejas razões para acreditar na assiduidade
de EÇA em visitar o nobre solar do Côvo, que, nem sei porquê, me arrasta o pensamento para o Paço de Santa Ireneia,
a ilustre casa dos Ramires...
Destas relações, resultou uma viva simpatia, logo transformada em
amizade, entre EÇA e o irmão do Conde do Côvo, D. António de Castro, na
verdade figura atraente e digna de
fidalgo de boa cepa, carácter cheio de nobreza e um espírito
brilhante dentro da sua aparente indolência. D. António
tinha a seu cargo a direcção da fábrica de vidros instalada
em terras do Côvo que, no dizer das crónicas, foi a primeira a existir na Península. Era, além disso, um primoroso compositor
de massas vidreiras, e as suas fórmulas, por célebres, depressa se tornaram invejadas.
Encontramos, a cada passo, em
A Capital ou em A Ilustre Casa de Ramires,
referências bem significativas, pelo
menos, quanto à irrecusável impressão gravada no espírito
perscrutador do romancista.
Atingindo este ponto, compete-me revelar que a tradição assevera ter EÇA DE QUEIRÓS aproveitado a figura de
/ 147 / D. António de Castro para criar uma das personagens mais
humanas da sua galeria famosa − D. António de Villalobos − o possante amigo de Gonçalo Mendes Ramires.
E não é só o que conta a roda de oliveirenses mais apegados a
estes assuntos de belas-letras. Diz-me o actual senhor
das terras do Côvo, D. José de Castro, que já os seus antepassados murmuravam a
quase certeza de que o D. António
de Villalobos era, nem mais nem menos, que seu tio D. António de Castro, invocando, de início, a portentosa razão que
vem da coincidência de a personagem de EÇA ter o apôdo
de «Titó», enquanto o fidalgo do Côvo era conhecido, entre
a gente da Casa, por «Pitó». Convenhamos em que a coincidência é extraordinária e faz admitir, plenamente, as mais
ousadas suposições.
Entretanto, ao rever no romance os tópicos que caracterizam o herói
eciano, deparo com vários pontos de contacto
que mais e mais arreigam aquela impressão geral − e bem
posso, por isso, ultrapassar os limites cautelosos da «quase
certeza». Se não, veja-se:
− Tal como D. António de Villalobos, o «Titó» de
A Ilustre Casa de Ramires, D. António de Castro, o «Pitó»
para irmãos e primos, era «aquele homenzarrão excelente de
velha raça alentejana» (pág. 30), que, bem querido por toda
a vila, «a atulhava com os seus possantes membros, o lento
ribombo do seu vozeirão» (pág. 30), «Hércules bonacheirão,
que o seduzia (a Gonçalo Ramires) pela prodigiosa força, a
incomparável potência em beber todo um pipo e em comer
todo um anho, e sobretudo pela independência, uma suprema
independência, que apoiada ao bengalão terrífico nada temia
e nada desejava nem da Terra nem do Céu» (pág. 30),
«o homem mais verídico do Reino, amando a Verdade com a antiga devoção
de Epaminondas» (pág. 335), que «sob o
seu vozeirão troante, a sua indolência bovina, possuía um
espírito muito atento, muito penetrante» (pág. 335). Novos
traços brotam através do livro, que se ajustam perfeitamente
às duas figuras: − «os possantes ombros vergados...»
(pág. 334), «... riscava pensativamente com o bengalão a
poeira da estrada. . .» (pág. 453), «o vozeirão do «Titó» ainda
ribombou...» (pág. 449), «coçava lentamente a barba...»
(pág. 443).
Que concluir, então, se a presença desta cópia de evidentes aproximações físicas e psicológicas me permitiu, qual
sábio Cuvier, reconstituir, sem esforço, e com sofrível fidelidade, a figura solene e atlética do fidalgo do Côvo, que não
conheci?
Na sua notável História Literária de Eça de Queirós,
o escritor brasileiro ÁLVARO LINS opina ter EÇA reconhecido
que «pelo estilo, é que um ser se realiza, se fixa e permanece», porque
/
148 / «o estilo será assim um elemento de imortalidade e de perpetuidade dos seres; aquele que mais dá a
sensação da continuidade no tempo».
