A. G. da Rocha Madahil, Alguns aspectos do trajo popular da Beira Litoral, Vol. VII, pp. 115-172.

ALGUNS ASPECTOS DO TRAJO

 POPULAR DA BEIRA LITORAL

◄◄◄ − Continuação do vol. V, pág. 282.

A mantilha, de que vínhamos tratando (figs. 6, 53, 62 e 65), de camelão ou de boa baeta preta, excepcionalmente cor de pinhão, debruada a tarja de veludo da mesma cor, e que por vezes era lavrado, com ornatos relevados, consistia ordinariamente num manto algum tanto rodado que descia até o joelho, e se usava sobre o vestido inteiro ou saia e blusa desirmanadas.

Nalgumas localidades tomava o nome de capoteira; e recentemente, nos cortejos folclóricos a que temos aludido, ouvimos as suas portadoras designá-la também pelo nome de capa, e, ainda, capote; indevidamente, supomos nós, pois capa e capote talhavam-se de diferente modo da mantilha.

Variava o seu acabamento de região para região; não seriam também estranhos ao facto os meios de fortuna das suas possuidoras; apresenta, às vezes, uma pequenina gola triangular, atrás; e em Torre de Bera pudemos observar um exemplar magnífico, com um belo laço de fita de veludo lavrado, de nó fixado por uma roseta de vidrilhos, e caindo pelas costas abaixo em cinco pontas.

BLUTEAU, no seu Vocabulario Portuguez & Latino..., em 1716, registava a mantilha em duas fases da sua evolução; a antiga, com bico para cobrir a cabeça, e a de então, já sem ele; mantilha de mulher, diz o erudito teatino, é «huma especie de veo, ou capa sem cabeção, nem talho, à medida do pescoço, que se poem sobre a cabeça, ou hombros; algumas saloyas a trazem pela cintura. A mantilha he mais comprida que capinha, & menos authorizada que manto. He mais usada nas Provincias, que na corte. Mantilha de bicos, era a modo das mantilhas, que hoje se usaõ, mas com grandes bicos para diante. Ainda hoje ha ciganas que usaõ dellas. Muliebre pallium ou Palliolum, i. Neut. / 116 / Mantilha tambem era huma especie de banda traçada, que traziaõ as mulheres em lugar de capotes, & hoje so as usaõ as mulheres do povo, & em lugar de mantos na Beira».

É interessante notar que em 1873, Fr. DOMINGOS VIEIRA, no Grande Diccionario Portuguez, omite já estes significados de mantilha, registando apenas o que corresponde à nossa figura 58, que data de 1814: mantilha munida duma espécie de pala de cartão forrado que formava a côca lançada sobre a cabeça. Estava já em franca decadência a mantilha vulgar, e o dicionarista anotou apenas uma forma antiga, que ele certamente conheceu mais.
Cremos que, originariamente, a mantilha não era trajo popular. Principiou por ser usada na sociedade senhoril, e era então constituída por uma capa mais rodada, que descia até o artelho, ou pouco menos; assim a encontramos na Beira Litoral também, em gente fina.

 

 
 

Fig. 66 − MANTILHA
Usada por «meia senhora» de Aveiro, a acompanhar saia de cauda.
Fotografia de CARLOS RELVAS, posterior a 1874.

 

Evolucionou muito, encurtando o seu comprimento; em compensação, foi descendo na categoria social das suas portadoras, como é lei fundamental de todo o trajo, passou à classe que antigamente era uso chamar das meias senhoras, e, para o fim do século XIX, já as tricanas de Aveiro e de Coimbra a usavam; tornou-se então popular e por isso se regista nestes apontamentos.

Em 1886 declarava TEÓFILO BRAGA (O Povo Portuguez... / 117 / voI. I, 363) que a mantilha (que ele filiava no véu negro notado por ESTRABÃO nas mulheres ibéricas) acabara, havia poucos anos, no Porto; mais adiante (pág. 376) porém, atribui-lhe origem árabe. De certeza, fica apenas a sua antiguidade em Portugal.

No Branco e Negro, n.º 93, de 9 de Janeiro de 1898, ALBERTO PIMENTEL pronuncia-se pela tradição mourisca para os rebuços, biocos, e mantilhas. No Panorama de 1857, pág. 324, um artigo tendo por tema os trajos nacionais proclama que seria bem útil que tanto os homens como as mulheres da classe secundária largassem o uso moirisco dos capotes... por «oposto ao espírito dum povo activo e industrioso!...»

