HÁ tempos, no Arquivo
Histórico Militar, procurava, numa caixa de documentos relativos à
Guerra da Península, deslindar qualquer ponto duvidoso ou confuso
passado no ano de 1809, nas alturas em que se organizava a
ofensiva contra Soult. Entre muitas outras, passou-me pelas mãos uma
pasta com a seguinte verba da arrumação da casa: «Correspondência de
Isidoro
Francisco Guimarães, oficial de Marinha embarcado na Fragata «Amazona»
para o Ministro da Guerra D. Miguel Pereira Forjaz»
e por baixo, com
outra letra «(Memoria sobre a Barra de Aveiro.)»(1)
Folheando-a, então, à pressa, notei que se tratava, possivelmente, de
espécie inédita e que algum subsídio poderia dar não só para a história
acidentada da Ria, como para a própria luta que se travava contra o
invasor, ainda desconhecida em
certos pormenores.
E o acaso quis assim dar-me o prazer de uma descoberta que, de qualquer
modo, seria modesta contribuição, da minha parte, para o notável
repositório de história regional que é o Arquivo do Distrito de Aveiro.
Vista, porém, há pouco, com vagar, verifiquei que a «memoria» do
comandante Guimarães, sem ser destes elementos fundamentais para o
estudo de qualquer ponto, tem contudo bastante valor por conter certos
dados acerca do problema da barra do Vouga, colhidos por observação
pessoal directa, atenta e, segundo parece, desinteressada; por dar
indicações relativas à população marítima e piscatória; por fazer
observações judiciosas sobre a inferioridade do policiamento do porto e
a insuficiência
/ 162 / de conhecimentos dos seus pilotos; por esclarecimentos
concernentes ao desembarque dum combóio inglês que é passo
obscuro nesta fase da guerra contra os franceses; e ainda pela
circunstância (que pouco se repete) de o seu autor a escrever
sem a isso ser obrigado, simplesmente levado por intenção
do bem público e da defesa nacional.
É pois digna de momentos de atenção e de ficar arquivada
com os comentários, embora ligeiros, que aí deixo, para compensação do silêncio imerecido que sobre ela caiu durante cerca
de cento e trinta anos bem puxados.
O oficial da Marinha de Guerra, Isidoro Francisco Guimarães, dirigiu, em
Maio de 1809, a entrada na ria aveirense, com certa rapidez, de um combóio «considerável» de 39 navios de transporte britânicos com
mantimentos e munições e 1 «bergantim»
de guerra que os comboiava(2)
− operação militar que, pela
primeira vez, se realizava depois da abertura da barra no ano
anterior.
O comandante Guimarães não vinha no comboio; estava em terra há uns
dias e creio ter vindo da Figueira em cuja baía pairava,
então, outro comboio inglês com tropas de desembarque(3). Dias antes, desde 10,
procedeu a sondagens da barra e do canal e como visse a possibilidade da
entrada dos navios, animou-se e resolveu tentar o que a muitos parecia
arriscado não só pelo acto em si como pelas condições da barra pouco
ou nada estudadas.
/ 163 /
Esta acção de que o autor se vangloria (e quero crer que com justos
motivos) por «ser em uma ocasião em que dependia da sua
entrada uma
parte das venturas do Exército combinado»
deu-se no dia 13(4) no espaço breve de uma hora, passando
à
frente, por pedido do comando, o «bergantim de S. M.B.» de nome Port
Mahon(5) que queria ser o primeiro, no qual embarcara, para efeitos de
direcção de pilotagem, o próprio autor da «memória». Todos os barcos
seguiram aos respectivos ancoradoiros sem a menor novidade.
Depois, Isidoro Guimarães deixou-se ficar na Ria uma temporada; e
apesar do tempo em que sempre soprou «tempestuoso vento», dedicou-se
ao exame das condições locais com
cuidada atenção ou, pelo menos, como ele próprio diz «tal qual as minhas
ideias puderam compreender».