Isto me ocorre a propósito do estilo empregado por EÇA
para esquiçar o tipo do nobre «Titó». Atente-se no emprego
intencional de termos, digamos, onomatopaicos, para nos
incutir uma ideia tão precisa quanto possível dos aspectos
físico e moral dessa personagem − homenzarrão, o ribombo
do vozeirão, Hércules bonacheirão, o bengalão terrifico, o vozeirão
troante, o vozeirão ainda ribombou....
OUTRAS PERSONAGENS E OUTROS
AMBIENTES DE «A ILUSTRE CASA
DE RAMIRES»
E DE «A CAPITAL»
BALZAC tinha por hábito deslocar-se à província para melhor observar os
lugares destinados à acção dos seus
romances futuros e para conhecer uma cara indígena digna
do seu apreço literário; em Saumur, por exemplo, deparou
com os tipos que lhe permitiram moldar a protagonista de Eugénia Grandet e o sórdido avarento que era seu pai;
ALPHONSE DAUDET costumava seguir os transeuntes para lhes
estabelecer o estado civil, depois de lhes vigiar os modos e os tics pessoais
− o que lhe aliviava a imaginação...
EÇA não carecia de preparação pensada para encontrar
material porque facilmente o topava num encontro imprevisto, durante qualquer das muitas viagens que o esgotaram,
ou através de uma simples amizade pessoal. Será oportuno
recordar o que o romancista escreveu a FIALHO por este ter
duvidado da naturalidade de certas cenas e de algumas personagens de Os Maias: «Tudo isto é visto, notado em flagrante e por mim mesmo estudado
sur place»
(1).
Sobejavam-lhe perspicácia e imaginação viva para não
desprezar os ricos mananciais que brotavam à sua volta.
O sábio Tópsius devia-o ter encontrado no Egipto, na pessoa do
indiferente senhor Mariett, director de Museu; BULHÃO
PATO serviu, por certo, para modelar o grotesco poeta Alencar
e nem o seu violento desmentido pode apagar a impressão
dominante; Júlio Teles, de Leiria, apareceu incarnado no
Artur Couceiro de O Crime do Padre Amaro; o seu rendeiro de Vila-Nova, no
Baixo-Douro, José Pinto de Sousa, foi
/
149 / fielmente retratado em
A Cidade e as Serras(2); Eduardo
Prado forneceu traços para o Jacinto e, ao que se julga, para
Fradique. E não se afirma, com razoável fundamento,
que há muito do próprio EÇA nesse mesmo Fradique, elegante
e podre de spleen e de civilização?
Sigo, agora, a desvendar novo rumo que pode conduzir
à identificação do conspícuo Vasco da Conceição Pedroso,
o boticário de A Capital.
No dizer de EÇA, ao Vasco farmacêutico «pouca gente
lhe tinha visto o rosto todo: com a testa e os olhos sempre
cobertos pela pala enorme do boné de pano, o queixo e a
boca constantemente abafados num cache-nez roxo, mostrava
apenas a Oliveira de Azeméis um nariz bicudo e lustroso.
Vivia numa irritação permanente. E todo o dia era pela
botica um passear furioso, fungando, fazendo estalar violentamente os dedos, com sacudidelas desesperadas da cabeça
(...) mastigando em seco (...) como se a vida lhe soubesse
mal. Ninguém explicava na vila aquele azedume de hipocondríaco» (pág. 58). Mais adiante: «Mostrava as repas
grisalhas que lhe cobriam o crânio estreito e o cache-nez, alargado,
descobria um queixo mole, que lhe fugia para as
cordoveias do pescoço. E a cabeça, emergindo-lhe assim dos agasalhos,
com aquela saliência do nariz agudo, lembrava a de um pássaro pelado»
(pág. 58).
Tão depressa foi lançada à voracidade do público a edição de
A Capital, logo os leitores oliveirenses descobriram,
ou julgaram descobrir, sob a figura do Vasco Pedroso, a
personalidade inconfundível e popularíssima de Joaquim Ferreira de Araújo e Silva, o «Joaquim da Botica», estabelecido que fora
numa casa já demolida e que existiu no local onde
hoje está uma loja de ourives, à esquina da estrada para a Estação do
Caminho de Ferro.
