UM dos livros, cuja
leitura acabámos ultimamente e muito nos encantou, foi O Presbitério da
Montanha, desse
grande mestre da língua, prosador e poeta, que se
chamou CASTILHO, o qual, não obstante destituído,
desde tenra idade, dum dos sentidos mais preciosos, como é a
vista, conseguiu observar como ninguém a Natureza, dando-nos
dela admiráveis descrições.
O Presbitério da Montanha, escrito em prosa e verso, é
um livrinho de memórias sobre a antiga paróquia de S. Mamede
da Castanheira do Vouga, no distrito de Aveiro, onde CASTILHO,
na companhia de seu irmão e secretário o P.e e Doutor Augusto
Frederico de Castilho − que ali pastoreou −, residiu desde 23
de Outubro de 1826 a Fevereiro de 1834, no gozo, como ele
próprio confessa, dos mais ditosos e sossegados dias da sua vida.
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É um livro curiosíssimo e, para nós, um dos mais belos e
enternecedores que saíram da pena do glorioso cego, que, como MILTON,
legou o seu nome à posteridade.
O Presbitério da Montanha, apesar de muito curioso, é um livro que não
sabemos em que género devemos incluir, pois, como disse o próprio autor,
«não é histórico, nem fictício; não é didáctico, filosófico, nem
descritivo; não é prosa nem poema, nem ainda poemas; e, sem ser nada de
tudo isso, de tudo isso participa».
É um interessante livro de memórias, sobretudo descritivo, composto
naquela linguagem melíflua, amena e fluida, da mais pura gema, de que
ninguém teve o segredo como CASTILHO, da gloriosa trindade romântica o
tido por mais vernáculo.
Não obstante as palavras do poeta, reflexo da sua grande modéstia, no
interessante volume, embora a granel, encontram-se muitos dados
topográficos, históricos, lendários, folclóricos e etnográficos. Porém,
o que nele se admira, acima de tudo, é a linguagem, que é da mais
castiça e cantante do inesquecível mestre.
O livro propriamente dito é em verso; mas a parte mais importante e
característica é o preâmbulo, de 129 páginas, que é em prosa.
Apesar de cultivarmos o lirismo, agradou-nos mais a prosa do que o
verso. Questão de sensibilidade... A maior parte dos versos de CASTILHO
pecam por excesso de classicismo e alguns ressentem-se da falta de
espontaneidade. Onde o seu engenho poético é verdadeiramente admirável é
nas traduções, sobretudo no Fausto, nas Geórgicas e nas comédias de
MOLlÈRE. Nelas a sua arte literária apresenta-se com todos os requintes.
O livro é um verdadeiro hino («humilde odisseia dos sítios») à
paróquia de Castanheira do Vouga, antiga vila perto do Caramulo no
concelho de Águeda, a qual pertenceu à antiga comarca de Esgueira. Fica
na serra de Alcoba − dependência
do Caramulo − que «em voz de moiros, segundo CASTlLHO, quer dizer «abóbada» ou «montanha boleada à feição dela».
O P.e CARVALHO DA COSTA, na sua famosa
Corografia, fala-nos deste modo
da Castanheira do Vouga: «No Bispado de Coimbra, e na Provedoria de
Esgueira, 1 légua da vila de Águeda, e 11 da cidade do Porto para o
sul, em lugar alto, tem seu assento a vila da Castanheira, que chamam
da Beira, a qual é também dos Condes da Feira, e nela entra em
correição o seu Ouvidor. Consta de 160 vizinhos, com uma igreja
paroquial da invocação de S. Mamede, Priorado do Conde da Feira, que
rende 600$000 réis, e três ermidas. O seu termo tem uma freguesia
dedicada a Santa Madalena, no lugar de Agadão, que consta de 100 vizinhos.
É curado anexo à igreja de S. Mamede, que apresenta o seu
Prior. Tem este lugar muitas fontes de delgadas e salutíferas águas, que fertilizam seus campos de pão e
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vinho, e os fazem abundantes de todo o género de trutas.
Assistem ao seu governo civil dois Juízes ordinários, Vereadores, um procurador do Concelho, Escrivão da Câmara, Juiz
dos Órfãos com seu Escrivão, 1 Alcaide, e 1 Companhia da
Ordenança».
