Do confronto da laguna
aveirense com a Bacia de Arcachon, verifica-se que este acidente
geográfico da costa da Gasconha é uma fossa marinha, com pontos de
grande profundidade − uma baía ou pequeno mar interior, entre a planura
arenosa das Landes e as dunas do litoral
A sua superfície líquida
tem, na preia-mar, a forma de um triângulo equilátero de base ao sul, na
qual fica a cidade. Abrange uma área 2 1/2 vezes maior que a da laguna
de Aveiro, com extensos lodaçais, na baixa-mar, inúmeros baixios sempre
submersos, e apenas uma ilha permanentemente descoberta.
Num dos ângulos da base fica
a barra, natural e larga, mas obstruída por muitos bancos de areia, que
variam constantemente de local e dimensões; no outro desagua, por um
delta, o seu maior tributário − o pequeno rio Leyre; e pelo vértice do
norte desce periodicamente, de um lago de nível superior ao do mar, um
canal meio artificial, comandado por várias eclusas − o Lège.
Não tem, pois, a Bacia
braços estendidos, como a laguna de Aveiro, a enlaçarem as terras do seu
âmbito, num labirinto de canais naturais e esteiros, por onde as águas
avançam e recuam, com o fluxo e refluxo das marés.
O Leyre nasce no planalto
das Landes, e por ele segue, como que entorpecido, sem vales de
altitude, sem grande inclinação nem afluentes de grande volume de águas.
É um modesto rio da floresta, rumorejante no leito duro nalguns pontos,
e sempre pitoresco, seja na sua garganta de grés, seja no seu trajecto
por entre pinheiros, carvalhos, giestas, azevinhos, medronheiros, etc.,
não se lhe notando, porém,
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expressivamente simbolizadas as idades da vida, como, por exemplo, no
Vouga.
Sob o ponto de vista
geológico, há uma particularidade na região de Arcachon, sobretudo no
seu subsolo, um tanto semelhante ao que se observa na região de Aveiro.
O alios, grés
quartzoso e ferruginoso, mais duro ou mais friável, vermelho ou
amarelado, aflora em muitos pontos das Landes. Numas passagens faz o
leito do Leyre, noutras aperta-lhe as margens, e, pela região, toma
parte na alvenaria, sobretudo da construção rural − o que também, por
vezes, sucede, como se sabe, com o arenito roxo de Eirol e com o
calcário do tufo lacustre do subsolo de Aveiro.
Já há muito que a Bacia de
Arcachon não tem marinhas de sal. Foram substituídas pelos viveiros de
criação de peixes.
Também, em vez das suas
ostreiras naturais (aonde foi definhando a Gravette, designação
popular da Ostrea Edulis, e outras espécies locais),
desenvolveram-se os parques para a cultura das ostras, isto é,
reservatórios, nos quais o mar entra na enchente e sai na vazante,
operando-se neles a multiplicação artificial das ostras, tantas delas
descendentes das que da laguna de Aveiro ali foram introduzidas. Venceu
na concorrência, pela sua grande vitalidade e proliferação, a Griphœa
angulata, uma das várias espécies das ostras portuguesas.
Há cerca de 90 anos, por
falta de uma adequada regulamentação na exploração das ostreiras de
Arcachon, estavam estas quase completamente extintas.
Acudiu-lhes o naturalista
Coste, que havia de deixar o seu nome ligado à ostricultura, pelos
processos por ele empregados, conseguindo ver coroados de êxito, no fim
de alguns anos, os seus aturados trabalhos de biologia experimental.
Tratou-se do cruzamento das
espécies locais com outras importadas.
Diz-se que um navio com
carregamento destes moluscos, procedente de Portugal, teve, por qualquer
motivo, de lançá-los ao mar, num ponto do litoral da França, e que,
multiplicando-se, originaram grandes ostreiras.
Não sei qual o local do
alijamento da carga nem o porto de procedência das ostras nem a data do
acontecimento. Mas sabe-se que por várias épocas foram introduzidas na
Bacia de Arcachon ostras portuguesas, inclusivamente dos bancos da
laguna de Aveiro, tendo sido um dos introdutores Oudinot − aquele mesmo
engenheiro que planeou e durante algum
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tempo dirigiu as obras de fixação da barra de Aveiro. Portanto, antes de
1807, ano do seu falecimento, na Ilha da Madeira.
