A. Nascimento Leitão, A bacia de Arcachon e as ostras da laguna de Aveiro, Vol. X, pp. 5-10.

A BACIA DE ARCACHON

E AS OSTRAS DA LAGUNA

 DE AVEIRO

Do confronto da laguna aveirense com a Bacia de Arcachon, verifica-se que este acidente geográfico da costa da Gasconha é uma fossa marinha, com pontos de grande profundidade − uma baía ou pequeno mar interior, entre a planura arenosa das Landes e as dunas do litoral

A sua superfície líquida tem, na preia-mar, a forma de um triângulo equilátero de base ao sul, na qual fica a cidade. Abrange uma área 2 1/2 vezes maior que a da laguna de Aveiro, com extensos lodaçais, na baixa-mar, inúmeros baixios sempre submersos, e apenas uma ilha permanentemente descoberta.

Num dos ângulos da base fica a barra, natural e larga, mas obstruída por muitos bancos de areia, que variam constantemente de local e dimensões; no outro desagua, por um delta, o seu maior tributário − o pequeno rio Leyre; e pelo vértice do norte desce periodicamente, de um lago de nível superior ao do mar, um canal meio artificial, comandado por várias eclusas − o Lège.

Não tem, pois, a Bacia braços estendidos, como a laguna de Aveiro, a enlaçarem as terras do seu âmbito, num labirinto de canais naturais e esteiros, por onde as águas avançam e recuam, com o fluxo e refluxo das marés.

O Leyre nasce no planalto das Landes, e por ele segue, como que entorpecido, sem vales de altitude, sem grande inclinação nem afluentes de grande volume de águas. É um modesto rio da floresta, rumorejante no leito duro nalguns pontos, e sempre pitoresco, seja na sua garganta de grés, seja no seu trajecto por entre pinheiros, carvalhos, giestas, azevinhos, medronheiros, etc., não se lhe notando, porém, / 6 / expressivamente simbolizadas as idades da vida, como, por exemplo, no Vouga.

Sob o ponto de vista geológico, há uma particularidade na região de Arcachon, sobretudo no seu subsolo, um tanto semelhante ao que se observa na região de Aveiro.

O alios, grés quartzoso e ferruginoso, mais duro ou mais friável, vermelho ou amarelado, aflora em muitos pontos das Landes. Numas passagens faz o leito do Leyre, noutras aperta-lhe as margens, e, pela região, toma parte na alvenaria, sobretudo da construção rural − o que também, por vezes, sucede, como se sabe, com o arenito roxo de Eirol e com o calcário do tufo lacustre do subsolo de Aveiro.

Já há muito que a Bacia de Arcachon não tem marinhas de sal. Foram substituídas pelos viveiros de criação de peixes.

Também, em vez das suas ostreiras naturais (aonde foi definhando a Gravette, designação popular da Ostrea Edulis, e outras espécies locais), desenvolveram-se os parques para a cultura das ostras, isto é, reservatórios, nos quais o mar entra na enchente e sai na vazante, operando-se neles a multiplicação artificial das ostras, tantas delas descendentes das que da laguna de Aveiro ali foram introduzidas. Venceu na concorrência, pela sua grande vitalidade e proliferação, a Griphœa angulata, uma das várias espécies das ostras portuguesas.

Há cerca de 90 anos, por falta de uma adequada regulamentação na exploração das ostreiras de Arcachon, estavam estas quase completamente extintas.

Acudiu-lhes o naturalista Coste, que havia de deixar o seu nome ligado à ostricultura, pelos processos por ele empregados, conseguindo ver coroados de êxito, no fim de alguns anos, os seus aturados trabalhos de biologia experimental.

Tratou-se do cruzamento das espécies locais com outras importadas.

Diz-se que um navio com carregamento destes moluscos, procedente de Portugal, teve, por qualquer motivo, de lançá-los ao mar, num ponto do litoral da França, e que, multiplicando-se, originaram grandes ostreiras.

Não sei qual o local do alijamento da carga nem o porto de procedência das ostras nem a data do acontecimento. Mas sabe-se que por várias épocas foram introduzidas na Bacia de Arcachon ostras portuguesas, inclusivamente dos bancos da laguna de Aveiro, tendo sido um dos introdutores Oudinot − aquele mesmo engenheiro que planeou e durante algum / 7 / tempo dirigiu as obras de fixação da barra de Aveiro. Portanto, antes de 1807, ano do seu falecimento, na Ilha da Madeira.

