Joaquim da Costa Cascais, Costumes aveirenses de outrora, Vol. IX, pp. 96-103.

COSTUMES AVEIRENSES DE OUTRORA,

DESCRITOS NUMA COMPOSIÇÃO POÉTICA

DE JOAQUIM DA COSTA CASCAIS

PUBLICAMOS neste número, como prometemos, a seguinte composição de Joaquim da Costa Cascais, relativa a costumes de Aveiro. O autor datou-a de Mafra − em cujo convento funcionava então o Colégio Militar −, no dia 31 de Março de 1855. Numa nota, declara ele que havia vinte e oito anos não tornara a Aveiro. Tendo nascido nesta cidade em 1815, conclui-se que dela saiu com doze anos de idade. − Extraímo-la, sem qualquer modificação, do voI. XII do Panorama (Págs. 113-118).(1)

J. T.

«UM JUDAS HERMAPHRODITO

           I

É Pedro um rapaz,
D'alcunha o Fragata,
Mancebo capaz,
Que dá sóta e az
Nas cousas do mar.
Um peixe a nadar,
Que faz e concerta
Tarráfas, chinchôrros;
E tem mão tão certa,
Co'a fisga ao candeio,
Que os peixes, sem vel-os,
Espéta-os ao meio!
E barco, ou bateira,
Que vá de carreira,
Que á vela, que á vara,
(A remos, não digo,
Que é lá cousa rara):
Governa o Fragata
Melhor, do que Alboni
Um trilo, ou volata.
Honrado, valente;
Um bom coração...
E a Deus, mais temente
Do que elle, − isso não.
Se, o padre vigario
Lhe põe penitencia

/ 97 / [Vol. IX - N.º 34 - 1943]

Resar uma c'rôa,
Resou um rosario.
Esbelta figura....
D'idade na flor...
Bizarro, − perfeito...
Não ha mais que pôr.
Airoso barrete,
Mourisco gabão;
As bragas de neve...
Simpleza, mais não; ,
Seu todo compunham
De tal perfeição;
Que a vel-o − senhoras...
Rainhas, talvez,
Não uma olhadella,
Deitavam-lhe tres.
− Perdido d'amor,
O bom pescador,
Só via Rosinha,
Galante mocinha
Mui bem concertada,
Que o padre vigario
Chamava − afilhada;
E bôcas do mundo...
Ai! bôcas nefandas,
Que tudo em bolandas
Remechem, revolvem...
Que a muitos envolvem
Com falsos enredos;
Descobrem segredos!...
Diziam... não digo.
Mas digo, e direi:
Cachopa de lei,
Maior perfeição,
Até'li, mais não.
Se mouro, ou judeu,
De tantos agrados
Um só fôra seu,
Daria... eu sei lá!
Korans, e talmuds,
Imperios d'Allah!
− Mas, se elle, − o Fragata
Por ella morria,
Mais sol, nem mais lua,
Rosinha não via.
Amavam-se, é certo,
Mas, muito em segredo,
Que o padre o soubesse,
Os dous tinham medo.
Não, que elle não fosse.
Bondoso pastor,
Dos pobres, amparo,
Maior defensor.
Mas, Pedro era pobre,
Rosinha estimada;
Que em casa de padre
Jamais faltou nada.
− Havia um maluco
Na terra, − em Aveiro,
Sobrinho direito
D'um mestre barbeiro;
Se reles navalha,
Má lingua, o primeiro;
Que a linda Rosinha,
Tambem pretendia.
Nem elle sabia
Nanaia − o maluco
Se amava, se não.
Quem diz, que patétas
Tem lá coração!
Mas fez taes promessas,
Conselhos taes deu,
Que pôz d'as avéssas
O tio, ao sandeu.
E, se este era parvo
Sem ser namorado,
Tornára-se agora
Um parvo quadrado.
− O tal Cóspe-fóra...
Ao rápa-cabello
Assim lhe chamavam,
E a alcunha fundavam,
Na grão demasia,
Com que elle cuspia;
Um diz, que era vicio,
Est'outro, que azia.
E vicio, ou molestia,
Que ao caso não vem;
É certo, porém,
Que o tal Cóspe-fóra,
Já vendo o desdem
Com que ella − Rosinha,
Nanaia tratava;
Na cóla lh'andava.
E tanto espreitou,
E tanto indagou,

