FRANCISCO PEREIRA MOREIRA,
em Ovar, foi, na realidade, pessoa de importância social e das que se
tratavam, entre poucas mais, segundo os mais miúdos parágrafos da
nobreza.
Filho de D. Maria Pereira e
de João Moreira, casou com D. Joana Baptista Tomásia Pereira Valente,
senhora de sangue insuspeito e imaculado de judaísmo. Isso lho garantia
seu pai, António Pereira Valente, alferes das Ordenanças de Ovar e
familiar do Santo-Ofício desde 20 de Dezembro de 1729. Sua mãe, D. Maria
Josefa Caetana Pereira Valente, vinha do escrivão do Público-Judicial e
Notas, Manuel Valente Fragoso, pessoa abastada e das primeiras que
ergueram sobrado junto ao rio da Senhora da Graça e por isso era
conhecido, respeitosamente, pelo Valente do Rio.
Este Fragoso, no dizer do
Dr. JOÃO FREDERICO, memorialista de Ovar há muito falecido, com os
Pichorros e poucos mais, era pessoa dinheirosa e das de banco no arco
cruzeiro da Igreja. Quando foi da reconstrução desta, logo no limiar da
segunda metade do século XVII, como não conseguisse sepultura dentro
dela, a seu agrado, fez-se protector da Capela de Nossa Senhora da
Graça, então também em obras, e ajudou a enriquecê-la. Nela o deitaram
mais tarde, para o eterno repouso, assinalando-o com sua pedra de armas,
infelizmente perdida.
Moreira não era pessoa que
se resignasse a viver, exclusiva e comodamente, dos rendimentos dos seus
fartos haveres. Quis um modo de vida. Foi cirurgião e clinicou na sua
terra antes de, nessa qualidade, ter seguido para a índia, no tempo do
Vice-Rei, Marquês de Alorna, batendo-se honradamente e prestando seus
serviços ao próprio Governador, em momentos bem apertados. Por tanto,
mereceu apreciado atestado do seu saber e coragem.
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De volta a Portugal, arribou a Lisboa nas vésperas do terramoto, não lhe
sendo possível despachar imediatamente a sua numerosa e valiosa bagagem.
Sacudida, revolvida a cidade, que o Tejo não se dispensou de inundar e
os incêndios devastaram, naquela manhã trágica de Novembro, só duas
malas, das muitas que trouxera abarrotadas de preciosidades. encontrou e
salvou. Restos da maior quantia, salvaram-se três imagens, que são
outras tantas preciosidades, duas delas de seu único dente de marfim e a
terceira de madeira e marfim.
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Francisco Moreira uma vez em
Ovar, cavaleiro professo da Ordem de Cristo, obtida a indispensável
Provisão, passou a exercer a sua principal actividade como Escrivão da
sua Câmara e Almotaçarias. Deste lugar, mais tarde dispôs por permissão
do Senhor Infante D. Pedro, de 30 de Junho de 1774, em benefício de seu
sobrinho e genro, António José Chaves Pereira Valente, por este ter
desposado, em 20 de Abril de 1793, sua filha D. Antónia Cândida Xavier
Pereira Valente.
No desempenho do seu cargo
foi zeloso e sério. Mas nele sofreu, em virtude de disputa política em
que se empenhara, a grave afronta de ser preso, vendo assim quebrado o
privilégio de que gozava como cavaleiro de Cristo. Nessa qualidade só
poderia estar em ferros se merecesse morrer de morte natural ou civil.
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Oratório de pau preto,
do séc. XVIII,
existente em Ovar. |
Como mordomo da Ordem
Terceira de S. Francisco, de quem era, desde muito, particularmente
devoto, vira-a em acesa luta com o Vigário da freguesia, o Rev.º João
Bernardino Leite de Sousa, homem duro, rico, cioso da sua autoridade e
defensor, através de tudo, do que julgava o seu direito. Homem de
princípios, solidarizou-se com os colegas e em breve a paixão
empolgava-o, o que não era de estranhar pelos seus sentimentos
religiosos e pela responsabilidade do cargo
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que desempenhava. De parte-a-parte chegara-se àquele grau de calor em
que cada qual na defesa e no ataque, feita tábua rasa dos escrúpulos,
joga o melhor que pode e sabe os argumentos, as armas e a astúcia.
O Juiz e Eleitos da Igreja,
empurrados também para a baralha, onde, de resto, participavam com
opinião e incitamento, quase todos os grados da vila acusaram Francisco
Moreira de ter em seu poder uns autos da Barca, fonte que alimentava uma
rudimentar assistência predecessora do hospital da Câmara. Essa
acusação, que foi expediente de urgência, levou-o à cadeia, e ele, para
sacudir os ferros deI-Rei, houve que impetrar Provisão de D. Maria l,
que lha concedeu em 21 de Junho de 1779. Saiu da cadeia, mas continuou
preso em sua própria casa até restituir ou restaurar os autos à sua
própria custa.