«Era rendosa a exploração desses bancos, donde cada inverno eram embarcadas cerca de 36.000 ostras para o Porto, donde eram expedidas para a Inglaterra.»(1)

Até 1870 − isto é, mesmo depois de fechada a barra da Vagueira (1865) − existiram ostras na laguna, principalmente na Costa Nova, cale da Cidade e nas Duas Águas. Já, porém, nessa época se notava grande depauperação nas ostreiras, o que não impediu outra remessa de ostras para Arcachon.

No interessante Museu Aquário da Sociedade Científica daquela cidade francesa − que não deixo de visitar quando perto dela passo sem pressa e com Aveiro na lembrança − destacam-se, pelo seu grande volume e peso, as conchas das ostras de Aveiro, do Algarve (Santa Maria) e de Lisboa (Montijo).

Lá as vi assim rotuladas: Huîtres d'Aveyro (Portugal) − introduites par le capt. Lafon, 1865. − Huître portugaise draguée en Mai 1905 − Poids: 1,45 Kg. (Quem sabe se esta última seria descendente daquelas!).

Numa outra visita, antes da remodelação dalgumas salas, vi no mesmo Museu exemplares de conchas de ostras de Aveiro, introduzidas por Oudinot.

Não cessava o empobrecimento das ostreiras de Aveiro, o que determinou, em 1868, um Alvará do Governo Civil, pelo qual se proibia a apanha das ostras com utensílios de dentes de ferro, em bancos que não fossem de pedra. Apesar disso, a decadência acentuou-se cada vez mais, e, quando já em Arcachon o rendimento da indústria ostreícola atingia a sua plenitude (1880), estavam as ostras de Aveiro a resvalar para o seu desaparecimento.

Em 1889 ainda havia algumas espécies destes lamelibrânquios em raros pontos da laguna, mas à reincidência na colheita por processos contra-indicados, até mesmo na época da reprodução (Maio a Agosto), juntaram-se outras causas em conexão com as obras da barra − alteração do regime das correntes e da salinidade das águas, a entrada na laguna de maior número de espécies inimigas (murex, raia, caranguejo, cação, e tantos mais) e a falta de pedras de enrocamento, que pudessem ser utilizadas pelas ostras, para seu abrigo e protecção. De tudo isso, e ainda da falta de iniciativa e do retraimento de capital, resultou a extinção daquelas já raras ostreiras da laguna. / 8 /

Apesar de tudo, um banco natural reapareceu em 1896, na cale do Espinheiro. Mal começava, porém, o seu desenvolvimento, logo foi destruído! − possivelmente pelo roçar ávido dos moliceiros, na apanha do moliço.

De tantas contrariedades escaparam, para a conservação da espécie, as que a tempo foram transferidas para Arcachon, meio mais favorável à sua embriogenia e desenvolvimento.

E aí está corno essas e suas descendentes, conservando, em sucessivas gerações e em habitat estranho, as suas qualidades naturais, não deixam esquecer o país de origem. Portugaises é a palavra que só por si basta para, em França, se designarem as ostras mais populares − as que se vêem por Paris expostas com o respectivo dístico, em cabazes e caixas, à porta de certas lojas de víveres − apreciadas pelo seu valor nutritivo.

As ostras são, como o leite, um alimento completo. (Varigny).

Estimulam o apetite e são de muito fácil digestão, sobretudo quando cruas e com algumas gotas de limão, como são servidas nos restaurantes de Arcachon.

Mas as ostras portuguesas têm mais ácido fosfórico que as francesas, seja no molusco propriamente dito, combinado com os compostos orgânicos, seja nas suas valvas, no estado
de fosfato de cálcio.

Nem todas as chamadas portuguesas, diga-se, são provenientes de Arcachon. Também há portuguesas de Marennes, ou já cruzadas com a gravette e outras espécies autóctones daquela Bacia da Gasconha. Como também na Inglaterra há ostras de Ostende... criadas no Tamisa.

As ostras, como alimento, só são nocivas à saúde depois de longo tempo mortas ou quando criadas nas chapas do casco dos navios (sais tóxicos de cobre) e sobretudo nas águas infectadas pelos esgotos. Excelente meio de cultura, nelas se tem encontrado o bacilo tífico e outros micróbios patogénicos.

As suas conchas, nos locais onde falta outro calcário, são material rendoso para o fabrico de cal.

