Joaquim Leitão, Como criei a "Canção do Regresso", Vol. VII, pp. 259-262.

N.º 28 − Dezembro, 1941

ARQVIVO

DO DISTRITO DE AVEIRO

Directores e proprietários:

ANTÓNIO GOMES DA ROCHA MADAHIL

FRANCISCO FERREIRA NEVES

JOSÉ PEREIRA TAVARES

Editor:

FRANCISCO FERREIRA NEVES

Administração:

Estrada de Esgueira − AVEIRO


Composto e impresso na Tipografia da Gráfica de Coimbra − Largo da Feira, 38 − COIMBRA


COMO CRIEI A

"CANÇÃO DO REGRESSO"

As personagens das obras de ficção, mesmo quando fortemente caracterizadas pela figura que centre a acção, raro se encontram na vida tal qual o autor as modela. A personagem poderá ser de uma peça só como logicamente a pressupõem os seus actos. Mas ainda que o Autor a observe directamente, a não ser o caso excepcional de ser colhida em meio familiar − e a galeria de um escritor por certo que não se compõe apenas de figuras da sua intimidade − a personagem tem de ser reconstituída com lógica fisiológica e psíquica. O autor vai buscar ao arsenal da sua experiência estudos acumulados que lhe permitem levantar a figura. E, ora porque é sugestivo para o público, ora porque ao próprio autor dá a necessária sugestão da personagem viva que ele quer mover, apega-se a um pormenor, a um gesto de certo modelo, às vezes a um nome de baptismo evocador do tipo humano.

A própria marcha para o desfecho teatral de peça − que constitui a razão de ser do conto ou da novela − quase nunca o autor a copia. Cria-a. Se de outra forma fosse a obra literária deixaria de ser ficção, criação, para se tornar trabalho de copista, de retratista e de aparelho radiodifusor.

Tudo na obra de efabulação é sobreposição e retoque. A própria fotografia não se contenta com o que a luz e a objectiva lhe dão. Acrescenta, corrige, conclui, retoca.

A Canção do Regresso não podia criá-la de maneira diferente. O desfecho, porque assim foi na tragédia verídica da versão, pedia o estudo dos riscos dramáticos da pesca da Terra Nova; a origem da personalidade masculina da acção − em verdade, filho da Murtosa − exigia a reconstituição da vida do pescador murtoseiro. / 260 /

Assim se explicam as duas ambiências: a da costa atlântica, aqui pertinho na corda aveirense, e a dos Bancos da Terra Nova.

Uma e outra tinham que estudar e requeriam conscienciosa documentação. Começou a fornecer-ma o Dr. Mário Caes Esteves, hoje Director e Secretário Geral do Ministério do Interior, e então Governador Civil de Setúbal. Mas a sua leal probidade não tardou a pôr-me em contacto com quem na casa dele podia dar-me o depoimento testemunhal da vida num veleiro ido à Terra Nova, porque fizera essa viagem num dos barcos da casa: o irmão, sr. Adelino Caes Esteves.

Noites e noites, esse excelente rapaz veio a minha casa documentar-me, com segurança e com paciência a toda a prova. Inteligente, escolheu os quadros, depôs e justificou, ampliou os kodaks da sua memória. Gerente da própria firma familial de armadores, tudo conhecia: o recrutamento da comparsaria piscatória, o vocabulário, a psicologia, as fases da faina, desde a pesca, e a «escala» até à salga e à estiva do peixe. Para de tudo dispor o meu paciente documentador, nem lhe faltou na viagem que fizera à Terra Nova uma tempestade, com todo o aparato das atitudes e linguagem dos marítimos, que eu descrevo na novela.

Tinha já o documentário da viagem, sem esquecer as ameaças das deslocações dos gigantescos blocos de gelo, nos mares árcticos, fixara toda a manobra, toda a técnica da pesca, recolhera a linguagem pitoresca das tripulações, os usos e costumes de bordo, − tão impregnados da fé dos que, pela natureza do modo de vida, não podem ter dúvidas de que andam nas mãos de Deus, − como seja o saudar da rendição do homem do leme.

Faltavam-me os tipos.

Da beira Douro, desde a Ribeira a Matosinhos e Leça, a minha qualidade de portuense andava desde pequeno ao par do que eram marítimos e pescadores.

Sabia lá todavia, se ainda eram como eu os conhecera em criança e se seriam iguais aos da minha região os que andam na faina do bacalhau!

Então, o Sr. Adelino Caes Esteves e o Dr. Mário Esteves proporcionaram-me o estudo directo dos tipos, autênticos, genuínos pescadores da Terra Nova. Um belo dia de luz mediterrânea, fui a Setúbal: e na Associação Marítima Setubalense tinham-me lá uns cinquenta homens, curtidos pelo ar salino das rotas da Terra Nova, alguns novitos, outros veteranos com vinte e trinta das longas viagens.