«Era rendosa a exploração
desses bancos, donde cada inverno eram embarcadas
cerca de 36.000 ostras para o Porto, donde eram expedidas para a
Inglaterra.»(1)
Até 1870 − isto é, mesmo
depois de fechada a barra da Vagueira (1865) − existiram ostras na
laguna, principalmente na Costa Nova, cale da Cidade e nas Duas Águas.
Já, porém, nessa época se notava grande depauperação nas ostreiras, o
que não impediu outra remessa de ostras para Arcachon.
No interessante Museu
Aquário da Sociedade Científica daquela cidade francesa − que não deixo
de visitar quando perto dela passo sem pressa e com Aveiro na lembrança
− destacam-se, pelo seu grande volume e peso, as conchas das ostras de
Aveiro, do Algarve (Santa Maria) e de Lisboa (Montijo).
Lá as vi assim rotuladas:
Huîtres d'Aveyro (Portugal) − introduites par le capt. Lafon, 1865. −
Huître portugaise draguée en Mai 1905 − Poids: 1,45 Kg. (Quem sabe
se esta última seria descendente daquelas!).
Numa outra visita, antes da
remodelação dalgumas salas, vi no mesmo Museu exemplares de conchas de
ostras de Aveiro, introduzidas por Oudinot.
Não cessava o empobrecimento
das ostreiras de Aveiro, o que determinou, em 1868, um Alvará do Governo
Civil, pelo qual se proibia a apanha das ostras com utensílios de dentes
de ferro, em bancos que não fossem de pedra. Apesar disso, a decadência
acentuou-se cada vez mais, e, quando já em Arcachon o rendimento da
indústria ostreícola atingia a sua plenitude (1880), estavam as ostras
de Aveiro a resvalar para o seu desaparecimento.
Em 1889 ainda havia algumas
espécies destes lamelibrânquios em raros pontos da laguna, mas à
reincidência na colheita por processos contra-indicados, até mesmo na
época da reprodução (Maio a Agosto), juntaram-se outras causas em
conexão com as obras da barra − alteração do regime das correntes e da
salinidade das águas, a entrada na laguna de maior número de espécies
inimigas (murex, raia, caranguejo, cação, e tantos mais) e a falta de
pedras de enrocamento, que pudessem ser utilizadas pelas ostras, para
seu abrigo e protecção. De tudo isso, e ainda da falta de iniciativa e
do retraimento de capital, resultou a extinção daquelas já raras
ostreiras da laguna.
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Apesar de tudo, um banco
natural reapareceu em 1896, na cale do Espinheiro. Mal começava, porém,
o seu desenvolvimento, logo foi destruído! − possivelmente pelo roçar
ávido dos moliceiros, na apanha do moliço.
De tantas contrariedades
escaparam, para a conservação da espécie, as que a tempo foram
transferidas para Arcachon, meio mais favorável à sua embriogenia e
desenvolvimento.
E aí está corno essas e suas
descendentes, conservando, em sucessivas gerações e em habitat estranho,
as suas qualidades naturais, não deixam esquecer o país de origem.
Portugaises é a palavra que só por si basta para, em França, se
designarem as ostras mais populares − as que se vêem por Paris expostas
com o respectivo dístico, em cabazes e caixas, à porta de certas lojas
de víveres − apreciadas pelo seu valor nutritivo.
As ostras são, como o leite,
um alimento completo. (Varigny).
Estimulam o apetite e são de
muito fácil digestão, sobretudo quando cruas e com algumas gotas de
limão, como são servidas nos restaurantes de Arcachon.
Mas as ostras portuguesas
têm mais ácido fosfórico que as francesas, seja no molusco propriamente
dito, combinado com os compostos orgânicos, seja nas suas valvas, no
estado
de fosfato de cálcio.
Nem todas as chamadas
portuguesas, diga-se, são provenientes de Arcachon. Também há
portuguesas de Marennes, ou já cruzadas com a gravette e outras
espécies autóctones daquela Bacia da Gasconha. Como também na Inglaterra
há ostras de Ostende... criadas no Tamisa.
As ostras, como alimento, só
são nocivas à saúde depois de longo tempo mortas ou quando criadas nas
chapas do casco dos navios (sais tóxicos de cobre) e sobretudo nas águas
infectadas pelos esgotos. Excelente meio de cultura, nelas se tem
encontrado o bacilo tífico e outros micróbios patogénicos.
