J. S. de Sousa Batista, A nova igreja de Lamas, Vol. IX, pp. 91-96.

A NOVA IGREJA DE LAMAS

NA memória das gentes da freguesia de Lamas do Vouga, por tradição ou por escrito, não anda bem determinada a data da construção da sua nova igreja, em substituição da que foi a de Santa Maria do MarneI. Ora, o acaso fez que às nossas mãos chegasse uma planta que será a do retábulo primeiramente projectado para a capela-mór; somente o seu autor, se teve o cuidado de a assinar, esqueceu-se de pôr-lhe a data; e, assim, quanto ao ano ou anos do levantamento do bem lançado templo, apenas nos resta a investigação efctuada pelo arcipreste João Gomes dos Santos, que a deixou arquivada no livro das pastorais da mesma igreja.

Reza assim:

«BREVE NOTICIA E DESCRIÇÃO DA EGREJA DE LAMAS

«Nestes tempos, em que tudo se investiga, em que tudo se procura saber e averiguar, jamais o que é de longa data, não será fora de proposito escrever duas linhas acerca da egreja de Lamas, neste concelho e diocese.

«O pouco que achamos sobre a antiguidade d'esta egreja, quasi que nos foi ministrado pelo Reverendo Reitor de ValIe-Maior, Manuel Ferreira VarelIa, parocho illustrado e muito versado em antiguidades.

Aspecto exterior da actual igreja de Lamas.

Estava situada esta egreja, célebre pela sua antiguidade, não longe das pontes do Marnel, dentro da area do passal (desamortisado em 1873), juncto da casa-celleiro alli ha pouco mandada construir pelo Ex.mo conego Homem de Macedo. Não ha muitos annos que ainda alli se vião os restos d'aquelle templo, cuja fundação data do começo da monarchia. Era humilde a sua fabrica a julgar pelo melhor dos materiais q. d'alli sahiram e se teem empregado em algumas obras da nova / 92 / egreja. Nesta se conserva ainda o sacrario antigo, todo doirado e de muito valor artistico pela sua talha e pela perfeita symetria em que está acabado. Pode ver-se tambem ainda alli a antiga imagem do orago d'essa freguezia da qual tracta largamente o Sanctuario Mariano, hoje retirada do culto pelos estragos que nella tem feito a mão do tempo. Lê-se neste livro que parece ter havido juncto da antiga egreja um
convento, de freiras, de que não ha memoria. O que nos parece todavia é que houve alli solar de familia illustre, que tivesse o senhorio d'aquellas terras; pois que a historia conserva ainda os nomes d'alguns d'esses senhurios, e entre elles o de D. Fernão Gonçalves do Marnel, que viveu pouco antes de 1079. O que é certo porem é que aquella egreja foi sagrada no anno de 1170, como afirma o licenciado Jorge Cardoso, o qual diz que juncto á porta travessa da egreja existia um letreiro gothico da parte de dentro, o qual trasladado fielmente diz assim: Dedicata fuit haec ecclesiae de S. Maria de Lamas ab episcopo Dom Míchaele colimbricenci et per manus Vermundi ecclesiae præsbyteriæ sub æra 1208 idus Maii in festivitate sanctorum Gordiani et Epimachi in honorem S. Mariæ Virginis anno ab Incarnatione Dño 1170, regnante apud Portugale Alphonso comitis Henrici et regina Tarejæ filio, multorum sanctorum reliquiæ in profatas eeclesiæ altaribus habentur de sepulchro B. Mariæ Virginis et reliquiæ sanctorum Felicissimi et Agapiti S. Sebastiani et S. Marinæ et sepulchro
/ 93 / Doñ.: et qui scripsit, vivat in æternum. Que vale o mesmo que dizer: que o Bispo de Coimbra D. Miguel sagrara aquella egreja no anno da encarnação de 1170 a 10 de maio no dia dos sanctos Martyres Gordiano e Epimacho a instancias de Vermundo presbytero, o qual depositou em seos altares varias reliquias, entre as quais se especificão as dos gloriosos martyres Felicissimo e Agapito e de S. Sebastião e de S. Marina e dos gloriosos sepulchros de Christo e de Nossa Senhora, reinando em Portugal Affonso, filho do conde D. Henrique e D. Tereza.

