Alberto Couto, Eça de Queirós e Oliveira de Azeméis, Vol. XI, pp. 145-154

EÇA DE QUEIRÓS

E OLIVEIRA DE AZEMÉIS

IDENTIFICAÇÃO DE UMA PERSONAGEM DE «A ILUSTRE CASA DE RAMIRES»

SEMPRE me seduziu o problema de identificação de pessoas e de lugares posto em A Capital, o romance póstumo de EÇA DE QUEIRÓS tão estranhamente desprezado, apesar das virtudes que sobrelevam alguns defeitos e certas dúvidas da sua génese, por quantos se interessaram, até agora, pelo estudo e exegese do espólio literário do grande romancista. Problema de identificação esse que, uma vez resolvido e aclarado, pode contribuir, de maneira apreciável, para a explicação das tendências do escritor no que concerne à escolha de ambientes para os seus romances.

O desempenho de funções burocráticas em Leiria havia de sugerir a EÇA o enquadramento propício a O Crime do Padre Amaro, cujas personagens − na afirmação do Conselheiro ANTÓNIO CABRAL − são fotografias exactíssimas e flagrantes de pessoas e tipos daquela cidade. Preocupou-me, por isso, desde logo, esquadrinhar o motivo por que EÇA DE QUEIRÓS localizou grande parte da acção de A Capital na pacata vila de Oliveira de Azeméis. A certeza, fundamentada em razões obviamente públicas, de que o romancista não devia ter procedido com meros informes de outiva, induziu-me a promover pesquisas que concluíram num resultado (feliz, no meu julgamento...) de que dei relato em duas despretensiosas crónicas em tempo insertas no "Diário Popular" e agora recopiladas, mercê de um desvanecedor convite, para os apontamentos então coligidos se não perderem sem registo definitivo e de modo a poderem tornar-se aproveitáveis a quem, por acaso, se proponha aproveitá-los.

É um modesto contributo, e uma homenagem apagada, na hora de bom senso em que, galhardamente, se põem em prática as mais acertadas iniciativas para comemorar o primeiro centenário do nascimento do sublime EÇA. / 146 /

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Embora não me fosse dado encontrar documentos que falem da permanência de EÇA DE QUEIRÓS em Oliveira de Azeméis, tenho como prova respeitável − e suficiente − o testemunho solene da tradição oral, que conta ter sido o autor de O Primo Basílio visita assídua do solar do Côvo, a pouco mais de um quilómetro da vila, à margem da estrada que segue até Vale de Cambra.

Nos agitados tempos da mocidade, foi companheiro de EÇA, na histórica viagem ao Oriente, D. Luís de Castro Pamplona, Conde de Resende, − e tal viagem é deveras elucidativa quanto à íntima amizade que os ligava. Acontece, ainda, que o Conde de Resende mantinha as melhores relações de intimidade com seus primos D. Gaspar Maria de Castro Lemos Magalhães e Meneses Pamplona, Conde do Côvo, e seu irmão D. António de Castro e Meneses Pamplona. Por sinal, o feitio irrequieto e imprudente do Conde de Resende não era muito do agrado dos familiares da Casa do Côvo, que ambicionavam companhia mais sossegada para os seus herdeiros.

A Condessa do Côvo, D. Sofia Adelaide Ferreira Alves de Castro Lemos, esposa de D. Gaspar, havia de ser, mais tarde, uma das testemunhas do matrimónio de José Maria Eça de Queirós com D. Emília de Castro Pamplona, irmã do Conde de Resende.

Há, pois, sobejas razões para acreditar na assiduidade de EÇA em visitar o nobre solar do Côvo, que, nem sei porquê, me arrasta o pensamento para o Paço de Santa Ireneia, a ilustre casa dos Ramires...

Destas relações, resultou uma viva simpatia, logo transformada em amizade, entre EÇA e o irmão do Conde do Côvo, D. António de Castro, na verdade figura atraente e digna de fidalgo de boa cepa, carácter cheio de nobreza e um espírito brilhante dentro da sua aparente indolência. D. António tinha a seu cargo a direcção da fábrica de vidros instalada em terras do Côvo que, no dizer das crónicas, foi a primeira a existir na Península. Era, além disso, um primoroso compositor de massas vidreiras, e as suas fórmulas, por célebres, depressa se tornaram invejadas.