Acompanhava-a muito um lenço branco de bobinete levemente engomado, que se colocava na cabeça de maneira a formar bico à frente, sobre a testa(1); atrás, o lenço caía livremente pela mantilha abaixo e apenas se segurava à frente por meio duma laçada ou nó singelo; as nossas figs. 4 e 53 dão suficiente ideia dessa posição do lenço, à frente e atrás; o arranjo registado nas figs. 6, 62 e 66, com todas as pontas metidas para dentro, é muito menos popular.

Vimos pessoalmente mantilhas em Rocas, Vale de Cambra, S. João da Madeira, Albergaria-a-Velha, Ovar, Murtosa, Estarreja, Águeda, Aveiro, Ílhavo, Vagos, Pampilhosa, Coimbra, Almalaguês, Torre de Bera, Figueira da Foz, Buarcos, Quiaios, etc.

Com este mesmo nome de mantilha, e abandonado já o antigo significado, começou a vulgarizar-se, passado 1900, a mantilha de renda, de proveniência espanhola, que os rendeiros da Galiza introduziram calcorreando Portugal inteiro, de volumoso fardo às costas, apoiado a um respeitável metro de madeira, e apregoando sempre o seu característico: ren... dé... ren... dé...

Ainda há trinta anos o rendeiro espanhol ambulante era uma figura popularíssima da Província, criando amizadees e, por vezes até, constituindo família em Portugal e fixando-se. É hoje comerciante que raro aparece, conquanto se encontre ainda, uma vez ou outra; a camioneta, que domina a vida actual, tornou a sua existência desnecessária; é condição do progresso acabar com os regionalismos e nivelar civilizações.

Essa mantilha de renda destinava-se apenas a cobrir a cabeça e usava-se principalmente para a frequência da igreja, como hoje em dia novamente se observa.

Importa, portanto, não a confundir com a antiga mantilha capoteira; são peças de vestuário totalmente diversas.

/ 118 / À mantilha de renda se deve considerar referida a quadra que por volta de 1907 se cantava em Aveiro e nós recolhemos:

Chamaste-me sevilhana
Pelo trajar da mantilha;
A tricaninha de Aveiro
É igual à (2) de Sevilha.

Sevilhanas se chamavam também essas coberturas de cabeça, em razão evidente da sua proveniência.

 

 
 

Fig. 67 − MANTÉU DE SERGUILHA Trajo popular de Aveiro Fotografia de CARLOS RELVAS, posterior a 1874.

 

Relacionado com a mantilha-capoteira como vestuário popular de agasalho, mais pobre, contudo, era o mantéu, de que podemos apresentar, para a nossa região, uma expressiva fotografia (fig. 67), duas litografias (figs. 16 e 17), três aguarelas antigas (figs. 57, 59, 61), e dois desenhos de reconstituição (figs. 28 e 70); confeccionavam-se em baetão, burel, briche e serguilha: cor de castanha, pretos, azuis, excepcionalmente brancos; tinham um cabeção franzido, que os cingia ao pescoço por meio de duas fitas − às vezes, de cores vivas, bem como o cabeção; ainda hoje não é impossível encontrar o mantéu a uso entre mulheres de idade, por toda a nossa Província.

Um exemplar expressivo de mantéu rico, de festa, é o que a fig. 68 reproduz, dum desenho de MANUEL DE MACEDO; a litografia, já do final do século XIX, é hoje muito rara e merece / 119 / bem a homenagem duns minutos de atenção, porque o trajo que a pescadeira, ou camponesa (mulher de Ílhavo, diz unicamente a legenda) enverga, é um modelo de louçania e de equilíbrio: sobre uma camisa branca de cabeção enfolhado, a rapariga vestiu / 120 / o gracioso coletinho que lhe enformava o busto, aconchegando o farto seio, e que era mantido em posição por meio de 3 pares de grandes botões de prata com sua travinca.