Impressionou-o a construção da muralha existente, do lado sul, cujo
projecto fora «hũ pouco atrevido»; mas a grande necessidade da barra
assim impunha pois, caso contrário, «a Cidade ficava redusida a hũa
absoluta miseria». Louva, pelos seus trabalhos, o engenheiro Oudinot e
o seu continuador Luís Gomes de Carvalho e lastima as dificuldades
pecuniárias que não deixaram concluir obra tão «importante» já pensada
há algumas dezenas de anos e ainda então por acabar.
Descreve o canal que levava à cidade e faz considerações
acerca do
estado sanitário e da miséria das populações da Ria por virtude da
subida das águas enquanto a barra esteve fechada. E, como oficial de
marinha, refere-se ao valor dos ancoradoiros, à corrente das águas, sua
profundidade, possível formação de bancos, qualidade dos fundos,
necessidade de constantes sondagens, etc. Menciona a importante
indústria do sal e notou a «prodigiosa quantidade de barcos de
pescaria» e entra, também,
na apreciação, um pouco dura, do valor da pilotagem, e das suas
embarcações, preconizando outra regulamentação destes serviços
prejudicados, então, por questões de competência e afirmando que, com as
obras necessárias e devido policiamento, o porto seria um dos primeiros
de Portugal.
As considerações que o autor da «memória» exarou são, como diz, consequência do seu desejo de ser útil; o pouco tempo de que dispôs e as
más condições em que fez o seu estudo, não o deixaram ser mais longo nem
mais preciso.
E com a melhor das intenções,
passado pouco mais ou menos um mês,
estando de serviço na fragata Amazona(6) surta
/ 164 /
no Tejo, remeteu para o Ministro da Guerra a sua «memória» com um
ofício que dá a medida dos intuitos e da qualidade moral do seu autor(7).
«Ill.mo, e Ex.mo Snr.
− Tenho a honra d'apresentar a V.ª Ex.ª a memoria
sobre a nova Barra, tal qual as m.as idêas poderão comprehender.
Desejarei que por ella V.ª EX.ª fique ao alcance das coisas, que (são)
inteiram.te indispensáveis p.ª manter a d.ª Barra. − Rogo a
V.ª Ex.ª
queira perdôar, e dar disculpa ao mal arranjado, e escasez das m.as
idêas, e athé porq o pouco tempo, que tive p.ª fazer as m.as
observaçoens, me não deu lugar a mais. − D.s G.e a
V.ª Ex.ª − Bordo da Fragata Amazona, surta no Tejo 23 de Junho de 1809.
− Ill.mo e Ex.mo Snr.
D. Miguel Pereira Forjaz Coitinho. − (a) Isidoro Francisco Guimarães.»
E a «memória» lá foi, em caderno de 8 fls. sem numeração,
ainda perfeitamente conservado, de papel almaço branco estrangeiro...
com marca a água de J. Hessels e cosido com dois laços de fita vermelha.
Está toda escrita pelo punho do autor, com tinta que se
tem apagado muito; e começa a fls. 2 e termina a fls. 6 v.º.
Segue a «memória» cuja ortografia se respeita:
«Memoria sobre a nova Barra d'Aveiro aberta em 3
d'Abril de 1808.»
«O Porto d'Aveiro está situado na embocadura do Rio
Vouga, 9. legôas ao Norte da Figueira.
«A historia maritima d'Aveiro he mui interessante. Ha seculos que este
Payz tem soffrido acontecimt.os do maior interesse, porque o ter a Barra
huas vezes aberta outras fechada tem influido p.ª que tenha
experimentado
diffrentes alternativas, e he delas, que tem dependido o Commercio, a
Agricultura, e mais que tudo ainda a saude dos habitantes; e por isto
m.mo as Artes nesta parte de territorio tem marchado a passos lentos,
porq esta Cid.e estava entregue somente aos acazos naturaes da
embocadura do Vouga, que huas vezes innundava o Payz, outras o fazia
florecer.