Encontramos, a cada passo, em A Capital ou em A Ilustre Casa de Ramires, referências bem significativas, pelo menos, quanto à irrecusável impressão gravada no espírito perscrutador do romancista.

Atingindo este ponto, compete-me revelar que a tradição assevera ter EÇA DE QUEIRÓS aproveitado a figura de / 147 / D. António de Castro para criar uma das personagens mais humanas da sua galeria famosa − D. António de Villalobos − o possante amigo de Gonçalo Mendes Ramires.

E não é só o que conta a roda de oliveirenses mais apegados a estes assuntos de belas-letras. Diz-me o actual senhor das terras do Côvo, D. José de Castro, que já os seus antepassados murmuravam a quase certeza de que o D. António de Villalobos era, nem mais nem menos, que seu tio D. António de Castro, invocando, de início, a portentosa razão que vem da coincidência de a personagem de EÇA ter o apôdo de «Titó», enquanto o fidalgo do Côvo era conhecido, entre a gente da Casa, por «Pitó». Convenhamos em que a coincidência é extraordinária e faz admitir, plenamente, as mais ousadas suposições.

Entretanto, ao rever no romance os tópicos que caracterizam o herói eciano, deparo com vários pontos de contacto que mais e mais arreigam aquela impressão geral − e bem posso, por isso, ultrapassar os limites cautelosos da «quase certeza». Se não, veja-se:

− Tal como D. António de Villalobos, o «Titó» de A Ilustre Casa de Ramires, D. António de Castro, o «Pitó» para irmãos e primos, era «aquele homenzarrão excelente de velha raça alentejana» (pág. 30), que, bem querido por toda a vila, «a atulhava com os seus possantes membros, o lento ribombo do seu vozeirão» (pág. 30), «Hércules bonacheirão, que o seduzia (a Gonçalo Ramires) pela prodigiosa força, a incomparável potência em beber todo um pipo e em comer todo um anho, e sobretudo pela independência, uma suprema independência, que apoiada ao bengalão terrífico nada temia e nada desejava nem da Terra nem do Céu» (pág. 30), «o homem mais verídico do Reino, amando a Verdade com a antiga devoção de Epaminondas» (pág. 335), que «sob o seu vozeirão troante, a sua indolência bovina, possuía um espírito muito atento, muito penetrante» (pág. 335). Novos traços brotam através do livro, que se ajustam perfeitamente às duas figuras: − «os possantes ombros vergados...»
(pág. 334), «... riscava pensativamente com o bengalão a poeira da estrada. . .» (pág. 453), «o vozeirão do «Titó» ainda ribombou...» (pág. 449), «coçava lentamente a barba...» (pág. 443).

Que concluir, então, se a presença desta cópia de evidentes aproximações físicas e psicológicas me permitiu, qual sábio Cuvier, reconstituir, sem esforço, e com sofrível fidelidade, a figura solene e atlética do fidalgo do Côvo, que não conheci?

Na sua notável História Literária de Eça de Queirós, o escritor brasileiro ÁLVARO LINS opina ter EÇA reconhecido que «pelo estilo, é que um ser se realiza, se fixa e permanece», porque / 148 / «o estilo será assim um elemento de imortalidade e de perpetuidade dos seres; aquele que mais dá a sensação da continuidade no tempo».

Isto me ocorre a propósito do estilo empregado por EÇA para esquiçar o tipo do nobre «Titó». Atente-se no emprego intencional de termos, digamos, onomatopaicos, para nos incutir uma ideia tão precisa quanto possível dos aspectos físico e moral dessa personagem − homenzarrão, o ribombo do vozeirão, Hércules bonacheirão, o bengalão terrifico, o vozeirão troante, o vozeirão ainda ribombou....