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O Cedro plantado Pelo Poeta junto à residência paroquial. |
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Pena temos de não conhecer, senão dos livros, a aldeia da
Castanheira, que visionamos lindíssima, onde CASTILHO passou
os melhores dias da sua vida; onde descreveu admiráveis composições, em prosa e verso, espalhadas por vários livros, como
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184 / Presbitério da Montanha,
Escavações Poéticas, Chave do Enigma, Noite do Castelo, etc.; e onde plantou por suas mãos, em dia de S. João,
um cedro, que, ainda hoje, tantos anos decorridos, ali viceja,
agasalhando ninhos, derramando perfume e beleza, dando sombra e paz, e
recordando a passagem inesquecível do Poeta. Belo e estranho monumento
vivo, este último, que ainda hoje é conhecido por cedro do poeta ou de CASTILHO!...
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Com estas simples notas que publicamos aqui, escritas em hora de ócio na
paz vergiliana da aldeia, queremos lembrar aos leitores do Arquivo o
imortal nome de CASTILHO e, ao mesmo tempo, frisar quanto os seus
conhecimentos arqueológicos eram deficientes, como, aliás, também o eram
os dos escritores seus contemporâneos, pois a arqueologia, como, ciência
positiva, é-lhe um pouco posterior, e não tomou verdadeiro incremento
entre nós, senão depois dos extenuantes trabalhos de CARLOS RIBEIRO, NERY DELGADO e MARTINS SARMENTO, que foram os seus principais
introdutores no nosso país.
Podemos ajuizar dos magros conhecimentos arqueológicos de CASTILHO,
vendo como o Poeta, no Presbitério da Montanha, descreve uma pirâmide
geodésica, a anta de Espírito Santo de
Arca, talvez um castro, e uma caverna pré-histórica.
A descrição desses monumentos encontra-se a páginas 36 e seguintes, e
começa pela pirâmide, mandada erguer provavelmente por quem procedeu
pela primeira vez ao estudo da triangulação do reino. Diz CASTILHO:
«Dois monumentos acrescentam veneração ao Caramulo, quanto o podem
mesquinhas obras, humanas às grandiosas moles naturais.
Num dos seus cabeços mais alterosos foi erguido, nos princípios
deste século, uma espécie de zimbório, de doze palmos de altura,
pouco mais ou menos, de pedra muito bem lavrada e argamassada. Para quê,
não dizem; mas dizem que por um engenheiro francês; razão por que os
povos da circunvizinhança, por ocasião da guerra peninsular, cometeram
demoli-lo; mas só lhe puderam fazer pelo norte um pequeno estrago. Dura
em pé, e só é acessível do nascente por uma vereda estreita e tortuosa».
A arqueologia, como se sabe, fixou já há muito a época, a significação e
a utilidade dos dólmens, sendo hoje todos unânimes em considerá-los
túmulos ou edificações sepulcrais. Segundo os eruditos, o vocábulo
dólmen significa mesa de pedra, das palavras celtas doI (mesa) e
men
(pedra). No tempo de CASTILHO, (que, aliás, foi literato e não
arqueólogo) não se sabia ainda com certeza qual o significado desses
monumentos pré-históricos.
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Vejamos como o poeta descreveu a conhecidíssima
anta de Espírito Santo de Arca:
«O outro monumento não é menos enigmático, e deve
estar farto de ver passar séculos e desfazer-se gerações.
Numa arremessada crista, a duzentos passos da igreja do
Espírito Santo de Arca, se alevanta ele, com o título imemorial de «Pedra de Arca».
É uma desconforme loisa inteiriça,
horizontalmente aguentada nos ares por esteios de pedra; quatro
em número a princípio, hoje só três, havendo sido um arrancado
para as obras da vizinha igreja.
Tem esta lájea de comprido vinte palmos, e de largura dezasseis; de
grossura, pelo nascente três polegadas, pelo norte
catorze, pelo poente onze, e outras onze pelo sul. Os pilares
contam de altura doze palmos, só da flor da terra para cima;
de largura, um que fica para o poente apresenta nove palmos,
tendo de grossura pelo poente palmo e meio, e por cima três,
e de grossura um palmo de cada lado. O último, que está
para o norte, tem de largura, por baixo cinco palmos e polegada, e por cima quatro palmos e polegada».