«Não se póde bem exactam.te fixar a Epocha, em que se projectou hua
muralha, que he hoje o que existe da parte do Sul, e que m.to bem se
pode chamar o sustentaculo da Barra porq he d'encontro a ella, que
batem as agôas expedidas das diffrentes partes, que compoem aquella Ria.
/ 165 /
«A necessidade de sustentar as agôas em hua corrente porpocionada á sua
abundancia he que fez certam.te conceber o projecto de levantar esta
muralha.
«Este projecto não deixou de ser hu pouco atrevido, não só pelo
grande, e difficil trabalho de levantar a d.ª
muralha, como athe por não haverem meios ou fundos p.ª se concluir, e
todo o fim deste intento era conseguir hua Barra, como coiza de prim.ra
necessidade p.ª o Payz, sem
a qual a Cidade ficava reduzida a hua absoluta mizeria, e pobreza, como
com eff.º esteve por espaço de m.tos annos; e não só os habitantes e
officios (?) faltos da prim.ra necessid.e p.ª a sua (fls. 2
V.º)
subsistencia, mas athe todos os annos padecião bastante na sua saude, e
deste modo a Cidade ia ficando despovoada, porq sendo seu maior
commercio as Marinhas de Sal, e a Agricultura dos Campos, que estão
entre as d.as Rias, e em todas as circunferencias do Vouga, elles se
achavão por espaço d'annos inundados, porq não tinhão hua Barra que
desse sahida as agôas, e deste modo todos os habitantes estavão privados
dos meios de subsistencia, porque não tinhão onde os procurar no Payz, e
se vião por isso obrigados a abandona-lo.
«Este plano foi approvado pelo Brigadeiro = OUDINOT =
off.al
Engenheiro, que he o que mais figura na historia destes trabalhos, e que
continuou a seguir o Ten.te Coronel do m.mo corpo d'Engenheiros, Luiz
Gomes q.do o d.º Brigadeiro foi por S. A. R. mandado p.ª a Ilha da
Mad.ra afim
de reparar os damnos, que se occazionarão na d.ª Ilha pela alluvião
sucedida no anno de 1803: e a este off.al se deve a concluzão da
d.ª
obra, que nenhuns trabalhos, e cuidados poupou p.ª a effectuar.
«Esta importante obra percizava de immensas despezas, e não tendo o
Governo destinado fundos alguns p.ª ella, decretou hua impozição de
direitos aos habitantes da Cidade sobre a carne e o vinho, cujo producto
seria applicado p.ª a execução da d.ª obra. Estes direitos tem se
athequi recebido, e recebem ainda hoje. A muralha que tem perto de 700
toêzas de cumprimento he a quem se pode attribuir a esperança de hua
Barra duravel, e que trará aos habitantes a saude, e pode então o
commercio
ser considerado, como sua properid.e (sic).
«Os trabalhos desta muralha tem continuado, e alguas vezes suspendido
seg.do as circunstancias, porem os direitos tem se percebido
constantem.te, e por conseg.e reâlizado hua
quantid.e de fundos
consideravel.
«Como por muitos tempos estiverão suspendidos os trabalhos desta
muralha, chegarão a juntar-se nos Coffres d'Aveíro oitenta, e tantos contos de reis, e o
Ex.mo Marquez
de Pombal então Ministro d'Estado mandou meter este
/ 166 /
dinheiro no coffre da. (foI. 3) Companhia G.al do Alto
Doiro no Porto, com a condição expressa que estes fundos
serião entregues, logo que fosse percizo continuar estes
trabalhos.