 

 
 

Fig. 68

Litografia n.º 2 da colecção organizada pelo Sr. Coronel FERREIRA LIMA e extraída de exemplares do «Almanaque Ilustrado das Horas Românticas» de 1885 a 1891 (catalogada a pág. 28 do opúsculo cit. do referido autor, alínea 13). Colorida. Desenho de MANUEL DE MACEDO. Estas mesmas estampas, segundo se lê nesse trabalho, vendiam-se montadas em cartões com títulos, e, 1898, na feira que então se realizou na Avenida, em Lisboa, por ocasião do Centenário da Índia.

 

A saia de cima largamente rodada, de barra de veludo recortado, que um ligeiro galão acentua ainda, foi repuxada para a cinta e aí segura com uma larga faixa de cor, terminada em franja nas pontas; da cintura pende a algibeira bordada a lãs de cor e debruada a fita clara; a saia de baixo, alvíssima, aflora provocante, em consequência do levantamento a que a faixa obrigou a de cima; meia branca, embora de algodão, revela bem que o trajo é festeiro − trajar de função, como dizia a Salineira, de BERNARDO DE MAGALHÃES; a chinelinha de verniz preto remata, delicada e graciosa, o harmonioso conjunto.

Grossos cordões de ouro, um grande coração e enormes arrecadas − todo o luxo tradicional da mulher do povo portuguesa − animam o rosto prazenteiro da rapariga e atestam as qualidades de observação do artista que a desenhou.

Sobre esta indumentária singela mas alegre, assenta agora o famoso mantéu acima referido; é peça de excepção, como dissemos; cabeção largo de veludo, debruado em recorte, cinge-lhe os ombros; e amplas bandas, de veludo também, a um lado e outro, forram-no de alto a baixo, debruadas igualmente a fita obedecendo ao mesmo motivo decorativo dos bicos que todas as artes populares largamente empregam.

O lenço e o chapéu... são um verdadeiro monumento; outras figuras nossas os registaram (4, 9, 10, 16, 17, 21, 23, 28, 32, 33, 45, 47, 52, 55, 59, 61, 62, 70); o lenço ainda presentemente se prende assim ao chapéu actual nalguns lugares da Beira Litoral como temos observado em Ovar, em Sangalhos, em Mira, e nomeadamente no Carqueijo, em Sargento-Mor, em Luso e mais arredores da Mealhada; só o chapéu desapareceu, reduzido a mais convenientes proporções; fabricavam-se em Braga e no Porto e usavam-se um pouco por toda a parte; além da nossa Província, onde se documentam abundantemente, vemo-los, por exemplo, numa belíssima litografia de G. VIVIAN representando a Torre dos Clérigos e o antigo mercado do Porto, noutra de J. J. FORRESTER datada de 1835, da feira da cordoaria, do Porto também, numa litografia de SÁ (oficina da Rua Nova dos Mártires, de Lisboa), tendo em primeiro plano o cruzeiro de Porto de Mós, nas litografias antigas das varinas de Lisboa, noutra satirizando D. Miguel e a Junta do Porto (estampa n.º 9 dessa colecção), etc.

Fazem lembrar os chapéus flamengos dos conhecidos retratos do Infante D. Henrique, nas tábuas de S. Vicente, do Museu das Janelas Verdes, e de D. Afonso V, no códice de Stuttgart, das viagens do Cavaleiro de Ehingen.

Mas não sei se outra não terá sido a sua proveniência, pois ainda hoje as camponesas moiras de Fez os usam, de formato / 121 / perfeitamente igual aos nossos, sem lhes faltarem as travincas lançadas à copa, como se pode ver na gravura de pág. 270 do grande descritivo Marrocos, do escritor JOSÉ DE ESAGUY.

Custavam, no último quartel do século passado, vinte e quatro tostões e chegaram a ser cantados numa quadra popular de Ílhavo que já noutro lugar(3) reproduzi:

Chapéus de meia moeda
Vende a Rita da Moleira;
Mal empregados são eles
A andar ao pó da Cambeia... (4)

Em Salreu chamavam-lhe chapéus de ver a Deus, certamente por só em dias de festa aí serem usados.

Para o Norte eram conhecidos por chapéus à vareira, deles falando também a cantiga popular da terra da Maia:

Sou maiata, sou maiata,
Trago chapéu à vareira;
Também sei falar de amores
Como qualquer lavradeira.


