As personagens das obras
de ficção, mesmo quando fortemente caracterizadas pela figura que centre
a acção, raro se encontram na vida tal qual o autor as modela. A
personagem poderá ser de uma peça só como logicamente a pressupõem os seus actos. Mas ainda que o Autor a observe
directamente, a não ser o caso excepcional de ser colhida em meio
familiar − e a galeria de um escritor por certo
que não se compõe apenas de figuras da sua intimidade − a
personagem tem de ser reconstituída com lógica fisiológica e psíquica. O
autor vai buscar ao arsenal da sua experiência estudos acumulados que
lhe permitem levantar a figura. E, ora porque é sugestivo para o
público, ora porque ao próprio autor dá a necessária sugestão da
personagem viva que ele quer mover, apega-se a um pormenor, a um gesto
de certo modelo, às vezes a um nome de baptismo evocador do tipo humano.
A própria marcha para o desfecho teatral de peça
− que constitui a razão de ser do conto ou da novela − quase nunca o autor a
copia. Cria-a. Se de outra forma fosse a obra literária deixaria de ser
ficção, criação, para se tornar trabalho de copista, de retratista e de
aparelho radiodifusor.
Tudo na obra de efabulação é sobreposição e retoque. A própria
fotografia não se contenta com o que a luz e a objectiva lhe dão.
Acrescenta, corrige, conclui, retoca.
A Canção do Regresso não podia criá-la de maneira diferente. O desfecho,
porque assim foi na tragédia verídica da
versão, pedia o estudo dos riscos dramáticos da pesca da Terra Nova; a
origem da personalidade masculina da acção − em verdade, filho da Murtosa
− exigia a reconstituição da vida do pescador murtoseiro.
/
260 /
Assim se explicam as duas ambiências: a da costa atlântica, aqui
pertinho na corda aveirense, e a dos Bancos da Terra Nova.
Uma e outra tinham que estudar e requeriam conscienciosa documentação.
Começou a fornecer-ma o Dr. Mário Caes Esteves, hoje Director e
Secretário Geral do Ministério do Interior, e então Governador Civil de
Setúbal. Mas a sua leal probidade não tardou a pôr-me em contacto com
quem na casa dele podia
dar-me o depoimento testemunhal da vida num veleiro ido à Terra Nova,
porque fizera essa viagem num dos barcos da casa: o irmão, sr. Adelino
Caes Esteves.
Noites e noites, esse excelente rapaz veio a minha casa documentar-me,
com segurança e com paciência a toda a prova. Inteligente, escolheu os
quadros, depôs e justificou, ampliou os kodaks da sua memória. Gerente
da própria firma familial de armadores, tudo conhecia: o recrutamento da
comparsaria piscatória, o vocabulário, a psicologia, as fases da faina,
desde a pesca, e a «escala» até à salga e à estiva do peixe. Para de
tudo dispor o meu paciente documentador, nem lhe faltou na viagem que
fizera à Terra Nova uma tempestade, com todo o aparato das atitudes e
linguagem dos marítimos, que eu descrevo na novela.
Tinha já o documentário da viagem, sem esquecer as ameaças das
deslocações dos gigantescos blocos de gelo, nos mares árcticos, fixara
toda a manobra, toda a técnica da pesca, recolhera a linguagem
pitoresca das tripulações, os usos e costumes de bordo, − tão
impregnados da fé dos que, pela natureza do modo de vida, não podem ter
dúvidas de que andam nas mãos de Deus, − como seja o saudar da rendição
do homem do leme.
Faltavam-me os tipos.
Da beira Douro, desde a Ribeira a Matosinhos e Leça, a
minha qualidade de portuense andava desde pequeno ao par do que eram
marítimos e pescadores.
Sabia lá todavia, se ainda eram como eu os conhecera em criança e se
seriam iguais aos da minha região os que andam na faina do bacalhau!
Então, o Sr. Adelino Caes Esteves e o Dr. Mário Esteves
proporcionaram-me o estudo directo dos tipos, autênticos, genuínos
pescadores da Terra Nova. Um belo dia de luz mediterrânea, fui a Setúbal:
e na Associação Marítima Setubalense tinham-me lá uns cinquenta homens,
curtidos pelo ar salino das rotas da Terra Nova, alguns novitos, outros
veteranos com vinte e trinta das longas viagens.