«Ha 6. annos que esta Epocha chegou, e era percizo com
eff.º que
chegasse, p.ª se concluir a muralha, que exigia hua grande e pronta despeza, e foi perciza a
autorid.e reãl p.ª que a d.ª Companhia pagasse á conta da divida
vinte contos de reis, que immediatam.te se gastarão; e sendo as
circunstancias actuães hũ pouco criticas p.ª o pãgam.to total da divida, contudo por outra parte, ella se
faz indispensavel, não só p.ª acabar a d.ª muralha, como
athe p.ª reparar os damnos que ella soffreu pelo choque
violento das agôas, q.do a Barra se abrio no dia 3. d'Abril de 1808,
porque havendo 5. annos, que estavão estagnadas
viérão com hua violencia tal, que arruinarão parte da
muralha.
«Todos os lugares na circunferencia do
Vouga são
payzes planos, e que reprezentão bem a imagem da Hollanda quer pelo Norte, quer pelo Sul: pela parte de
Leste a vista termina-se por montanhas.
«Dois Cães m.to bem feitos, e cuja direcção he de Leste
a Oeste, e que tem d'extensão pelo menos 500 toêzas formão
o Canal que conduz á Cid.e: a detença das agôas occazionou tambem algua ruina a estes Cães, e o pouco cuidado
que tem havido na limpeza do m.mo Canal, que se póde fazer
com bast.e facilid.e, e athe m.mo com pouca despeza,
tem feito encaminhar alguns entulhos lançados á beira-mar
ao longo do Canal, que conduz á barra, e que vão formar
bancos, ou ao menos, que os podem formar por toda a sua
extensão, e impedem m.mo a corrente das agôas, que sendo
encaminhados (sic) sem algum obstaculo podem formar
mais profundo o Canal, ou pelo menos o Ancoradoiro de
S. Jacinto: sua distancia á Barra he de hua legôa, e hu
quarto, e a sua (foI. 3 v.º) povoação he de 7. a 8. mil habitantes.(8) Mais de 7. legôas de hu fertil terreno estava
inutilizado p.ª a Agricultura pela innundaçoens, que ha
5. annos cobrião os campos: todos os annos os habitantes
d'Aveiro soffrião violentas febres, e a povoação toda estava
submergida na disgraça pela falta de cultura das terras, e
de todo o commercio axterior. Estas circunstancias locaes erão sem duvida
de mui grande consideração: e elIas só
serião bastantes p.ª projectar a abertura da Barra; e ainda
que era de bast.e importancia o suspender por entretanto
/ 167 /
a abertura della p.ª se concluirem os trabalhos da muralha, afim de que
com o choque das agôas não soffresse algua ruina, com tudo isto não pôde
effectuar-se, e foi percizo fazer a irrupsão, como com eff.º se fez no
dia 3. d'Abril de 1808. por q as agôas erão muitas; tudo estava
innundado, e julgou o Off.al Engenheiro mais conviniente abri-la, ainda
que certos trabalhos percizos á concluzão da obra estivessem pouco
avançados, do que sofrer outras ruinas, que se podião mto bem occazionar pela detença das agôas. Não pertendo aqui metter-me no
detalhe de mostrar se foi a natureza que fez a irrupsão, ou se foi obra
permiditada do Off.al Engenheiro; porq quer fosse por hu, quer por
outro modo, elle sempre merece no meu conceito todos os elogios, porq a
natureza não poderia ali fazer suas funçoens se a arte lhe não tivesse
preparado o caminho.