OUTRAS PERSONAGENS E OUTROS

AMBIENTES DE «A ILUSTRE CASA

DE RAMIRES» E DE «A CAPITAL»

BALZAC tinha por hábito deslocar-se à província para melhor observar os lugares destinados à acção dos seus romances futuros e para conhecer uma cara indígena digna do seu apreço literário; em Saumur, por exemplo, deparou com os tipos que lhe permitiram moldar a protagonista de Eugénia Grandet e o sórdido avarento que era seu pai; ALPHONSE DAUDET costumava seguir os transeuntes para lhes estabelecer o estado civil, depois de lhes vigiar os modos e os tics pessoais − o que lhe aliviava a imaginação...

EÇA não carecia de preparação pensada para encontrar material porque facilmente o topava num encontro imprevisto, durante qualquer das muitas viagens que o esgotaram, ou através de uma simples amizade pessoal. Será oportuno recordar o que o romancista escreveu a FIALHO por este ter duvidado da naturalidade de certas cenas e de algumas personagens de Os Maias: «Tudo isto é visto, notado em flagrante e por mim mesmo estudado sur place» (1).

Sobejavam-lhe perspicácia e imaginação viva para não desprezar os ricos mananciais que brotavam à sua volta. O sábio Tópsius devia-o ter encontrado no Egipto, na pessoa do indiferente senhor Mariett, director de Museu; BULHÃO PATO serviu, por certo, para modelar o grotesco poeta Alencar e nem o seu violento desmentido pode apagar a impressão dominante; Júlio Teles, de Leiria, apareceu incarnado no Artur Couceiro de O Crime do Padre Amaro; o seu rendeiro de Vila-Nova, no Baixo-Douro, José Pinto de Sousa, foi / 149 / fielmente retratado em A Cidade e as Serras(2); Eduardo Prado forneceu traços para o Jacinto e, ao que se julga, para Fradique. E não se afirma, com razoável fundamento, que há muito do próprio EÇA nesse mesmo Fradique, elegante e podre de spleen e de civilização?

Sigo, agora, a desvendar novo rumo que pode conduzir à identificação do conspícuo Vasco da Conceição Pedroso, o boticário de A Capital.

No dizer de EÇA, ao Vasco farmacêutico «pouca gente lhe tinha visto o rosto todo: com a testa e os olhos sempre cobertos pela pala enorme do boné de pano, o queixo e a boca constantemente abafados num cache-nez roxo, mostrava apenas a Oliveira de Azeméis um nariz bicudo e lustroso. Vivia numa irritação permanente. E todo o dia era pela botica um passear furioso, fungando, fazendo estalar violentamente os dedos, com sacudidelas desesperadas da cabeça (...) mastigando em seco (...) como se a vida lhe soubesse mal. Ninguém explicava na vila aquele azedume de hipocondríaco» (pág. 58). Mais adiante: «Mostrava as repas grisalhas que lhe cobriam o crânio estreito e o cache-nez, alargado, descobria um queixo mole, que lhe fugia para as cordoveias do pescoço. E a cabeça, emergindo-lhe assim dos agasalhos, com aquela saliência do nariz agudo, lembrava a de um pássaro pelado» (pág. 58).

Tão depressa foi lançada à voracidade do público a edição de A Capital, logo os leitores oliveirenses descobriram, ou julgaram descobrir, sob a figura do Vasco Pedroso, a personalidade inconfundível e popularíssima de Joaquim Ferreira de Araújo e Silva, o «Joaquim da Botica», estabelecido que fora numa casa já demolida e que existiu no local onde hoje está uma loja de ourives, à esquina da estrada para a Estação do Caminho de Ferro.

O estabelecimento do «Joaquim da Botica» era muito frequentado pela rapaziada estudiosa das Universidades do Porto e de Coimbra, que por ali se demorava, em tempo de férias, a manter dois dedos de conversa com fidalgos da região ou a desfrutar o proverbial mau génio do velho boticário com partidas sem conta. É inteiramente crível, portanto, que EÇA tenha conhecido o «Joaquim da Botica» pois que D. António de Castro também emparceirava na tertúlia da casa.