Desenhei à vontade. Daquele contingente de figurantes verdadeiros, «à
procura de um autor» tirei o Carapinha, o
Manuel da Barroca, o José Gaiteiro, o Ti Firmino. Para completar a indumentária, bastava enfiar-lhe as botifarras de borracha, o
casaco de oleado e enterrar-lhes o sueste na cabeça.
/
261 /
Estava completa a documentação dos lugres que vão à Terra Nova, e que
havia muitos anos eu começara, sem meios de concluir.
Mas a acção chamava-me à Murtosa.
António do Monte era murtoseiro, e eu tinha de o apresentar em cena quando
ele ensaiava os voos de mareante nas águas natais.
E aqui intervém outro e admirável documentador: o Dr. Carlos Barbosa, culto
advogado, brilhante orador, antigo Deputado, Director
do Banco Pinto & Sotto Maior, murtoseiro ilustre e que tem pelo seu
torrão fervoroso amor helénico. E Carlos Barbosa que me descreve a
arrumação do barco, o lançamento à água, a disposição dos homens, a
largada, a competição das companhas, essa movimentada «recachia» sob a
regência do arrais, o retorno das redes carregadinhas de peixe, a lata,
o quadro!
Não se apercebendo do vigor da sua narrativa, dizia-me
desconsolado:
− Se o meu amigo visse... Assim naturalmente não retém...
Fora tão sugestiva, tão minuciosa, tão completa, tão vigorosa a descritiva que eu pude escrever a página de um jacto, e Carlos
Barbosa apenas teve o trabalho de me prestar um ou outro pormenor
complementar.
Estavam estudadas ampla, conscienciosamente as duas
ambiências por onde o pescador, cuja morte enlutara a Murtosa, tinha de transitar.
Dispunha do cenário completo, total.
A acção era autêntica, e em tudo conforme a dei na
Canção
do Regresso. Narrara-ma outro murtoseiro, Joaquim Soares, amigo de
Carlos Barbosa, que era ao tempo gerente da Filial
do Banco Pinto & Sotto Maior, no Porto. Colhera ele o assunto quando
vivia em Aveiro, no Hotel.
A criadita do Hotel, rapariga séria, dali da região, era estimada de
todos os pensionistas. Cantava como a dou na Canção do Regresso, triste primeiro, feliz quando houve noticias
de que ia entrar o barco onde andava o irmão. Os rapazes acompanharam-na
a bordo. Ela sabe, como na minha novela,
da morte do irmão e enlouquece a bordo, tal qual narro.
Como a pinto, depois passou a vida a pentear-se, a tirar e a pôr o
lenço, a embalar as suas esperanças, a rir, a prantear-se. E respeitada
a verdade accional, observada estritamente por
passos de observação directa como o amanhecer de uma população
piscatória ao ouvir soar o búzio das companhas, presenciado em férias passadas no Furadouro, a devoção acabou
de prender a novela à região. Conhecida através da família de
Carlos Barbosa, para a evocar prendi à minha página a desaparecida figura de António Vieira Pinto,
− preito pelo amigo, −
relembrado na própria dedicatória à senhora D. Maria Augusta
Vieira Pinto Barbosa, virtuosíssima mulher de Carlos Barbosa,
/
262 /
por quem eu tinha gratíssimo respeito e cuja memória me traz ainda, aos
olhos lágrimas de veneradora saudade.
À figurinha casta da tragédia, dei o nome de Maria do
Carmo, filha de Carlos Barbosa. À tia de Maria do Carmo pus-lhe o nome
da verdadeira tia, a Ex.ma Sr.ª D. Mariana Vieira
Pinto Barbosa, mulher do ilustre médico Dr. Manuel Barbosa.
Tudo anda em torno dos amigos que me ensinaram a amar
essa região amorável, e que trouxeram até mim a luz da Ria, o casto
viver da sua Murtosa, a gaia e musical festa do S. Paio,
a ternura por um trecho de Portugal em que a arquitectura do
torrão e a anatomia das gentes tem graça clássica, que resiste
aos sois e às chapadas de água salgada.
A Canção do Regresso, cujas primeiras páginas, a «recachia », já têm três edições, sendo duas com o título de
Pescadores da Murtosa, para ser bem dali nem sequer lhe falta
este
pormenor: o substratum da tragédia assentar na castíssima
dor de um amor fraternal. Não há episódios complicados
nem tenebrosos. É o sentimento cândido de uma irmã que
endoidece de desespero ao saber que o mar lhe ficara para
sempre com o irmão.
Dor que não pragueja − canta, por isso comove mais.
Lisboa, 31 de Outubro de 1941.
JOAQUIM LEITÃO |