«A corrente he extremam.te rapida na vazante: ella não tem o curso
ordinario das marés da Costa; eu fiz sempre que me foi possivel esta observação, e encontrei que a
enchente durava pouco mais de 4. horas. A grande profundid.e he perto, e
ao longo da muralha, contra a qual as agôas do Rio vem bater com baste
força, e por conseq.ª a corrente he tão violenta que Navio algum pode
ahi estar ancorado com segurança, sendo por isso necessario amarrarem-se
sempre no Ancoradoiro de S. Jacinto, e (fl. 4) ainda mais ao Norte. Agora
que com eff.º se effectuou e sahiram as grandes agôas e com hũa
violentissima corrente, persuado-me não haver nada a temer a resp.to da
segurança da muralha, nem ainda m.mo nos Invernos, em que as chuvas
forem mais copiosas: e o que bem acabou de observar-se no prezente (anno),
que sendo bem tempestuoso, e trazendo immensas agôas ao Rio, nenhũ
perjuizo cauzarão na muralha: e não he de crer que se ajunte tamanha
porção d'agôa, como aquella que ha 5. annos estava espalhada pelos
campos, e lugares da circumferencia do Vouga, porem isto só a
experiencia nos pode fazer milhor conhecer, e he
m.mo de suppor que a muralha, cuja base he solida, e larga haja de
resistir ao choque das agôas; mas nos prim.ros dias d'abertura da Barra,
a muralha supportou hu choque tão violento, que em alguns lugares se
arruinou, e em outros abateu sobre a Estacaría que a sustentava. He por
tanto
da maior necessidade, e sem perda de tempo o cuidar em a pôr em estado
de rezistir a todas as cauzas, que possão aumentar a corrente, cujos
effeitos poderião m.to bem destrui-la de todo, e de repente; ella não
tem por agora, mais que 6. homens a trabalhar, q.do lhe serião percizos
500 ou 600.
«Aveiro pode m.to bem considerar-se como
hũ viveiro de Marinheiros. A
maior parte da sua povoação não se
/ 168 /
emprega em outra coisa mais que na Pescaria, e na extracção do Sal das
Marinhas e seu arranjam.to, por conseq.ª toda esta gente he
naturalm.te
propria p.ª a vida do Mar.
«A Ria tem hua prodigiosa
quantid.e de barcos de pescaria: o seu numero
he certam.te de 3. mil, e cada barco tem pelo menos 6. homens: ha
alguns, que fazem a pescaria em alto mar, porem estes não excedem
certam.te a 25., porem cada barco tem perto de 80. homens.
«Na extremid.e interior da muralha ha hu mui antigo castelIo, que he
m.mo difficil fixar a Epocha, em que se edificou, no qual se (foI. 4
v.º) tem feito mui pequenos reparos, e que serão percizos m.tos mais
p.ª
o pôr em estado de receber Artilharia, que ainda que reconcentrada (?)
pode m.to bem bater a entrada da Barra.
«O Ancoradoiro de S. Jacinto he o mais belIo e o mais proprio, não só
pela sua profundidade, como pelo abrigo
de todos os ventos do mar; e he athe m.mo extensisimo.
«Apenas eu tenho podido sondar este Ancoradoiro em
alguas partes, porq nem tempo, nem meios tive p.ª isso, e he
absolutamente percizo sondar amiudadas vezes p.ª conhecer bem o canal,
sua profundid.e p.ª os Ancoradoiros, e amarraçoens, e ver
m.mo se ha
alguas mudanças nos bancos(9), o que sempre costuma suçeder em barras
d'arêa. Nas observaçoens que fiz conheci que o fundo era tão bom, que
ainda que hu Navio vindo à velIa, encalhe, nenhũ prejuizo pode ter.
«Não ha nesta Barra senão hũ Piloto-Mór nomeâdo pelo
Con.º do
Almirantado; este, ainda que não são mui grandes seus conbecim.tos
n'Arte que exerce, comtudo he affoito bast.e, e trabalhador; ha mais hu
homem a que chamão = Sota-Piloto-Mor, nomeâdo pela Camara daquelIa Cid.e
que não só não conhece nada de Pilotagem, mas athe me asseverou elIe m.mo não ter ido hua só vez ao mar; e ha mais 4. Pilotos, que chamão
juramentados, que não são mais que huns meros Pescadores, que conhecendo
o canal da Barra se contentão só com isso, ignorando o modo ainda o mais
simples de fazer hua amarração. Estes Pilotos vão ao mar, ou a bordo
d'algua Embarcação, se querem, e negão-se q.do igualm.te lhe apraz:
elIes não conhecem superior ligitimo que os dirija: os Magistrados da
terra ordenão lhe isto, ou aquilIo, q.do igualm.te lhe agrada, ou
q.do
conhecem que daqui lhe resulta algum interesse particular, e pelo
contr.º todos se roubão ao trabalho de os dirigir; e m.mo elles o não
podem fazer com acerto, porq não intendendo coisa algua d'arte de
Marinha (foI. 5) podem a todos os
/ 169 /
instantes serem iludidos. Na repartição da Marinha não ha naquella Cid.e
policia algũa: agora bem o observei na passagem das tropas combinadas, que sendo precizos Barcos
p.ª as conduzirem a Ovar, e às Provisoens, com m.to custo
pude aprontar 130., q.do a Ria tem 3. mil, e disto m.mo se
queixou o Gn.al Welesley;(10) e se houvesse
hũ alistam.to de
todos os Barcos, que tem as Rias, por seus numeros, e declarando o nome
dos Arraés, elles se não poderião escapar, nem procurar disculpa algũa.