Assim mo afirmam e descrevem. Assim o descrevo, legando ao juízo de cada leitor o direito de considerar estes factos que expõem nova e expressiva coincidência de tipos / 150 /

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EÇA DE QUEIRÓS apresenta Oliveira de Azeméis com traços imprecisos e vagos em A Capital, aludindo apenas à sua «tranquilidade de vila bonita» −, o que bem pode ser uma impressão pessoal exteriorizada por um impulso de lembranças agradáveis, e ao Côvo: − ora são os passeios de Artur Corvêlo pelas estradas de Ovar ou do Côvo (pág. 54); ora é uma rapariguinha que vive «lá para o pé da estrada do Côvo» (pág. 566). Refere-se à igreja de São Francisco (págs. 41 e 54), que nunca existiu na vila, mas, em contraposição, não oculta a mais vibrante das sensações recebidas quando regista, em vários trechos do livro, «a maravilha da fábrica de vidro" (pág. 46) e as visitas de Corvêlo «à fábrica de vidro do Còvo».
A fábrica onde, como disse antes, pontificava D. António de Castro, o grande amigo de EÇA, que se esmerara na composição de fórmulas vidreiras.

Não é despropósito, nesta altura, apontar que, em A Ilustre Casa de Ramires, também aparecem duas referências significativas nas passagens que transcrevo: − «Num trote folgado passara à Fábrica de Vidros, depois o Cruzeiro sempre coberto pelas pombas que esvoaçam do pombal da Fábrica» (pág. 148) e, mais longe (pág. 264), «reconheceu aquele caçador que já uma tarde, no lugar de Nacejas, ao pé da Fábrica de Vidros, o mirara com arrogância...».

Nem por um segundo hesito em acreditar nas gratas recordações que EÇA DE QUEIRÓS levou das suas permanências em Oliveira de Azeméis e no Côvo, tão gratas e de tal poder que não se diluíram no intervalo entre a gestação de A Capital (1878) e a de A Ilustre Casa de Ramires (1889), onze anos bem estirados. E ninguém me arranca da ideia que, no baptismo da serena e burocrática cidadezinha de Oliveira, − do último daqueles romances, paraninfou, com todas as honras, a vila de Oliveira de Azeméis.

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Não me repugna acreditar, ainda, que haja determinadas sugestões do velho botequim oliveirense do largo de Santo António no típico botequim da Corcovada, de A Capital, onde borbulhavam a irreverência e o espírito revolucionário da gente moça e que «tinha ao fundo, para os íntimos, entre a cozinha e a estrebaria, um cubículo com uma mesa de pinho e mochos de palhinha» (pág. 78). / 151 /

Na casa da Corcovada, o sol «atravessava a saleta fazendo parecer mais triste o soalho enegrecido, o papel de ramagens, azuis riscado de fósforos, a cortina de paninho vermelho sobre a porta envidraçada da cozinha» (pág. 132). E, depois, havia ali um bilhar onde Artur Corvêlo ensaiava «carambolas melancólicas» em despique com o finório do Rabecaz.

Pois sucede que o botequim existente no largo de Santo António, em Oliveira de Azeméis, num prédio também já desaparecido, era pertença de umas damas geralmente conhecidas pelas «Senhoras do Botequim». Naquele lugar se reunia a fina flor da vila e arrabaldes, a denotar preferência pelos acepipes fabricados na cozinha da casa e pelo monumental bilhar, que era, sem dúvida, o mais aprazível divertimento da época. Por lá se demorava o fidalgo do Côvo, D. António, e ainda há quem se lembre da proeza enorme por ele cometida de erguer, sem qualquer ajuda, apenas com o poder dos ombros, o bilhar monstro, com um homem sentado em cada ponta!

Teria EÇA testemunhado o espantoso feito, dele se recordando quando concedia a D. António de Villalobos, o magnífico «Titó», atributos de Hércules − «homemzarrão de ombros possantes»?

Há em EÇA o pendor para os tons nebulosos na pintura das terras onde situa a vida dos seus romances. Essa vida, que tem podido resistir ao tempo, dimana do desenho das personagens, das suas atitudes e, principalmente, da sua alma. Razão tinha BAUDELAIRE em proclamar que o aspecto das cidades se modificava mais depressa que o coração dos homens...