/ 98 /

Que soube... pudéra!
Quem viu mexerico,
De pobre, ou de rico,
Occulto a barbeiro?
Ha tal, que dá novas
Colhidas a cheiro!
− De Pedro e Rosinha
Amores soubera;
E a boca em cratéra
D'immundo volcão,
D'injurias, e cuspo
Se fez erupção!
Alfim concluindo
Com este sermão:
«Oh vós, que m'ouvides
Rebôlo, navalhas,
Cortinas, toalhas,
Panninhos da barba,
E banha, e sabão:
Se d'esse Cuécas,
Se d'esse Pé-fresco,
Se o Pesca-alforrécas,
Mas não pagar bem,
Chamae-me tambem,
Gigante na língua,
Em obras ninguem.
Dizei... sim, fallae;
Toalhas, cortinas
A pelle m'esfregae.
E vós, meu rebôlo,
Meu rosto amollae.
E vós − oh navalhas!
Viris instrumentos,
Que barbas, a fio
Rapastes aos centos;
Meu sceptro flammante,
Que ao buço primeiro,
Que eu fiz, inda a medo;
Gritastes: − ávante!
Serás um barbeiro!...
Se Pedro, o Fragata,
Ruim pescador,
Logrado não fôr,
Qual roda, tornae-vos,
De Santa Catharina,
E d'este pescoço,
Não fique nem osso,
Na tal dirandina!

           II

Porque seu melhor adorno
Agora o templo não tem?
Nem Senhor crucificado,
Nem santos vejo tambem!
Porque, o sol d'essas imagens
Alegral-o hoje não vem?
Tristes, rôxos véus, só vejo
Pendentes, aqui, além.
Incensos, festivos cantos,
Som de magua hoje os detem;
É que dôr maior não houve
O mundo p'ra maior bem.
Hora fatal s'aproxima,
Pranteia Jerusalem,
Vae nas trevas submergir-se
Pura estrella de Bethlem.

           III

Já tocam matracas,
Já maços apromptam
Rapazes, que contam
À noute, na igreja,
As trevas bater,
A mais não poder.
Lá vejo o barbeiro,
Chamando, o primeiro
Gaiato d'Aveiro,
Fallar-lhe em segredo...
E dar-lhe dinheiro!
− E ranchos de povo
Já prestes caminham
Caminho da igreja,
Que as horas já vinham.
E os mais precavidos
De ha muito eram idos;
Que em dias de festa,
p'ra ter bom logar,
Convem madrugar.
Rosinha, e Fragata,
Na igreja tambem,
Pertinho, um do outro,
Em ledo entretem,
De ha muito se olhavam.

/ 99 /

           IV

É noute. No templo patente,
Que mal se allumia, de luzes só quinze,
Há cantos sentidos - innumera gente.
Da conta, que vae decrescente
Das luzes, − só brilha no meio a mais alta.
Sumiu-se. − Eil-o o templo, que é trevas sómente!

           V

E em chusma, os rapazes
Estrondo fazendo,
As trevas batendo.
E luz já traziam,
Inda elles batiam.
E os padres no côro;
De cannas armados,
Seus cóques vão dando
Nos mais descarados,
E a bulha findando.
− Officio acabado,
A mó se despeja,
Do povo, sem canto,
Que estava na igreja.
Eis, junto ao degrau,
Não sei de que altar,
O povo a cercar...
Zumzum, borborinho...
Sorrisos de mófa,
Com seu escarrinho I
Risadas no templo,
Murmurio tamanho...
O caso era estranho!
Se riso fazia,
A Pedro, e Rosinha,
Causava arrelia.
E foi, que ambos indo,
Officio já findo,
A pôr-se de pé,
Não houve de quê;
Que saia, e gabão
Pregados estão!
E puxa, que puxa,
E tão bem pregados,
Que, nem um nem outra,
Se dão despegados^!
E puxa, que puxa,
E puxa a rasgar,
E saia, e gabão,
Rasgados lá vão,
De tanto puxar.
E Pedro, e Rosinha
Saíram corridos;
Elle ía raivando,
Rosinha, essa quasi
Perdêra os sentidos.
− O caso contado,
Vae sendo augmentado;
Pois diz o dictado:
«Quem conta seu conto
Augmenta-Ihe um ponto.»
E conta d'aqui,
E conta d'ali;
Que certo, que vário,
O caso contaram
Ao padre vigario.
Oh bôca damnada,
Que foste dizer!
Rosinha, coitada,
Cuidava morrer;
Não, que elle − o vigario
De leve tocasse,
No caso falasse;
Nem era preciso:
Pessoa de sizo,
Que viva comnosco,
Por dentro, e por fóra,
N'um dito, n'um gesto,
Nos lê, sem demora.
− O Rapa-bigodes
O caso assoalhava,
Que em mal commentava;
Dizendo-o, − ser obra,
Castigo de Deus,
Exemplo a judeus,
Que em santo logar,
Em vez d'adorar,
Vem só namorar.
E baixos os olhos,

/ 100 /

Em ar supplicante,
Por fóra mentia,
O tal meliante,
Por 'dentro sorria;
E a quem o ouvia,
Melhor persuadia.