O Piloto-Mór tem apenas hũa Embarcação, e esta incapaz p.ª as
observações, que precisão fazer-se naquella Barra, e que devem ser com
m.ta exactidão, porq infalivelm.te se devem encontrar muitas mudanças de
hũ a outro dia no seu fundo pela violencia da corrente, que leva
continuam.te da parte do Norte porçoens enormes d'arêa, cuja
mobilid.e
forma bancos ora em hũ ora
em outro lugar, e he de toda a necessid.e observar e sondar
continuam.te aquella parte, que os Pilotos chamão Pancada do mar que fica ao NO. da
Barra hũa milha em distancia
da sua embocadura, porq pode m.to bem ser que as arêas da parte do
Norte, que com a impetuosid.e da corrente vão sendo levadas ao mar
depozitem sobre este Banco, que fica ao NO., e onde o mar rebenta bast.e,
ainda m.mo em tempos bonançosos, e de calma: por muitas vezes eu quiz
ratificar as m.as sondas, e não o pude fazer, porq não tinha nem
Embarcação, nem q.m me ajudasse, porq os homens do mar
o não querião fazer sem lhe pagar, e eu me não considerava
autorizado p.ª os obrigar. No dia(11)
10. de Maio eu sondei todo o Canal e Barra, e
pouca diff.ça lhe encontrei do que tinha achado ha hũ anno, e confiado nas
m.as observaçoens me resolvi
tentar a entrada dos 40. Transportes Britanicos, e a conclui dentro de
hua hora, sem prejuizo ainda o mais
isignificante (sic); e tendo o comnd.º do Berg.m de S. M. B.
todos os desejos de ser a prim.ra Embarcação de Guerra
que entrasse naquelle Porto, me animei a faze-lo, sendo eu m.mo que
entrei p.ª dentro (fl. 5 v.º) delle, trazendo-o ao Ancoradoiro.
«Esta Barra não offrece mais que hua quantid.e de
legôas d'arêa quer p.ª o Norte quer p.ª o Sul, e por isso
mui difficil p.ª os Navegantes, que vem d'alto mar procurar
aquella Barra, principalm.te no Inverno, porq alem de ser aquella costa
perigozissima n'aquella Estação, não ha hũ
sinal nella que ao longe se marque p.ª a vir demandar, e
por isso julgo mui percizo, e athe da prim.ra necessid.e
fazer na ponta da muralha hua torre, ou farol, que sirva de
guia aos Navegantes.
/ 170 /
«A antiga Barra, que era 4. ou 5. minutos mais ao Sul,
fechou-se de todo.
«Se houvessem sufficientes fundos
p.ª continuar os
trabalhos desta interessante obra, que exigem que sejão
grandes, certam.te esta Barra seria a prim.ra de Portugal
depois da de Lx.ª, e a Cidade mui opulenta pello commercio
exterior, porq dali as mercadorias podião ser transportadas p.ª dffrentes partes da Provincia da Beira com mais
facilid.e que da Cid.e do Porto, e seguir-se-hião alem disso
p.ª a Cid.e e p.ª o Reino todos os proveitos que se costumão tirar de
hũ
Porto commercial pela franqueza da sua Barra.