As suas conchas, nos locais
onde falta outro calcário, são material rendoso para o fabrico de cal.
«As ostras multiplicam-se de
uma maneira prodigiosa. Nos meses de Maio, Junho ou de Julho, segundo as
regiões, deixam escapar das suas valvas entreabertas uma nuvem branca,
de aparência leitosa, chamada vulgarmente semente de ostras e que é
composta de uma quantidade enorme de ovos, contendo cada um, numa casca
transparente, uma conchinha bivalve microscópica. Quando a casca se
rompe, o embrião, depois de ter nadado livremente no mar por meio dos
cílios vibráteis de que é provido, não tarda a fixar-se ou sobre outras
ostras, ou sobre corpos sólidos... É assim que
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se formam agrupamentos 'consideráveis de ostras conhecidos pelo nome de
bancos(2).
É claro que se a corrente for impetuosa, como é nalguns pontos da laguna
de Aveiro, aquelas miríades de embriões serão perdidas, por não se
poderem fixar.
Dizia-se em 1889:
«Praticável imediatamente é o estabelecimento de viveiros de engorda e
estabulação.
A iniciativa particular
precisa, porém, de ser guiada na construção desses viveiros que
obedecem, nas primeiras tentativas, aos princípios a que devem ser
subordinados. Os poderes públicos dar-lhe-iam um impulso
louvável, estabelecendo um viveiro modelo, fácil de conseguir com
pequeno dispêndio(3).»
Mas já antes a indústria
ostreícola tinha atraído a atenção dos poderes públicos. Requereram-se
concessões para exploração dessa indústria, as quais foram deferidas e
regulamentadas; mas não se chegou à realização de trabalho profícuo − se
é que alguns trabalhos se iniciaram.
O Dr. EDMUNDO MACHADO, que
pretendeu estabelecer a piscicultura na laguna de Aveiro, segundo os
processos que observou em Arcachon, chegando a transformar em modelar
piscina a sua marinha de Sant'Iago (1890), iniciativa que havia de
morrer na infância, por falta de apoio oficial na repressão de
imprevistos desmandos da rotina contra a inovação − esse ilustrado
médico aveirense, no seu Relatório sobre a possibilidade da
ostricultura, isto é, a produção artificial das ostras na laguna, dava
de conselho (1896) que «ninguém se abalançasse a montar um parque de
ostras, na perspectiva de o ver completamente
devastado numa noite, ao mais pequeno descuido dos guardas»(4)
− havendo também a ponderar as variações de salinidade.
Não eram, porém, mais
animadoras as suas palavras acerca do restabelecimento das ostreiras
naturais: «... os desmandos e excessos (a destruição completa em quinze
dias de um banco natural de ostras que em Fevereiro de 1896 apareceu nas
Duas Águas, cale do Espinheiro)... intimidam e fazem arrefecer as mais
calorosas iniciativas».
Em 1912 uma comissão de
técnicos de reconhecida competência apresentou o relatório dos seus
estudos, enumerando diferentes causas do atrofiamento das ostreiras,
deixando para estudo ulterior a determinação da causa principal e
imediata do desaparecimento quase brusco das ostras na laguna.
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Nove anos depois: − «Entretanto
tudo leva a crer que a Ria de Aveiro continua a oferecer regiões aonde o
repovoamento das ostras, realizado em bases
científicas, poderá dar novamente vida ao saboroso molusco»(5).
Não ficou, pois, condenada a
laguna; antes se radicou a esperança do restabelecimento da sua
indústria ostreícola.
Imitando-se o alijamento da carga daquele navio na costa francesa, agora
que as condições da barra são outras, não seriam para tentar, na laguna
de Aveiro, vários descarregamentos de ostras do Montijo e de Santa Maria
do Algarve? − defendendo-lhes, é claro, a sua embriogenia natural e seu
desenvolvimento, nos meses quentes, isto é, nos meses sem R? Não seria
para experimentar tal recurso − mas em recintos afastados de águas
inquinadas e das águas-mães das marinhas (mais salgadas que a do mar), e
além disso abrigadas das fortes correntes e protegidas das espécies
inimigas, pelas pedras dos enrocamentos − tudo superiormente
regulamentado e sob rigorosa fiscalização oficial?
(Excerto de um trabalho a
publicar).
Cor-méd. ANTÓNIO NASCIMENTO
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