O Bispo que fez a sagração foi um dos doze varões apostolicos, que deram principio ao real convento de Sancta Cruz de Coimbra, de onde foi tirado por eleição do clero, como refere o licenciado Jorge Cardoso, para a mitra de Coimbra, cerca do anno de 1160. A lapide onde o dito letreiro se acha lavrado está agora na sacristia da nova egreja, para, em occasião opportuna, ser convenientemente collocada junctamente com outra, que indique a epocha da sua fundação. A antiga egreja tinha o titulo de basilica, pois em todas as dispensas matrimoniais que vinhão de Roma, pertencentes aos parochianos d'ella, os pontifices a nomeavão a sua basilica de sancta Maria de Lamas. Juncto d'esta egreja havia tambem a casa de residencia que se inutilisou no tempo em que alli foi parocho o prior Antonio Rodrigues de Mello, de Vouga. Actualmente não ha nesta freguezia casa de residencia; o que é uma falta bem sensivel. Isto pelo que diz respeito á egreja antiga. Emquanto á nova, não sabemos de documento algum que d'ella tracte. Se os ha, como é de presumir, devem de existir na Camara ecclesiastica de Coimbra, a cujo bispado esta freguezia ainda então pertencia. Nada consta nos livros antigos da parochia ácerca da epocha da sua fundação. O que podemos porem asseverar com certeza é que no anno de 1766 ainda esta egreja não estava fundada; porquanto no livro de registo dos obitos se acha que o prior Mattos de Miranda fora sepultado na capella-mor da egreja matriz aos onze d'agosto d'aquelle anno e a capella mor da nova egreja ainda então não existia, pois que só foi feita em 1870 a instancias e pelos cuidados do Reverendo Encommendado João Gomes da Fonseca, cujo zelo religioso é assaz conhecido. À falta pois de documentos soccorremo-nos da tradição e aventuramos que esta tem apenas 103 annos; pois corre aqui, como certo, que os primeiros cadaveres, que n'ella se deram á sepultura, foram os de dois moços, que no mesmo dia morreram afogados no rio Vouga juncto ao Marnel. E folheando nós os livros do registo os obitos d'aquelles tempos, achamos efectivamente que no dia 13 do mez de julho do anno de 1777 foram sepultados na egreja matriz dois individuos do sexo masculino por nomes / 94 / Victorino e Manuel, que alli pereceram afogados no tempo do Prior José Rodrigues da Cruz Tigre. Julgamos portanto fora de toda a duvida, que foi no anno do reinado de D. José que esta egreja foi acabada. Sabe-se que foi construida pela quantia de 400$000 reis. Teem-se ultimamente feito nelIa algumas obras importantes. Entre elas importa mencionar a torre e o côro, que foram construidos em 1862; a capelIa-mor de que já fallamos construida á custa do cofre da bulIa; o throno que o qual nenhum por estas visinhanças ha mais bem acabado e que muito acredita os artistas José Vidal, d'Albergaria, que o fez, e José Antonio dos Santos, do Béco, que o dorou, concluido em 1875; e finalmente o sino maior offerecido a esta egreja pelo cidadão Antonio Gomes Vidal em 1877. Tambem por este tempo foram acabadas de reedificar a sacristia e a casa da fabrica. Está justo para ser feito de novo o antigo altar-mor do sacramento á custa do cidadão Manuel Joaquim Francisco Corga. Tracta-se finalmente da construção do cemiterio por conta da Camara municipal do Concelho, que esperamos em breve ver acabado; pois assim o exige a saude publica. Lamas do Vouga, 10 de julho de 1880.

O Prior − João Gomes dos Santos.

«P. S. O conego Manuel Homem de Macedo da Camara Motta deu para o douramento da tribuna da capelIa-mor e throno a quantia de 200$000 rs. Esta egreja tinha tres cruzes de prata, um thuribulo e uma naveta do mesmo metal, utensílios que em 1808 foram desamortisados pelo general Junot: estas pratas tinham de peso 19 marcos (4, kg. 3605) no valor bruto de 106:409 rs.

«O dizimeiro na freguezia de Lamas (de que era directo senhorio o duque de Aveiro) era obrigado a dar annualmente para a festança na noite do Natal − Um carro de cepa bem carregado − dois alqueires de tremoço − dois de castanhas e dois almudes de vinho.

DIREITOS PAROCHIAIS EM LAMAS

«Pertence ao parocho a quantia de 2:640 rs. d'officios grandes. Actualmente não tem o parocho nesta freguezia e visinhas obrigação de destribuir mais que nove missas pela alma de qualquer individuo que falIeça com officios grandes, segundo a dispensa ha pouco alcançada de Roma. Tem direito de amentar por espaço de dois annos as pessoas que fallecerem percebendo em cada anno um alqueire de milho (16. l. 45). / 95 /

«De cada Baptismo pertence-Ihe uma garrafa de vinho (quartilho e meio), um bolo de pão de trigo e uma gallinha − Idem a respeito dos obitos até á idade de 12 a 14 annos. No baptismo os padrinhos dão o que querem. Tem 65:000 rs. de congrua e 81:000 rs. de rendimento d'inscripções. Tem tambem o direito de levantar o folar (meio tostão em dinheiro) e mais o que lhe quizerem por.

                           J. G. Santos»


Pode pois concluir-se que a planta a que esta narrativa se refere deve ter sido desenhada muito antes de edificada a capela-mor, pois esta só ficou terminada em 1870. E se a torre e coro foram construídos em 1862 e o trono concluído em 1875, aproximadamente durante 90 anos a nova igreja de Lamas pouco mais contaria que as quatro paredes da nave e alguns dos altares deste corpo.

Assim deve ter sido, visto que o novo templo só muito posteriormente ao levantamento das paredes da nave e respectiva cobertura recebeu o sacrário, que ainda por largos anos se conservou na velha igreja, conforme tradição.

J. S. DE SOUSA BAPTISTA

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