Ao uso do
mantéu e do grande chapéu em Cantanhede, por exemplo, se referiu em 1886 SANCHES DE FRIAS, nas suas Notas a lápis, Passeios e Digressões peninsulares, deixando registado a pág. 96: «Da localidade pouco há que dizer; é pobre e feia. O único característico mais de notar encerra-se no traje invariável, que vimos às mulheres e às crianças... um mantéu, que lhes desce da cabeça, e um chapéu à serrana, ambos mais vistosos e amaneirados do que a capucha de burel e o chapéu dos pastores da Beira.»

Registamos também, já agora, duas interessantes descrições do trajo feminino dos arredores de Aveiro: uma, de Cacia, Sarrazola, Quinta do Loureiro, Vilarinho e Paço, trazida a público no semanário O Povo de Aveiro de 30 de Abril de 1939, incluída no comentário ali feito ao cortejo folclórico desse mês e ano, na cidade (já atrás transcrevemos desse mesmo comentário o que dizia respeito a vestuário masculino):

«Colete em veludo preto guarnecido em volta com barra de seda vermelha da largura de 3 cm. Nas costas um ramo de flores, em três cores, vermelho, verde e amarelo. / 122 / 

Havia também coletes em seda amarela adamascada. Os coletes de seda amarela eram debruados com uma barra de seda azul escura; os vermelhos eram de barra de seda azul clara debruados com uma tira de 3 cm.

Os coletes apertavam com 3 pares de botões de prata grandes e ligados por uma corrente. Havia botões lisos e lavrados. Os lenços eram de seda em cores vermelha, verde, amarela, azul e bordados em uma das pontas com um ramo, Tinham franja.

Fig. 69 − RAPARIGAS DE CACIA  Actualidade.

A camisa com gola e guarnecida a renda. As saias de castorina ou mescla preta com barra de veludo em baixo e a toda a volta da saia. A largura da barra de veludo tinha 3 a 4 cm.

As saias eram compridas deixando ver somente uma pequena parte da perna e tinham muita roda. A algibeira, de qualquer pano claro, com fita vermelha ou cor de rosa ou verde para atar à cinta. O chapéu era preto como o que usavam as mulheres da Beira-Mar − Aveiro. Debruado de fita de veludo preta e à volta da copa fita do mesmo veludo. Chinelas de verniz ou de pano preto com biqueira de verniz, meias brancas. Nas orelhas, argolas grandes em ouro; ao pescoço um colar de contas em ouro com um caracol pendente ou uma cruz.»

Evidentemente, o autor deste apontamento descreveu peças de vestuário que tinha presentes, peças de excepção, em todo o / 123 / caso, pois os tecidos de que eram constituídas não andavam a uso diário (veludos bordados, sedas, mescla, castorina, lenços de seda); apesar disso, abstraindo do tecido, o trajo está bem descrito e foi notado com exactidão.

Para se verificar, desde já, a grande evolução que se operou no trajo popular em 50 anos, pedimos o confronto daquela descrição com a nossa figura 69, fotografia de três raparigas de Cacia, da actualidade; desapareceu o colete, como por toda a parte, o lenço é outro, o chapéu é outro.

A blusa incaracterística, copiada de figurinos internacionais, banalizou por completo o aspecto da mulher do povo; salva-se ainda o chapéu; o seu preço actual, elevadíssimo (40 escudos, e mais), e a campanha contra o transporte de carregos à cabeça(5), acabarão por o banir também dentro de poucos anos.

Outra descrição de trajo popular feminino, antigo, dos arredores de Aveiro, encontra-se nas notas sobre Ílhavo doutros tempos, da autoria do Conselheiro FERREIRA DA CUNHA E SOUSA, acima extratadas já quando agrupámos o que se referia a vestuário masculino:

«Nas mulheres, o vestido era da mesma forma que o dos homens, de invariável simplicidade e uniformidade. Saia de serguilha (fraldilha) preta, colete de qualquer fazenda, não excluindo
o veludo carmesim, preso no peito por tema abotoadura de prata, de par; e no pescoço um par de botões de filigrana de ouro unia o estreito colar da camisa; nenhum outro vestido; os braços só cobertos com as mangas da camisa, lenço na cabeça e no peito, de paninho azul com barras amarelas, e o capote, que era uma capa curta, de pano azul guarnecida nas extremidades laterais, e desde o pequeno cabeção, por uma fita de veludo preto; completava a vestidura o chapéu de larguíssimas abas guarnecido de presilhas de fita de veludo preto.