           VI

O relógio não dá horas,
Os sinos emmudeceram;
Té as aves, em seus ninhos,
Seus cantares esqueceram.


Junta a igreja, gala a gala,
Já, seu throno guarneceram
Lindas jarras, flores, luzes,
E que todas s'accenderam.


Aromatica alcatifa
Pelo chão, vel-a estenderam,
E se mais pizada fôra,
Mais aromas recenderam.


Se mil annos, d'um tal dia,
Um a um se succederam,
Que de corações perdidos
A Jesus se não renderam!


As igrejas visitando
Anda gente, hoje, sem fim.
Quem viu quinta feira santa,
Que a não visse andar assim?


E já noute, infindo povo
Vel-o junto, sem motim.
Descoberto, de joelhos...
É pasmar! Mas não p'ra mim;


Que no seu andor, lá vejo,
Com seu manto carmezim,
Veneranda imagem, feita
D'um só tronco d'alecrim.


É do Senhor − Ecce-homo
(2)
− E eu porvel-a tambem vim −
Procissão, − e a mais solemne,
Té mouros dirão, que sim.

           VII

Em erma viéla
Dous vultos, mais não,
Agora lá são.
Um posto, á janella,
Est'outro, no chão,
Que vultos serão?
Os dous, − elle e ella,
Rosinha, que a Pedro,
Por fina cordinha,
As mãos lhe passava
Gentil condecinha;
Que amendoas levava,
Não digo a ninguem.


Que o padre as pagava,
Não digo tambem.


        Pedro

Ah sôra Rosinha,
Canté, se eu soubera
O méco, quem era,
Que os prégos pregou;
Á fé de quem sou,
Que − sem mais barulho,
Lhe dava um margulho,
Baldeava-lhe o coiro,
Com'a quem, no rio,
Vasa o vertedoiro!

/ 101 /

        Rosinha

Não ha de assim ser,
Meu Pedro; não ha de,
Sou d'outro par'cer.
Metter'st'em trabalhos,
Por quatro negalhos...

        Pedro

Negalhos! − Pois cuida...

        Rosinha

Eu cuido o que cuidas.
Que fôra mal feito,
Lá vir um sujeito,
Quem quer que elle seja,
Fazer-se atrevido;
E o que é mais, na igreja;
Merece castigo.

        Pedro

É o mesmo que eu digo,

        Rosinha

Mas vaes muito além.
Lição, que o escarmente,
E a nós, nos contente,
Dar mal, ficar bem...
Eis tudo.

        Pedro

                        Será.
Sua bôca o disse,
Calado estou já.

        Rosinha

Sei tudo. O Nanaia
Fallei-Ihe inda agora,
Caíu, sem demora.
Foi elle...

        Pedro

                 O maluco!

        Rosinha

Não, o Cóspe-fóra.
Peitára um gaiato,
Que ao bater das trevas,
Nos pregasse o fato...
Mas, deixa tu 'star,
Que as ha de pagar!

        Pedro

Como?

        Rosinha

                 Eu t'o digo
− O Pedro, se o sabe,
Dizia eu commigo,
Alguma desgraça,
Quem diz, que não faça?
E á conta dos medos,
Forjei meus enredos...
− Caluda!... Vem gente...
Amanhã... Adeusinho...
Mas vem mais cedinho.

           VIII

Já se ouviu − Gloria in excelsis,
Alleluia já soou;
E nem sino, nem garrida,
Nem um só d'elles tocou!


Pois se as trevas já findaram,
Se luz nova já raiou,
Nem um toque d'alegria,
Em Aveiro resoou!


Inda não; que ao signal dado
Da Matriz tudo ficou;

/ 102 /

E n'um tempo, agora tudo,
Tudo em cheio repicou
(3)
D'essa alegre hora festiva
Olvidado inda não' sou.
 Commoções, que o berço dera
Inda o tempo as não levou.