VISITA DE EÇA DE QUEIRÓS

À «SANTINHA DA ARRIFANA»

Para corroborar a afirmativa de que EÇA DE QUEIRÓS era «um escritor mais de observação do que de fantasia», cita o sr. Conselheiro ANTÓNIO CABRAL, na sua obra sobre o romancista, um exemplo que interessa muito directamente ao modesto trabalho que pretendo levar a termo.

Trata-se da visita que EÇA fez, certo dia, à freguesia de Arrifana, no concelho de Vila da Feira, para conhecer, de perto, o caso então célebre da visionária que «o povo ingénuo e simples venerava como santa» e já era conhecida no Norte por «Santinha da Arrifana».

Chamava-se Ana de Jesus Maria José Magalhães e nascera aos 19 de Agosto de 1811 no lugar do Outeiro de Baixo da Rua, na nomeada freguesia. Eram seus pais José Dias Leite de Resende e Clara Joaquina. Aos 14 anos, ficou / 152 / entrevada devido a um entorpecimento das pernas e aos 16 manifestou-se um aneurisma. Durou cerca de 46 anos o seu sofrimento, suportado com muita resignação, até que se finou às 12 horas do dia 25 de Março de 1875, em «Odor de Santidade», como se lê no registo paroquial.

Não há dúvida, como alega o biógrafo de EÇA DE QUEIRÓS, que o caso foi, mais tarde, evocado, nos seus tópicos essenciais, em O Crime do Padre Amaro, no «trecho admirável e flagrante de realismo, de exactidão e de verdade em que EÇA dá conta do serão de beatas em casa da S. Joaneira».

..O Padre Amaro nunca ouvira aludir à «Santa da Arregaça» (nome que figura no romance) e a confissão da ignorância como que vexou as senhoras presentes ao serão.

A irmã do cónego Dias julgou de seu dever elucidar:

− «Está entrevadinha de todo, senhor pároco! Parece uma alminha de Deus! Os bracinhos são isto! − E mostrava o dedo mínimo. − Para a gente a ouvir é necessário pôr-lhe a orelha ao pé da boca!».

A seguir, coube a D. Joaquina Gansoso a vez de expor o que sabia, quando o Padre Amaro a interrogou − «Mas que faz então a Santa?».

− «Tudo, senhor pároco: − está sempre de cama, sabe rezas para tudo; pessoa por quem ela peça tem a graça do Senhor; é a gente apegar-se com ela e cura-se de toda a moléstia. E depois, quando comunga, começa a erguer-se, e fica com o corpo todo no ar, com os olhos erguidos para o céu, que até chega a fazer terror.»

Transcrevo os dois excertos para melhor cotejo com o que passo a extrair do opúsculo que o Abade de Cucujães, Rev.º JOÃO DOMINGUES AREDE, escreveu e compilou como «honroso testemunho da vida e virtude cristãs da Santinha da Arrifana».

Assim, numa passagem do capítulo XII, o probo investigador, reproduz o estranho acontecimento: − «...o corpo − aquele corpo débil e quase mirrado pelo sofrimento erguia-se também visivelmente, durante algumas horas, na posição horizontal, hirto e inflexível como uma estátua tumular, mas leve e quase imponderável como visão mística»!

De entre os testemunhos recolhidos pelo Rev.º AREDE, permito-me recolher o do médico de S. João da Madeira, Dr. Manuel Maciel Leite e Araújo, que declarou:  − «Não acredito muito em milagres de Santos, embora crente que não ateu; não contesto, porém, que haja Santos porque já vi uma, a «Santinha da Arrifana», cujos êxtase presenciei por várias vezes, ficando ela durante os mesmos totalmente elevada no sentido horizontal, de mãos e olhos abertos e fixos para cima. Para me inteirar deste facto insólito, estendi / 153 / os meus braços e mãos, passando-as vagarosamente por debaixo e ao comprido de todo o corpo, que vi efectivamente suspenso e imóvel.