«As marinhas de Sal são hũ dos mais interessantes
ramos de Commercio daquella Cid.e, e m.mo os campos da
circumferencia do Vouga que se achão já todos descubertos
pela abertura da nova Barra offrecem hu ramo consideravel d'
agricultura.
«He excuzado fazer menção das vantajens, que rezultão, e tem já
rezultado á Cid.e, e seus habitantes, porq evidentem.te se tem conhecido
desde que a Barra se abrio.
«Só piquenas Embarcaçoens podem chegar athé á
Cid.e, porq em distancia della, hũ quarto de legõa, pouco
mais ou menos (sitio da Gafanha) ha hũ Banco d'arêa que
atravessa o Canal de hũ ao outro lado, onde só se encontrão dez palmos
d'agõa na praia mar: e he m.mo de toda a necessid.e levantar dois
pilares de hũ e d'outro lado do
Canal, que marquem o d.º Banco, o qual creio que não
poderá por limpo adquirir maior profundid.e, por não haverem ahi correntes tão fortes que levem aquella porção
(fl. 6) d'arêa, ou lodo, que o formão; porem athe ao d.º
lugar da Gafanha podem chegar Embarcaçoens de maior lote, e o transporte
das mercadorias p.ª a terra he facilimo
de fazer-se, não só pela m.ta abundancia de Barcos, que ha
naquella Ria, como athe por ser piquena a dista á Cid.e e ser a Ria
sempre mui tranquila.
«Quando o Conç.º do Almirantado nomeôu
hũ Piloto-Mor p.ª a d.ª Barra d'Aveiro (a antiga Barra) estabeleceu
Artigos competentes á sua jurisdição, e marcando lhe m.mo os seus salarios e modo de os repartir, regulando o resto
pelo que se acha determinado a resp.to da Barra do Porto;
porem nada disto se põem em execução, porq nem o
Piloto-Mor he autorizado pelos Magistrados da Cid.e p.ª
mandar, e fazer-se obedecer, nem elles ordenão coisa algũa, porq he tudo
fora da sua arte, e athe m.mo se o Piloto-Mor reprezenta ser lhe
percizo isto, ou aquillo, todos se roubão (?) n'estes trabalhos, dizendo, não lhe pertencê; e nestas
circunst.as não ha naquella Barra providencias alguas p.ª entrada e sahida de Navios, e eu m.mo me não admirarei
se algum dezastre houver de succeder a alguas Embarcaçoens,
/ 171 / que tentem a entrada daquelle novo Porto, ficando por isto
desacreditada a Barra, e sem aquellas vantajens, que dahi se podem
tirar. A Barra do Porto nos dá disto hũ exemplo bem manifesto, porq
sendo certam.te a Barra a mais perigoza, não deixa por isso de ser a
mais commercial, e deve isto só ao cuidado, que ha em a sondar sempre
que o mar o permite, e marcar todas as suas mudanças.
«No pouco tempo que estive em
Aveiro pude conhecer os partidos, que havião sobre a abertura da nova Barra;
huns desacreditando-a de todo, e outros abonando-a; e he certam.te daqui
que tem resultado o (não) haverem aquellas providências q são
inteiram.te indispensaveis.
«He mui provavel haverem nesta Barra
acontecim.tos percizos a
ponderar-se; e que mereção hũa mais seria atenção. O que acabo (foI. 6
v.º) d'expôr, he só o que foi do meu alcance no pouco tempo, que ali
estive, e athe o tempestuozo vento que sempre ali reinou no mez de Maio
me estorvou fazer mais algũas observaçoens, que devem ser reiteradas, e
feitas por hũ homem habil e intelig.e d' Arte da Marinha.