Depois de nos dar as dimensões da anta de Espírito Santo de Arca
− que
pertence hoje ao concelho de Oliveira de Frades
e que, dos muitos monumentos da região lafonense e caramulana, no dizer do ilustre geógrafo e escritor Sr. Dr. AMORIM
GIRÃO, merece lugar de primazia, «já porque é de todos eles o que
apresenta externamente maiores dimensões, já porque,
sendo o único geralmente conhecido, tem servido para autenticar
quantas notícias ou referências sobre a alta antiguidade a que remonta o
povoamento na região» − CASTILHO, em belas palavras, confessa a sua ignorância
sobre o povo que levantou o
remoto e descomunal monumento, e bem assim em que época e com que
finalidade.
«Com que possantes máquinas, por que mãos, em que eras,
e para que fim se alevantou ali aquela, que à fantasia se figura
bruta mesa de gigantes silvestres? Seria obra de fortificação
num sistema de guerra desconhecido? Quase que nem possibilidades o abonam. Uso agrícola, industrial, ou civil, nem a
imaginação mais inventiva lho rastreia. Memória de algum
varão ou vulto insigne, já o poderia ser. Mas então a que
rudes tempos a não havemos de referir, visto como nem data,
nem letra, nem escultura tosca, nem vestígio algum de arte
nem de arquitectura, mas só uma bruta mecânica ali se admira!
Religiosa fábrica de alguma gentilidade parece logo aquela;
e mais, quando se adverte na semelhança que tem com os altares druídicos,
ainda hoje conservados em várias partes do que foram Gálias e Germânias.
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Verdade é, que por estas nossas terras não rezam as Histórias, que se
estendesse aquela abominável seita de sacrificadores
de humanas vítimas; mas nenhuma repugnância há, em que,
perseguidos, como o vieram a ser, pelos imperadores romanos,
alguns druidas se refugiassem para este Ocidente, e aqui, em
retiros montezinhos, menos acessíveis a pesquisas e perseguições, professassem e mantivessem o seu culto, do qual (se duas
coisas mal conhecidas podem ser sem temeridade comparadas)
não muito discreparia talvez a religião do Endovélico lusitano.
Este ponto, porém, outros mais sabedores que o investiguem,
se vale a pena, como cuido; que eu me torno do Caramulo para o centro
dos meus afectos».
Continuando nas suas digressões arqueológicas, refere-se
CASTILHO a um outro monumento, que nunca vimos nem sabemos
ao certo o que seja, mas supomos serem as ruínas de alguma
antiga fortificação.
Diz CASTILHO:
«Ao sudoeste de Falgoselhe, já para fora da sua lavoira,
na primeira valeira que se encontra à direita do caminho indo
para Águeda, se vê uma fiada de umas como torrinhas, que se
estende por mil e quarenta palmos; das quais torrinhas só
duram hoje em dia os alicerces, e algumas porções iguais
de muros esboroados a delir-se».
Os seus estudos arqueológicos, no que diz respeito a
pré-história, terminam por descrever uma caverna:
«E descendo esta valeira duzentos e vinte e cinco palmos,
se dá em uma furna chamada «a buraca da cerejeira», aberta em picão em
rocha viva; a qual tem na boca oito palmos e meio
de altura, quatro e meio de largura, e cento e vinte e cinco de
comprimento. Da furna é geral fama que fora aberta pelos
Moiros».
Os períodos de CASTILHO, atrás transcritos, (cujo valor está
sobretudo na beleza e simplicidade do estilo) mostram à evidência a sua pouco menos que ignorância em assuntos arqueológicos ou,
por outra, revelam-nos o atraso da arqueologia na
época em que escreveu o Presbitério da Montanha, pois o Poeta, culto e
erudito como era, estava a par de todas as ciências, reflectindo nos
seus escritos as suas generalidades.
Não admira, pois, que CASTILHO, grande poeta, inimitável
prosador, tradutor sem par, fosse um medíocre arqueólogo.
A arqueologia era ainda uma ciência vacilante; e, além
disso − à chacun son métier −, cada qual na sua arte.
ÁLVARO FERNANDES |