O estabelecimento do «Joaquim da Botica» era muito
frequentado pela rapaziada estudiosa das Universidades do
Porto e de Coimbra, que por ali se demorava, em tempo de
férias, a manter dois dedos de conversa com fidalgos da região ou a desfrutar o proverbial mau génio do velho boticário com partidas sem conta.
É inteiramente crível, portanto, que EÇA tenha conhecido o «Joaquim da Botica» pois
que D. António de Castro também emparceirava na tertúlia da casa.
Assim mo afirmam e descrevem. Assim o descrevo,
legando ao juízo de cada leitor o direito de considerar estes factos que
expõem nova e expressiva coincidência de tipos
/ 150 /
*
* *
EÇA DE QUEIRÓS apresenta Oliveira de Azeméis com
traços imprecisos e vagos em A Capital, aludindo apenas
à sua «tranquilidade de vila bonita» −, o que bem pode ser
uma impressão pessoal exteriorizada por um impulso de lembranças agradáveis, e ao Côvo:
− ora são os passeios de
Artur Corvêlo pelas estradas de Ovar ou do Côvo (pág. 54);
ora é uma rapariguinha que vive «lá para o pé da estrada do
Côvo» (pág. 566). Refere-se à igreja de São Francisco (págs. 41
e 54), que nunca existiu na vila, mas, em contraposição, não
oculta a mais vibrante das sensações recebidas quando regista, em vários
trechos do livro, «a maravilha da fábrica de vidro"
(pág. 46) e as visitas de Corvêlo «à fábrica de vidro do Còvo».
A fábrica onde, como disse antes, pontificava D. António de
Castro, o grande amigo de EÇA, que se esmerara na composição de fórmulas
vidreiras.
Não é despropósito, nesta altura, apontar que, em
A Ilustre Casa de Ramires, também aparecem duas referências
significativas nas passagens que transcrevo: − «Num trote folgado
passara à Fábrica de Vidros, depois o Cruzeiro sempre coberto pelas
pombas que esvoaçam do pombal da
Fábrica» (pág. 148) e, mais longe (pág. 264), «reconheceu
aquele caçador que já uma tarde, no lugar de Nacejas, ao pé
da Fábrica de Vidros, o mirara com arrogância...».
Nem por um segundo hesito em acreditar nas gratas
recordações que EÇA DE QUEIRÓS levou das suas permanências em Oliveira de Azeméis e no Côvo, tão gratas e de tal
poder que não se diluíram no intervalo entre a gestação de A Capital (1878) e a de
A Ilustre Casa de Ramires (1889),
onze anos bem estirados. E ninguém me arranca da ideia
que, no baptismo da serena e burocrática cidadezinha de
Oliveira, − do último daqueles romances, paraninfou, com
todas as honras, a vila de Oliveira de Azeméis.
*
* *
Não me repugna acreditar, ainda, que haja determinadas
sugestões do velho botequim oliveirense do largo de Santo António no típico botequim da Corcovada, de
A Capital,
onde borbulhavam a irreverência e o espírito revolucionário
da gente moça e que «tinha ao fundo, para os íntimos, entre
a cozinha e a estrebaria, um cubículo com uma mesa de pinho
e mochos de palhinha» (pág. 78).
/
151 /
Na casa da Corcovada, o sol «atravessava a saleta fazendo
parecer mais triste o soalho enegrecido, o papel de ramagens,
azuis riscado de fósforos, a cortina de paninho vermelho
sobre a porta envidraçada da cozinha» (pág. 132). E, depois,
havia ali um bilhar onde Artur Corvêlo ensaiava «carambolas melancólicas» em despique com o finório do Rabecaz.
Pois sucede que o botequim existente no largo de Santo
António, em Oliveira de Azeméis, num prédio também já
desaparecido, era pertença de umas damas geralmente conhecidas pelas «Senhoras do Botequim». Naquele lugar se
reunia a fina flor da vila e arrabaldes, a denotar preferência
pelos acepipes fabricados na cozinha da casa e pelo monumental bilhar, que era, sem dúvida, o mais aprazível divertimento da época. Por lá se demorava o fidalgo do Côvo,
D. António, e ainda há quem se lembre da proeza enorme por ele cometida
de erguer, sem qualquer ajuda, apenas com
o poder dos ombros, o bilhar monstro, com um homem sentado em cada ponta!