Grossa pedra d'Alleluia,
Com que ó lorpa carregou,
Ajoujado − de tão longe...
A vel-o cuido que estou!

              IX

E um Judas pendente,
Na corda dansava;
Ao som d'algazarra,
Que a plebe soltava.
E povo, e mais povo,
Se o caso era novo!
Que a Judas, Aveiro
Não era vezeiro
(4).
− E o Judas bailando,
Um, já perguntando,
Aquelle explicando,
Em terras do reino
A usança ter visto.
− E juntas, dispersas,
Mil vozes diversas.
«Pois Judas é isto»,
− E a plebe, que ríra!
Se ao Judas, agora,
Deu tal vira-vira,
Que, quasi, o despira!

            Vozes

C.aíram-lhe as calças!
«É Judas, sem alças»
− Espera − traz saia!
«Mas Judas é macho!...»
− Este é d'outra laia;
«Será macho-femea!»
− E n'isto, um gaiato
Doutor no pião,
Em péla e bilharda,
Lhe chega um tição.
E o fogo s'ateia,
E o Judas rabeia:
Já bichas sibilam,
E se alto ribomba
O estoiro da bomba,
Tambem dão seus baques
Alguns trique-traques.


− E o Judas então,
Caído é no chão.

            Gaiato

− Caluda, rapazes!
Prestae-me attenção.
− E vel-o, que abrira
Pequena caixinha,
Que o Judas continha;
E d'ella, que tira
Papel, onde escriptos
Estão estes ditos:
− Come pão de milho e sêmea,
Este Judas macho-fêmea,
De marido, e mulher tem
Seu fato: − de mais ninguem.
E quaes são sabêde agora:
Ella, e o mestre Cóspe-fóra! −

Geral gargalhada,
O povo soltava,

/ 103 /

E o mestre fitava;
Que já d'abalada,
Veloz se raspava,
Ao som d'apupada.
Fragata sorria,
Rosinha tambem;
E Já lhe dizia:
− Vingámo-nos bem.


O mestre fez queixas
Ao padre vigario.
Ouvida Rosinha,
Não disse o contrario;
E só, que o barbeiro
Zombára primeiro.
O padre zangou-se,
Primeiro ralhou,
Por fim perdoou;
Depois perguntou:
 

           Padre

Que idéa de ]udas
Foi esta? − Onde a viste?
Que fóra d' Aveiro
Diriam saíste!

           Rosinha

Contou-me a visinha,
Que a festa, em Lisboa,
Seus Judas lá tinha:
De como os vestiam...
Do que lhes faziam...
E agora − padrinho,
Que sabe a verdade...
Negar-me, não ha de...
Pois elle o Pedrinho...
Riquezas... não tem...
Bem sabe, o padrinho,
Se as tenho... também...
E depois...

       Padre

                  Depois?
Morreram as vaccas,
Ficaram os bois.
− O que Deus quizer
Só isso ha de ser.
E seja! − Que as paschoas
Alegres nos venham,
E taes se mantenham...

          Rosinha

Padrinho d'esta alma!
Que abrazo de calma!...

           Padre

«Silencio! − O folar,
Que este anno receba...
É teu... e... casar!
E Deus te abençoe...»
− E o padre a chorar!


Em autos conclusos,
Os casos confusos,
Eis claros estão.
Só falta dizer-vos,
Que o parvo Nanaia,
Que as calças, e saia,
Levára, − coitado,
Depois de ralhado,
Cuspido, tosado
P'lo mestre barbeiro,
Foi quem mais perdeu.
Em toda a questão,
Ou perde o vilão,
Ou perde o sandeu.»

JOAQUIM DA COSTA CASCAIS

_________________________________________

(1) − Vai reproduzida com a grafia da época. No original o texto encontra-se a duas colunas. Aqui vai apenas a uma.

(2) (Assim chamam em Aveiro ao Senhor da Canna Verde. - É imagem de grande devoção, e construída dum só tronco de alecrim. O POVO assim o afirma, e a Corografia do padre Carvalho, se bem me lembro, confirma-o.. 

(3) − Lembro-me que, quando eu era pequeno, assim se praticava em Aveiro. Hoje não sei se a usança ainda subsiste, por que há 28 anos que lá não vou. Aquilo, sim, que era uma verdadeira Aleluia, de que ainda me recordo com saudade infantil, de todas a mais grata.

(4) − Assim era, na minha meninice. A usança do judas, em sábado de Aleluia, era ali desconhecida; ou pelo menos o povo não a punha em prática.

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