No segundo quartel do século
XVIII construíram-se em Ovar, por fervor e ostentação particulares, duas
pequenas Capelas de que o público se veio a utilizar: a de Nossa Senhora
da Saúde, na rua Nova do Outeiro e a de S. Lourenço, à entrada da rua
das Figueiras. Esta, mandou-a construir o padre Ventura da Silva, que a
dotou por escritura de 18 de Maio de 1743. Aquela, foram a vontade,
teimosia e o brio do padre Valentim da Silva Brandão, do sangue dos
Pintos, de Paramos, que a ergueram; dotando-a em escritura de 7 de Julho
de 1735. Como não lhe bastassem os entraves erguidos pela inveja de um
colega, até o Prelado lhe não permitiu que dedicasse o templozinho à
invocação de Nossa Senhora das Dores e houve que conformar-se com a
vontade de quem de direito. |
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Nossa Senhora da Conceição,
imagem em marfim. |
Pessoa de conhecida nobreza,
«servindo-se com criados e bestas na estrebaria», Francisco Pereira
Moreira foi mais
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modesto na execução, mas, sem dúvida, mais fidalgo nos desígnios. Pediu
só para si e para os seus, para a prosápia da sua família, o que os
padres partilharam com toda a gente, e neste pormenor está o que os
aparta no sentir a mesma intenção e fins.
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Requereu em 21 de Junho de
1773 autos de Breve para um Oratório, simplesmente, testemunhando o
arrazoado com os depoimentos do
padre-cura João Rodrigues de Pinho e dos simples padres João Tomás, José
Rodrigues da Graça e João Pereira da Cunha. O papel foi logo bem
encaminhado. Clemente XIV, pelo Breve de 1 de Setembro seguinte,
autorizou que no Oratório se rezasse Missa diária, excepto no Natal,
Páscoa, Pentecostes e em outras festas mais solenes.
Nem a toda a gente, como é
óbvio e estava no espírito do impetrante, foi permitido assistir às
cerimónias. Era restrito o número e qualidade das pessoas, além dos
donos da casa, filhos, parentes consanguíneos e a criadagem. Mas se
pais e filhos fossem viver para o campo e se se acompanhassem do
Oratório, poderiam então ouvir nele Missa os seus hóspedes, que
fossem nobres. |
S.
Francisco de Assis,
imagem em marfim. |
Em 2 de Outubro foi
conseguido o Beneplácito e em 19 de Janeiro de 1774 o bispo do Porto
autorizou a celebração. Data, pois, deste dia, o Oratórii instalado na
vivenda de S. Tomé. Em 17 de Janeiro de 1777 o Prelado
concedeu-lhe a graça, de que não gozava, de poderem ali comungar.
Era o Oratório na parte do primeiro andar que vê o
nascente e o sul, um
compartimento acanhado servido por duas portas interiores e uma de
sacada, que lhe dava a luz
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do lado da epístola. Nele se guardou, por muitos anos, uma relíquia de
S. Francisco Xavier, glorioso Apóstolo das Índias, hoje perdida, mas
cuja autenticidade é confirmada por um Breve de 20 de Outubro de 1747,
passado por D. Lourenço I, então arcebispo de Goa e 20.º primaz.
Povoavam o altar um Cristo, uma Senhora da Conceição e um S. Francisco
de Assis olhando o crucifixo. São três maravilhas. Ricas pelo valor
material dos 42 centímetros
inteiriços do marfim de cada uma das duas primeiras, todas empolgam pela
beleza das esculturas. S. Francisco é a mais delicada, humana e bela, e
o pequeno Cristo que tem na mão direita é a miniatura muito perfeita da
Imagem maior.
Agora, encontram-se estas três perfeições fechadas num oratório de pau
preto, notável pelo seu interior, que mantém ainda uma incógnita em quem
o examina. Pintado? Forrado a papel, ou a seda? Tudo isto veio de longe
e é a amostra de bem maior quantia perdida para sempre na tragédia de
uma manhã de cataclismo.
Estas imagens nem sempre estiveram todas juntas. Partilhas de família
arrancaram uma delas − S. Francisco − à camaradagem das outras. Foi parar e
demorou-se, em Canedo, por ter pertencido a D. Joana Gertrudes Pereira
Valente, ali casada com o capitão Bernardo da Silva Tavares, senhora que
foi uma das filhas de Francisco Moreira. Por isso essa imagem não
figurou ao lado da Senhora da Conceição, outra beleza, graça e feitiço,
mesmo de olhos não muito iniciados, na Exposição de Aveiro, em 1882, que
foi a parada bizarra das grandes preciosidades do distrito.
Está, novamente, completo o trio. Mas o Oratório que Clemente XIV
concedeu pelo Breve de 1773, e que foi único
em Ovar, está há muito profanado. Dele topam-se ainda as imagens, os
Breves e um aspersório, que esteve também na Exposição.
E a lembrá-lo nas páginas desta Revista, como preito à memória do
ignorado artista das três maravilhas, documentadas com as fotos de Mário
Almeida, meu patrício, estas anémicas palavras de
Ovar, 25/1/44.
NOTA: Este trabalho foi elaborado sobre
notas amavelmente cedidas
pelo possuidor dos objectos referidos, Ex.mo Sr. Dr. Pedro Chaves.
ZAGALO DOS SANTOS |