Teria EÇA testemunhado o espantoso feito, dele se recordando quando concedia a D. António de Villalobos, o magnífico «Titó», atributos de Hércules
− «homemzarrão de ombros possantes»?
Há em EÇA o pendor para os tons nebulosos na pintura
das terras onde situa a vida dos seus romances. Essa vida,
que tem podido resistir ao tempo, dimana do desenho das personagens, das suas atitudes e, principalmente, da sua alma. Razão
tinha BAUDELAIRE em proclamar que o aspecto
das cidades se modificava mais depressa que o coração dos homens...
VISITA DE EÇA DE QUEIRÓS
À «SANTINHA DA ARRIFANA»
Para corroborar a afirmativa de que EÇA DE QUEIRÓS era
«um escritor mais de observação do que de fantasia», cita
o sr. Conselheiro ANTÓNIO CABRAL, na sua obra sobre o
romancista, um exemplo que interessa muito directamente
ao modesto trabalho que pretendo levar a termo.
Trata-se da visita que EÇA fez, certo dia, à freguesia de
Arrifana, no concelho de Vila da Feira, para conhecer, de perto, o caso
então célebre da visionária que «o povo ingénuo e simples venerava como santa» e já era conhecida no
Norte por «Santinha da Arrifana».
Chamava-se Ana de Jesus Maria José Magalhães e nascera aos 19 de Agosto de 1811 no lugar do Outeiro de Baixo
da Rua, na nomeada freguesia. Eram seus pais José Dias
Leite de Resende e Clara Joaquina. Aos 14 anos, ficou
/ 152 /
entrevada devido a um entorpecimento das pernas e aos 16 manifestou-se
um aneurisma. Durou cerca de 46 anos o seu sofrimento, suportado com
muita resignação, até que se finou às 12 horas do dia 25 de Março de
1875, em «Odor de Santidade», como se lê no registo paroquial.
Não há dúvida, como alega o biógrafo de EÇA DE QUEIRÓS, que o caso foi,
mais tarde, evocado, nos seus tópicos essenciais, em O Crime do Padre
Amaro, no «trecho admirável e flagrante de realismo, de exactidão e de
verdade em
que EÇA dá conta do serão de beatas em casa da S. Joaneira».
..O Padre Amaro nunca ouvira aludir à «Santa da Arregaça» (nome que
figura no romance) e a confissão da ignorância como que vexou as
senhoras presentes ao serão.
A irmã do cónego Dias julgou de seu dever elucidar:
− «Está entrevadinha de todo, senhor pároco! Parece
uma alminha de Deus! Os bracinhos são isto! − E mostrava o dedo mínimo.
− Para a gente a ouvir é necessário pôr-lhe a orelha ao pé da boca!».
A seguir, coube a D. Joaquina Gansoso a vez de expor
o que sabia, quando o Padre Amaro a interrogou − «Mas que faz então a
Santa?».
− «Tudo, senhor pároco: − está sempre de cama, sabe rezas para tudo;
pessoa por quem ela peça tem a graça do Senhor; é a gente apegar-se com
ela e cura-se de toda a moléstia. E depois, quando comunga, começa a
erguer-se, e fica com o corpo todo no ar, com os olhos erguidos para o
céu, que até chega a fazer terror.»
Transcrevo os dois excertos para melhor cotejo com o que passo a extrair
do opúsculo que o Abade de Cucujães, Rev.º JOÃO DOMINGUES AREDE,
escreveu e compilou como
«honroso testemunho da vida e virtude cristãs da Santinha da Arrifana».
Assim, numa passagem do capítulo XII, o probo investigador, reproduz o
estranho acontecimento: − «...o corpo − aquele corpo débil e quase mirrado
pelo sofrimento
erguia-se também visivelmente, durante algumas horas, na posição
horizontal, hirto e inflexível como uma estátua tumular, mas leve e
quase imponderável como visão mística»!
De entre os testemunhos recolhidos pelo
Rev.º AREDE,
permito-me recolher o do médico de S. João da Madeira,
Dr. Manuel Maciel Leite e Araújo, que declarou: − «Não
acredito muito em milagres de Santos, embora crente que não ateu; não
contesto, porém, que haja Santos porque já vi uma, a «Santinha da
Arrifana», cujos êxtase presenciei por várias vezes, ficando ela
durante os mesmos totalmente elevada no sentido horizontal, de mãos e
olhos abertos e fixos para cima. Para me inteirar deste facto insólito,
estendi
/
153 /
os meus braços e mãos, passando-as vagarosamente por
debaixo e ao comprido de todo o corpo, que vi efectivamente suspenso e
imóvel.
