QUEM deveria escrever estas palavras de congratulação
pela entrada do Arquivo do Distrito de Aveiro no décimo primeiro
ano da sua prestimosa existência era um historiador das regiões do norte
do país. Esse é que teria muito que dizer em aplauso do labor dos homens
que fundaram e têm mantido o Arquivo. E fá-lo-ia com a especial
autoridade de quem revolvera o mesmo acervo documental e Investigara no
mesmo campo de estudos. Mas eu nem sou historiador, nem sequer sou de
Aveiro ou seu termo, com grande perda do meu enraizamento espiritual na
boa terra portuguesa.
O que os estudos de história local e regional me poderiam
sugerir já o disse há muitos anos noutra revista, irmã mais velha do
Arquivo, irmã nas experiências dos sacrifícios que sempre importam
iniciativas puramente intelectuais: Limiana, 1912. Depois, vi,
com reconhecimento, que esses meus conceitos e alguma diligência pela
introdução da história regional no ensino eram recordados com
benevolência pelo espírito gentil do Dr. LARANJO COELHO, quando em
eruditas conferências na Academia das Ciências encareceu a importância
das monografias locais para a história pátria e para o saber geral.
Também muitos anos decorridos verifiquei, com prazer, que no Brasil não
haviam passado despercebidas tais ideias, as do Dr. LARANJA COELHO e as
minhas.
Aquele país, pela sua vastidão, pela sua escassez
demográfica e pelas dificuldades das comunicações, tem, a par da sua
vida nacional, uma variada e intensa vida regional ou estadual. E os
institutos histórico-geográficos, bem como as academias de letras que se
disseminam pelos Estados, são focos de estudos regionais, na maior
compreensão, desde a geologia ao movimento político e a todas as
actividades do primeiro plano.
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Os estudos de história regional, como os que o Arquivo propugna e
pratica, não somente integram o corpo das nossas notícias sobre a
história pátria
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que é em grande parte a síntese dos comportamentos locais
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mas também definem e avigoram a consciência regional.
Rememorando esses tais comportamentos nas grandes horas da história,
como revoluções e invasões, guerras e reformas económicas, e fazendo
justiça aos homens da região que nesta ou no cenário mais vasto do país
exerceram actividades beneméritas e preclaras, esses estudos servem a
causa da verdade e da justiça, e delineiam a personalidade moral da
região, de «la patria chica», no dizer espanhol.
Esta personalidade de cada região tem um alicerce geomorfológico, tem
também uma fisionomia económica e não deixa de ter uma forma de actuação
no primeiro plano do drama do país. Não é o comportamento histórico da
população desse trato de território que lhe desenha o carácter da
região; é a base geográfica e são as raízes económicas as causas que
determinam a associação dos interesses com as possibilidades de vida e
são elas que apontam certo rumo às formas de trabalho da população, ao
regime da propriedade e aos movimentos demográficos. E é desse fundo
comum e bem caracterizado que emergem os grandes homens do primeiro
plano, ou impelidos por misteriosa força interior ou arrastados pelos
ventos gerais da história.
Será sempre bem difícil explicar porque foi que
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exemplificando com essa mesma região do Vouga
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porque foi que Aveiro produziu no século XVI aquela típica figura
multímoda e bem renascentista do Padre Fernão de Oliveira, heterodoxo,
técnico da navegação, da guerra naval e da arquitectura marítima,
militante do espírito crítico e aventureiro de grandes curiosidades; e
no século XIX o verbo mais eloquente da liberdade, aquele inolvidável
José Estêvão, sem medo e sem mácula.
Quisera, por isso, que estes centros ou núcleos de estudiosos regionais,
como o que se grupa em torno do Arquivo do Distrito de Aveiro, ao
mesmo tempo investigassem o comportamento histórico da sua região,
explicando-o pela fisionomia económica, biografassem os seus homens
ilustres, os que ficaram e os que partiram, e promovessem também um
inquérito minucioso sobre o conjunto económico e moral da sua, região no
passado e no presente. Fazer isso o
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mesmo é que descobrir horizontes para o futuro, com sugestão de
virtualidades activas.
A historiografia faz bem uma aragem de realismo prático e
interessado. Os interesses são a maior federação dos afectos e a maior
solidariedade dos espíritos. E quem ama a sua terra com entranhado amor,
suprime da composição desse amor o tempo, que é o seu maior inimigo;
ama-a no passado e no futuro, ama-a num perpétuo presente.
Todas estas coisas são truísmos, que não era necessário
dizer a quem muito bem as conhece e sente, como os homens esclarecidos
que mantêm e que lêem o Arquivo do Distrito de Aveiro.
Elas significam apenas um aplauso afectuoso a uma
nobilíssima iniciativa.
Lisboa, 3 de Março de 1945.
FIDELINO DE FIGUEIREDO
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