Laudelino de Miranda Melo, A noite de Judas em Travassô, Vol. X, pp. 207-212.

REGIÃO DE VOUGA

A NOITE DE JUDAS EM TRAVASSÔ

I

Travassô, sede de freguesia, pertence ao concelho de Águeda e distrito de Aveiro.

Com o seu amplo adro da igreja e a sua vasta paisagem é uma povoação interessante, grande e progressiva, que já existia quando da fundação da nacionalidade, sendo muito conhecida por distantes terras em virtude dos seus afamados santinhos milagrosos muito venerados Santos Mártires de Marrocos.


JÁ vem de anos atrás a usança simbólica, nesta freguesia, com larga repercussão pela redondeza, do espectaculoso enforcamento de Judas Iscariote, aquele apóstolo que, segundo a tradição, vendeu Jesus Cristo por trinta dinheiros. O referido acontecimento, com mais espectáculo ou menos espectáculo, mais gente ou menos gente, tem-se realizado anualmente. E, por tal motivo, é costume haver rivalidades entre os rapazes do Lugar da Igreja e os do Lugar de Baixo, caprichando cada um dos grupos para que o seu Judas mereça mais aplausos do público do que o Judas do grupo contrário.

Essas rivalidades estimulam o brio dos rapazes e dos dirigentes, comparecendo quase sempre ao movimentado espectáculo muito público dos arredores (verdadeira romaria!), resultando a tragédia iscariótica de Travassô em assunto vivamente discutido e apaixonando muita gente por dias a fio.

Assim, os dois simpáticos grupos, muito antes da noite do espectáculo, que é pela Quaresma e se realiza via de regra no Adro da Igreja (hoje Largo dos Santos Mártires), pedem auxílio em dinheiro pelas portas dos moradores da / 208 / freguesia. Depois, os artistas da especialidade idealizam ou engendram, muito em segredo, a sua genial comédia trágico-dramática; e, mãos à obra, portas trancadas, sempre em grande segredo, trabalhando noite a dentro, durante semanas, depois dos afazeres diários da lavoura, assim que chega o grande dia e que as horas do espectacular acontecimento se aproximam, os rapazes e os dirigentes dos dois simpáticos grupos, nervosos, enigmáticos, inflamados, vivendo aquele «histórico» momento de tão grande e misterioso mutismo (para que nada se saiba...), dão-nos a impressão de que no subconsciente lhes pesa a gravíssima e tremenda responsabilidade de um fatal cataclismo que pudesse abalar alicerces milenários ou o imenso segredo de uma conjura de Estado que fizesse ruir tronos e civilizações multi-seculares.

Sim, senhores! Briosos rapazes! Simpáticos e silenciosos rapazes!

*

Chegam, finalmente, as onze horas daquela grande noite!

Brilham, na escuridão das alturas, algumas estrelas, e o ar é friorento. O amplo Adro da Igreja de Travassô regorgita de Povo. É já multidão. Há automóveis das vilas de Águeda e de Albergaria-a-Velha e camionetas de longínquas terras, arrumadinhas aos lados, à espera do regresso dos que vieram ver aquilo. Vêem-se pessoas humildes e pessoas categorizadas, desde os cavalheiros engravatados e senhoras com os seus agasalhos, até às outras gentes simples com os seus casacos grossos, gabões, sobretudos, tamancos, xailes, chinelas, lenços pela cabeça a cobrir as orelhas das mulheres e, em todos, muito entusiasmo a reflectir-se nos gestos nervosos e no brilhar dos olhos incendiados. Estão ali representadas, por suas gentes, as localidades de Ois da Ribeira, Casal de Álvaro, Oronhe, Águeda, EspinheI, Mourisca, Trofa, Palhaça, Segadães, Fontinha, Alquerubim, Albergaria-a-Velha, Almear, Eirol, São João de Loure, Pinheiro, Horta, Eixo, Ponte da Rata, Carcavelos, Taipa, Requeixo, Carregal, e outras mais.

De repente, alguém berra:

− Lá vem! Lá vem!

− É agora, é agora, bradam outros.

Toda a gente se mexe, e remexe, e se aproxima, e se aperta, a falar, a gesticular, aos encontrões. Toda a gente, de nariz no ar, espicha os pescoços a querer ver, por cima da onda humana, o que vem lá! / 209 / [VoI. X - N.º 39 - 1944]

Os mais baixos esticam-se nas pontas dos pés. São disputados, a empurrão, os melhores lugares, para se presenciar o grandioso, o magnífico espectáculo. Gente afoita trepa a árvores, escala muros, sobe a telhados.

*

− Aquele é o Judas do Lugar da Igreja! informa alguém num desabafo inflamado, nervoso, delirante.

Mas há afirmações de que o do Lugar de Baixo é coisa de mais jeito, porque vem num carro a capricho com rodas enfeitadas e com espampanante séquito, que veste bíblicas e curiosas indumentárias! Um carro daqueles à moda dos arcaicos tempos, que lembra os dos vencedores romanos nas arenas! Coisa de muito jeito, sim senhores! E até aparecem Herodes, e Pilatos a lavar as mãos, e o bom e o mau ladrão, e Caifaz, e Madalena arrependida! Tudo em tamanho natural. É porque a dirigir aquilo andou ali dedo dos artistas Marques Elias e Manuel Joaquim Laranjeira − dois sabedores...