Não pode, portanto, restar a menor dúvida com respeito
à origem do episódio que serviu a EÇA para construir um
dos mais saborosos momentos de toda a sua criação literária.
Foi durante uma das estadias no Côvo que EÇA DE
QUEIRÓS teve oportunidade de conhecer a «Santinha da Arrifana».
Não é possível estabelecer a época em que se teria
verificado a visita, porque, também neste assunto, não se
encontra um só documento informativo.
Foi com certeza antes de 1875
− porque, nesse ano, faleceu a iluminada da Arrifana.
Teria sido entre Junho de 1871 e Novembro de 1872,
quero dizer, entre a saída de Leiria e a partida para Cuba?
E foi em 1871 que EÇA iniciou o esboço
de O Crime do
Padre Amaro, que só viria a ser publicado pela primeira
vez no ano de 1875, em fascículos da Revista Ocidental.
A sempre lamentável carência de elementos materiais
impede a reconstituição, já não digo perfeita, mas sofrível,
da jornada a Arrifana. Ao que relata o livro do sr. ANTÓNIO
CABRAL poucos acréscimos se podem ajuntar.
Recorro, uma vez mais, às recordações de D. José de
Castro, herdeiro do título e dos bens do Condado do Côvo.
EÇA DE QUEIRÓS encontrava-se de visita aos nobres amigos de Oliveira de Azeméis, acompanhado do inseparável
Conde de Resende. Certamente por sugestão da Sr.ª Condessa de Cascais, D. Maria Isabel de Castro Lemos, prima
direita dos Condes do Côvo e de Resende, que não ocultava
a sua devoção pela «Santinha da Arrifana» − de quem possuía uma ingénua imagem, religiosamente conservada
−, empreendeu-se, certo dia, um passeio ao lugar onde já
afluíam milhares de peregrinos. Do grupo, faziam parte,
além daqueles titulares, os marqueses de Monfalim, D. António de Castro e Lemos, EÇA DE QUEIRÓS e algumas senhoras das relações. A
caminhada teria sido feita a pé, com uma disposição magnífica, pelos
caminhos pedregosos que, na distância aproximada de uma légua, ligavam o Côvo à Arrifana.
Assistiram ao acto solene da comunhão da entrevada e
− contava a Sr.ª
Condessa de Cascais − ao êxtase sublime que se seguiu. Na tacanhez do
quarto humilde pairava uma
atmosfera densa, e os rostos, parados de pasmo, não desfitavam o corpo
hirto que se elevara mansamente do leito. EÇA DE QUEIRÓS devassava a
meia sombra através do monóculo penetrante...
O regresso fez-se com gravidade, num silêncio molesto
que traduzia a impressão sofrida pelos peregrinos. E EÇA
/
154 /
aparentava, seguramente, ser dos que mais se impressionara com a visão
sobrenatural.
Decorridos anos, muitos anos, a Sr.ª Condessa de Cascais continuava a recordar, com seus gestos expansivos e a
expressão de exuberante graciosidade, que era um dos seus
dons mais belos, aquele dia inolvidável e o instante mais
inolvidável ainda (se possível...) em que o José Maria perdera, de todo,
o halo de ironia que sempre lhe iluminava o rosto inteligente,
*
* *
Aqui terminam as achegas que pude recolher a propósito das visitas de EÇA DE QUE1RÓS ao solar do Côvo, cerca
de Oliveira de Azeméis, visitas que, como julgo demonstrado, exerceram nítida influência no espírito do admirável
burilador de A Ilustre Casa de Ramires.
|
O
solar do Côvo (Oliveira de Azeméis). vendo-se, ainda, a antiga
fábrica de vidros que Eça de Queirós visitou.
|
Por satisfeito me darei se elas vierem a ter alguma utilidade no estudo da sua obra intemporal.
_____________________
− As edições de A ilustre Casa de Ramires e de
A Capital compulsadas para
a redacção deste artigo são, respectivamente, a 8.ª ed, (ano de 1927) e
a Edição Única (ano de 1925).
ALBERTO COUTO |