Desenhei à vontade. Daquele contingente de figurantes verdadeiros, «à procura de um autor» tirei o Carapinha, o Manuel da Barroca, o José Gaiteiro, o Ti Firmino. Para completar a indumentária, bastava enfiar-lhe as botifarras de borracha, o casaco de oleado e enterrar-lhes o sueste na cabeça. / 261 /

Estava completa a documentação dos lugres que vão à Terra Nova, e que havia muitos anos eu começara, sem meios de concluir.

Mas a acção chamava-me à Murtosa.

António do Monte era murtoseiro, e eu tinha de o apresentar em cena quando ele ensaiava os voos de mareante nas águas natais.

E aqui intervém outro e admirável documentador: o Dr. Carlos Barbosa, culto advogado, brilhante orador, antigo Deputado, Director do Banco Pinto & Sotto Maior, murtoseiro ilustre e que tem pelo seu torrão fervoroso amor helénico. E Carlos Barbosa que me descreve a arrumação do barco, o lançamento à água, a disposição dos homens, a largada, a competição das companhas, essa movimentada «recachia» sob a regência do arrais, o retorno das redes carregadinhas de peixe, a lata, o quadro!

Não se apercebendo do vigor da sua narrativa, dizia-me desconsolado:

− Se o meu amigo visse... Assim naturalmente não retém...

Fora tão sugestiva, tão minuciosa, tão completa, tão vigorosa a descritiva que eu pude escrever a página de um jacto, e Carlos Barbosa apenas teve o trabalho de me prestar um ou outro pormenor complementar.

Estavam estudadas ampla, conscienciosamente as duas ambiências por onde o pescador, cuja morte enlutara a Murtosa, tinha de transitar.

Dispunha do cenário completo, total.

A acção era autêntica, e em tudo conforme a dei na Canção do Regresso. Narrara-ma outro murtoseiro, Joaquim Soares, amigo de Carlos Barbosa, que era ao tempo gerente da Filial do Banco Pinto & Sotto Maior, no Porto. Colhera ele o assunto quando vivia em Aveiro, no Hotel.

A criadita do Hotel, rapariga séria, dali da região, era estimada de todos os pensionistas. Cantava como a dou na Canção do Regresso, triste primeiro, feliz quando houve noticias de que ia entrar o barco onde andava o irmão. Os rapazes acompanharam-na a bordo. Ela sabe, como na minha novela, da morte do irmão e enlouquece a bordo, tal qual narro.

Como a pinto, depois passou a vida a pentear-se, a tirar e a pôr o lenço, a embalar as suas esperanças, a rir, a prantear-se. E respeitada a verdade accional, observada estritamente por passos de observação directa como o amanhecer de uma população piscatória ao ouvir soar o búzio das companhas, presenciado em férias passadas no Furadouro, a devoção acabou de prender a novela à região. Conhecida através da família de Carlos Barbosa, para a evocar prendi à minha página a desaparecida figura de António Vieira Pinto, − preito pelo amigo, − relembrado na própria dedicatória à senhora D. Maria Augusta Vieira Pinto Barbosa, virtuosíssima mulher de Carlos Barbosa, / 262 / por quem eu tinha gratíssimo respeito e cuja memória me traz ainda, aos olhos lágrimas de veneradora saudade.

À figurinha casta da tragédia, dei o nome de Maria do Carmo, filha de Carlos Barbosa. À tia de Maria do Carmo pus-lhe o nome da verdadeira tia, a Ex.ma Sr.ª D. Mariana Vieira Pinto Barbosa, mulher do ilustre médico Dr. Manuel Barbosa.

Tudo anda em torno dos amigos que me ensinaram a amar essa região amorável, e que trouxeram até mim a luz da Ria, o casto viver da sua Murtosa, a gaia e musical festa do S. Paio, a ternura por um trecho de Portugal em que a arquitectura do torrão e a anatomia das gentes tem graça clássica, que resiste aos sois e às chapadas de água salgada.

A Canção do Regresso, cujas primeiras páginas, a «recachia », já têm três edições, sendo duas com o título de Pescadores da Murtosa, para ser bem dali nem sequer lhe falta este pormenor: o substratum da tragédia assentar na castíssima dor de um amor fraternal. Não há episódios complicados nem tenebrosos. É o sentimento cândido de uma irmã que endoidece de desespero ao saber que o mar lhe ficara para sempre com o irmão.

Dor que não pragueja − canta, por isso comove mais.

Lisboa, 31 de Outubro de 1941.

JOAQUIM LEITÃO

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