«Tendo eu sido o prim.ro que me animei a fazer entrar naquella Barra,
hũ
Comboy tão consideravel, eu desejarei que ella p.ª futuro traga á Cid.e
e ao Reino as vantajens, que eu desejo: restando-me alem disso
a gloria
de ser o prim.ro e ser em bela occazião em que dependia(12) da sua
entrada hua parte das venturas do. Exercito combinado, que marchava a
fazer evacuar da Cid.e do Porto o Inimigo commum.
«(a) Isidoro Francisco Guimarens.»
O documento seguiu os seus trâmites. Na repartição
competente, depois de lido e apreciado talvez por quem só de
nome saberia da existência da barra aveirense, adicionaram-lhe, em verbete preso com alfinete, a seguinte informação:
«Isidoro Fr.co Guimarens apresenta hũa Memoria sobre a nova Barra de
Aveiro, fundada nas poucas observações que ali poude fazer qd.º em Maio
de 1809 teve a satisfação de fazer entrar o combóy inglez com Tropa, que
tanto
contribuio para a evacuação dos Franceses d'Entre Douro e Minho.(13)
«Passando em claro neste Extracto varias observações judiciosas que
apresenta, e q só lendo se se perceberão
/ 172 /
bem, diz com sentimento que na Repartição da Marinha não ha policia
algũa, nem alistamento de barcos, com seus
numeros e nomes dos Arraes. Que se preciza fazer hum
Farol na Ponta da Muralha. Que os Artigos do Piloto Mór
dados pelo Almirantado não se executão. Que o Sota piloto
Mór nomeado pela Camara he ignorantissimo, e q os 4 pilotos que ha não passão de Pescadores, nem reconhecem superIor.
«A Comp.ª do Porto tem mais de 60 contos de reis
para a obra q deve continuar, e se faz tanto mais preciza
que o choque das aguas de 3 de Abril de 1908 atacou a
Muralha.»
Perante esta informação, em que se passam em claro
«observações judiciosas» e cujo estilo, próprio do funcionalismo, não deixa perceber se é favorável ou desfavorável, podia
esperar-se, em todo o caso, qualquer despacho que desse tal ou qual
satisfação às intenções do autor.
Mas não. Logo por baixo, mas com outra letra, há apenas
uma verba cuja brevidade e secura chegam a impressionar de
se lerem os interessantes alvitres e as curiosas observações que
acima ficam:
«P.ª se guardar −»
Esta verba deve corresponder ao moderno «arquive-se»
com que muitas vezes se responde aos importunos.
Na verdade o ministro D. Miguel Pereira Forjaz tinha mais
em que pensar e é possível que o funcionalismo por cujas mãos passasse a
«memoria» tivesse perguntado quem é que mandou ao oficial de Marinha
Guimarães fazer trabalhos de tal ordem por conta própria.
E para se ver como o bem intencionado marinheiro não andava em
maré
alta, certo documento que me foi mostrado no
Arquivo onde está a «memória»
(14) vem elucidar-nos que três
anos depois ainda o Estado lhe não pagara 8 meses de soldo
e 7 de «comedorias» − quem sabe se vencimentos da época
em que, com perícia e patriotismo, conseguiu a entrada do
combóio inglês de socorro na Ria aveirense e, por própria
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iniciativa estudava a melhor maneira de valorizar um porto
estragado e quase abandonado que era, no centro do País e no momento, de
capital importância para a acção que se empreendia contra o invasor.
Neste último ponto, o Arquivo não nos deu novidade.
Quem se habituou a manusear documentação guardada nos
Arquivos, encontra, muitas vezes, resoluções superiores que não atendem
a esforços desinteressados ou boas intenções. O caso deste oficial
marinheiro não é, pois, surpresa.
Creio, porém, que a «memória» agradará aos aveirenses conscientes de
que a valorização do seu formosíssimo porto corresponde às maiores
necessidades da vida da cidade e região às quais os problemas modernos
não tiraram a oportunidade, antes, possivelmente, com as modificações
porque está passando o mundo, deram maior relevo.
Coimbra, Julho de 1942.
BELISÁRIO PIMENTA |