«As ostras multiplicam-se de uma maneira prodigiosa. Nos meses de Maio, Junho ou de Julho, segundo as regiões, deixam escapar das suas valvas entreabertas uma nuvem branca, de aparência leitosa, chamada vulgarmente semente de ostras e que é composta de uma quantidade enorme de ovos, contendo cada um, numa casca transparente, uma conchinha bivalve microscópica. Quando a casca se rompe, o embrião, depois de ter nadado livremente no mar por meio dos cílios vibráteis de que é provido, não tarda a fixar-se ou sobre outras ostras, ou sobre corpos sólidos... É assim que / 9 / se formam agrupamentos 'consideráveis de ostras conhecidos pelo nome de bancos(2).


É claro que se a corrente for impetuosa, como é nalguns pontos da laguna de Aveiro, aquelas miríades de embriões serão perdidas, por não se poderem fixar.

Dizia-se em 1889: «Praticável imediatamente é o estabelecimento de viveiros de engorda e estabulação.

A iniciativa particular precisa, porém, de ser guiada na construção desses viveiros que obedecem, nas primeiras tentativas, aos princípios a que devem ser subordinados. Os poderes públicos dar-lhe-iam um impulso louvável, estabelecendo um viveiro modelo, fácil de conseguir com pequeno dispêndio(3)

Mas já antes a indústria ostreícola tinha atraído a atenção dos poderes públicos. Requereram-se concessões para exploração dessa indústria, as quais foram deferidas e regulamentadas; mas não se chegou à realização de trabalho profícuo − se é que alguns trabalhos se iniciaram.

O Dr. EDMUNDO MACHADO, que pretendeu estabelecer a piscicultura na laguna de Aveiro, segundo os processos que observou em Arcachon, chegando a transformar em modelar piscina a sua marinha de Sant'Iago (1890), iniciativa que havia de morrer na infância, por falta de apoio oficial na repressão de imprevistos desmandos da rotina contra a inovação − esse ilustrado médico aveirense, no seu Relatório sobre a possibilidade da ostricultura, isto é, a produção artificial das ostras na laguna, dava de conselho (1896) que «ninguém se abalançasse a montar um parque de ostras, na perspectiva de o ver completamente devastado numa noite, ao mais pequeno descuido dos guardas»(4) − havendo também a ponderar as variações de salinidade.

Não eram, porém, mais animadoras as suas palavras acerca do restabelecimento das ostreiras naturais: «... os desmandos e excessos (a destruição completa em quinze dias de um banco natural de ostras que em Fevereiro de 1896 apareceu nas Duas Águas, cale do Espinheiro)... intimidam e fazem arrefecer as mais calorosas iniciativas».

Em 1912 uma comissão de técnicos de reconhecida competência apresentou o relatório dos seus estudos, enumerando diferentes causas do atrofiamento das ostreiras, deixando para estudo ulterior a determinação da causa principal e imediata do desaparecimento quase brusco das ostras na laguna. / 10 /

Nove anos depois: − «Entretanto tudo leva a crer que a Ria de Aveiro continua a oferecer regiões aonde o repovoamento das ostras, realizado em bases científicas, poderá dar novamente vida ao saboroso molusco»(5).

Não ficou, pois, condenada a laguna; antes se radicou a esperança do restabelecimento da sua indústria ostreícola.


Imitando-se o alijamento da carga daquele navio na costa francesa, agora que as condições da barra são outras, não seriam para tentar, na laguna de Aveiro, vários descarregamentos de ostras do Montijo e de Santa Maria do Algarve? − defendendo-lhes, é claro, a sua embriogenia natural e seu desenvolvimento, nos meses quentes, isto é, nos meses sem R? Não seria para experimentar tal recurso − mas em recintos afastados de águas inquinadas e das águas-mães das marinhas (mais salgadas que a do mar), e além disso abrigadas das fortes correntes e protegidas das espécies inimigas, pelas pedras dos enrocamentos − tudo superiormente regulamentado e sob rigorosa fiscalização oficial?

(Excerto de um trabalho a publicar).

Cor-méd. ANTÓNIO NASCIMENTO LEITÃO

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(1) VICENTE DE ALMEIDA D'EÇA, Ostras e Ostreicultura em Portugal, 1921.

(2) DECHAMBRE, DUVAL E LEREBOULLET, Dictionnaire des Sciences Médicales. 

(3) −  FRANCISCO REGALA, Ria de Aveiro e suas indústrias, Lisboa, 1889.

(4) EDMUNDO MACHADO, Relatório (sobre um questionário da Capitania do porto de Aveiro), 1897.

(5) V. DE ALMEIDA D'EÇA, Loc. cit.

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