Contudo, um rapazote trigueiraço e entroncado, moço de lavoura, que julga estar no segredo dos deuses diz, do alto de um muro, que não; que a estrondosa vitória caberá ao Judas do Lugar da Igreja... (ora vocês verão, berra, convicto) e explica: − porque mete fusilaria e bichas de rabiar, e porque o Judas trazendo na mão a bolsa com o dinheiro da traição e a correr num arame a propósito esticado no Adro, acabará, depois da fusilaria, por sucumbir tragicamente queimado, como merecido castigo da sua feia acção. E aparecem alguns apóstolos de barbas: S. Pedro, S. Paulo, e ainda outros principais. E o testamento, então, nem se fala! Que aquilo é coisa de se poder ouvir e foi feito por quem sabia; e porque a dirigir o grupo deste Judas lá andaram os antigos mestres Salvador Rodrigues, João Matos, e José da Júlia, que tinham jeito e sabiam; e também o António da loja lá era intrometido... Haviam de ver!...

Há partidários apaixonados. Gesticula-se, berra-se, discute-se. Aqui e além ouve-se um ou outro palavrão...

O mulherio que, depois da ceia, veio de perto e de afastadas terras, mete-se e aperta-se por entre os homens, muito sem-cerimónia, muito sensualão...

E os simbólicos Judas dos dois simpáticos grupos daqueles briosos rapazes, Judas de palha, bonecos sem vida, que tantas vidas atraem ao Adro de Travassô, ali ficam reduzidos a nada − esqueletos de arame dependurados da tradição de / 210 / uma hora trágica − depois de pessoa competente e bem falante haver lido do alto de um velho muro o magistral testamento dos «haveres» que os Judas deixam a estes rapazes ou àquelas raparigas.

Aproximadamente há dez anos presenciei por duas vezes, uma em cada ano, os espectáculos dos Judas em TravassÕ.

A descrição que faço reporta-se a uma dessas vezes. E muito embora por outras localidades da região também, pela Quaresma, queimassem ou enforcassem o Judas (o que ainda se faz), a verdade é que esse acontecimento nem de longe atingia a espectaculosidade aparatosa das testas dos Judas em Travassô.

Transcrevo a seguir alguns versos do testamento de um Judas, versos feitos pelo «poeta» de um dos grupos para a cerimónia final. Tais testamentos, porque sempre visam os derriços e as vidas públicas e íntimas dos rapazes e das raparigas da localidade, mudam de ano para ano. É velho hábito atingir só os solteiros e não os já casados. São declamados, como atrás digo, das alturas de um muro.

Copiado do original:


               1
Eu sou o Judas malvado
Eu sou o Judas traidor
Todos vós bem sabeis
Que vendi Nosso Senhor


               2
Eu fiz o meu testamento
Com muito boa divisão
Para não ter falta alguma
Chamei para o fazer o sr. padre Rachão
(Por já não poder vir o sr. Júlio da Conceição)


− Ao tempo ainda era vivo o sr. P.e Rachão, e há muito já falecido o Sr. Júlio da Conceição, dois saudosos e distintos notários em Águeda


               3
Ali temos a Maria Pires
Pequena do meu intento
Deixo-lhe alhos, arroz, azeite e vinagre
Para o dia do seu casamento

/ 211 /

               4
As minhas luvas de plica
Ficam à Cazemirinha
Para quando for a passeio
Lá para os lados da Fontinha


               5
Deixo à Rosa Lopes gorducha
Uma prenda muito boa
Para deitar urina aos rapazes
Que lhe vão serrar a patroa


               6
Deixo um tapete à Rosalina
Que tem um coração sensato
Para estar à janela com o namoro
A catar as pulgas ao gato


               7
Ao Diamantino deixo
A minha bela jaqueta
E quatro metros de corda
Para tocar à sineta


               8
Ao Arnaldo catita
E à Elvira da cobiça
Deixo gravata e colete
Para ambos levarem à missa


− e depois de muitos outros versos, todos neste mote e sem pontuação, termina o inspirado poeta do Judas:


               9
Andei de um lado pró outro
Para virem todas a eito
Para contentar raparigas
É preciso muito jeito


               10
São muito desconfiadas
Se as coisas não lhe calham bem
Mas se lhes toca o namorado
Não dizem nada à mãe

/ 212 /

               11
Os rapazes são marotos
Mas elas são matreiras
Quem não quer ser crestado
Não deve pular fogueiras


               12
Adeus rapazes e raparigas
Adeus toda a multidão
Dentro em pouco o meu corpo
Será pendurado na figueira
ou transformado em carvão.


− O «poeta» admitia já o corpo do Judas feito em carvão por saber que seria queimado pela pólvora da fusilaria. E onde diz serrar a patroa refere-se ao velho hábito que há pelas nossas aldeias de Serrar a Velha.

Aveiro. Agosto, 1944.

LAUDELINO DE MIRANDA MELO

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