Não pode, portanto, restar a menor dúvida com respeito à origem do episódio que serviu a EÇA para construir um dos mais saborosos momentos de toda a sua criação literária.

Foi durante uma das estadias no Côvo que EÇA DE QUEIRÓS teve oportunidade de conhecer a «Santinha da Arrifana».

Não é possível estabelecer a época em que se teria verificado a visita, porque, também neste assunto, não se encontra um só documento informativo.

Foi com certeza antes de 1875 − porque, nesse ano, faleceu a iluminada da Arrifana.

Teria sido entre Junho de 1871 e Novembro de 1872, quero dizer, entre a saída de Leiria e a partida para Cuba?

E foi em 1871 que EÇA iniciou o esboço de O Crime do Padre Amaro, que só viria a ser publicado pela primeira vez no ano de 1875, em fascículos da Revista Ocidental.

A sempre lamentável carência de elementos materiais impede a reconstituição, já não digo perfeita, mas sofrível, da jornada a Arrifana. Ao que relata o livro do sr. ANTÓNIO CABRAL poucos acréscimos se podem ajuntar.

Recorro, uma vez mais, às recordações de D. José de Castro, herdeiro do título e dos bens do Condado do Côvo.

EÇA DE QUEIRÓS encontrava-se de visita aos nobres amigos de Oliveira de Azeméis, acompanhado do inseparável Conde de Resende. Certamente por sugestão da Sr.ª Condessa de Cascais, D. Maria Isabel de Castro Lemos, prima direita dos Condes do Côvo e de Resende, que não ocultava a sua devoção pela «Santinha da Arrifana» − de quem possuía uma ingénua imagem, religiosamente conservada −, empreendeu-se, certo dia, um passeio ao lugar onde já afluíam milhares de peregrinos. Do grupo, faziam parte, além daqueles titulares, os marqueses de Monfalim, D. António de Castro e Lemos, EÇA DE QUEIRÓS e algumas senhoras das relações. A caminhada teria sido feita a pé, com uma disposição magnífica, pelos caminhos pedregosos que, na distância aproximada de uma légua, ligavam o Côvo à Arrifana.

Assistiram ao acto solene da comunhão da entrevada e − contava a Sr.ª Condessa de Cascais − ao êxtase sublime que se seguiu. Na tacanhez do quarto humilde pairava uma atmosfera densa, e os rostos, parados de pasmo, não desfitavam o corpo hirto que se elevara mansamente do leito. EÇA DE QUEIRÓS devassava a meia sombra através do monóculo penetrante...

O regresso fez-se com gravidade, num silêncio molesto que traduzia a impressão sofrida pelos peregrinos. E EÇA / 154 / aparentava, seguramente, ser dos que mais se impressionara com a visão sobrenatural.

Decorridos anos, muitos anos, a Sr.ª Condessa de Cascais continuava a recordar, com seus gestos expansivos e a expressão de exuberante graciosidade, que era um dos seus dons mais belos, aquele dia inolvidável e o instante mais inolvidável ainda (se possível...) em que o José Maria perdera, de todo, o halo de ironia que sempre lhe iluminava o rosto inteligente,

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Aqui terminam as achegas que pude recolher a propósito das visitas de EÇA DE QUE1RÓS ao solar do Côvo, cerca de Oliveira de Azeméis, visitas que, como julgo demonstrado, exerceram nítida influência no espírito do admirável burilador de A Ilustre Casa de Ramires.

O solar do Côvo (Oliveira de Azeméis). vendo-se, ainda, a antiga fábrica de vidros que Eça de Queirós visitou.

Por satisfeito me darei se elas vierem a ter alguma utilidade no estudo da sua obra intemporal.

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− As edições de A ilustre Casa de Ramires e de A Capital compulsadas para a redacção deste artigo são, respectivamente, a 8.ª ed, (ano de 1927) e a Edição Única (ano de 1925).

ALBERTO COUTO

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(1)Cons. ANTÓNIO CABRAL em Eça de Queirós, 1.ª ed.

(2)Cons. ANTÓNIO CABRAL, Idem. 

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