Para a chuva havia o mantéu, também de serguilha preta, uma espécie de saia aberta e comprida que tornavam sobre o capote.

Em dias de casamento e festa o mesmo vestido, devendo a saia ser azul, e o capote de bom pano azul, do mesmo talho dos / 124 / de uso, mas comprido até cobrir toda a saia e com largas bandas de cetim azul claro. Nestes dias, ou quando doentes ou convalescentes, calçavam meias; fora destes casos, chinelas rasas ou tamancos, e quase sempre descalças de pé e perna, o que não obstava a que o pé se apresentasse sempre tão lavado e mimoso, além de geralmente bem feito, que ninguém diria ser habituado a andar descalço.

Fig. 70 − TRAJO ANTIGO DE ÍLHAVO − Reconstituição feita em 1904 pelo aguarelista ROQUE GAMEIRO, Desenho pertencente ao ilhavense Sr. Dinis Gomes. Gravura extraída do livro de ROCHA MADAHlL, História e Etnografia, bases para a organização do Museu Municipal de Ílhavo; 1934

E este trajo era de rigorosa uniformidade, a qual ia até à cor dos lenços. Admitia-se ao domingo lenço branco na cabeça, mas não de outra cor além da habitual − azul; era preto durante o luto. O chapéu, sem diferença alguma assim no feitio e qualidade como nos ornatos (fitas e presilhas), mas simplesmente por jeito que lhe davam ao colocá-lo na cabeça, deixava conhecer se a portadora era rapariga solteira, casada, viúva, ou se era beata. O lenço da cabeça sempre por dentro do capote, salvo quando punham o capote de gala; então a ponta do lenço branco de paninho, cassa / 125 / ou cambraia, e mais ou menos bordado a branco, estendia-se sobre o capote. O cabelo era cortado, devendo contudo cobrir-lhe a testa até aos sobrolhos. Deixar crescer o cabelo, apartá-lo por um rêgo ao meio da cabeça e afinal atá-lo, foi uma campanha por longo tempo sustentada com os maridos e pais, mas em que afinal ficaram vencedoras.»

Fig. 71 − RAPARIGAS DE ÍLHAVO − Com o trajo usado pelas pescadeiras em 1910.

Compare-se a descrição e ajuste-se às nossas figuras n.os 16, 28, 52, 68, 70; veja-se agora como tudo aqui evolucionou rapidamente também; é de cerca de 1910 a fotografia que a fig, 71 reproduz; nada restava do antigo; hoje, menos ainda; o chapéu tornou-se mais pequeno, com a aba perfeitamente encostada à copa, ganhando, no entanto, em distinção (fig. 7); a saia perdeu mais roda e subiu, tendo chegado a pescadeira a usá-la travadinha; a faixa sumiu-se de todo; qualquer atilho, ourelo, cordinha ou guita grossa serve para as pescadeiras que, da beira mar da Costa Nova ou do mercado de Aveiro trazem o peixe a Ílhavo, altearem as saias(6): ensaiarem-se, ou ensilharem-se, como elas dizem / 126 / − a fim de obterem maior liberdade de movimentos e poderem correr.

Esta graciosa pescadeirita de Frossos (fig. 72), de nossos dias, é frisante exemplo do trajo popular feminino actual, generalizado à beira-mar incluída na zona em referência; só o chapéu o diferencia um pouco; aqui, a portadora usa o característico da Murtosa, de copa muito baixa e aba um pouco saliente, elegantíssimo, menos distinto porém, menos senhoril, que o da mulher de Ílhavo.

 

 
 

Fig. 72 − PESCADEIRA DE FROSSOS Actualidade (1941)

 

Em 1908 vestia como a fig. 73 permite apreciar, a peixeira de Ovar e Espinho; compare-se com a fig. 17 (anterior a 1875) e registe-se idêntica evolução.

A varina trabalhando em Lisboa, vestuário em que desde sempre atentaram viajantes e artistas (fig. 13, 21, 23, 27, 55) evolucionou também, como era natural; de alparcatas de feltro com sola de borracha e pompon de seda, por exemplo, a vimos nós pelas ruas da capital, há bem pouco tempo; conserva, apesar de tudo, a linha que a extrema da mulher lisboeta e não abandonou ainda o chapelinho murtoseiro onde a rodilha e a macola assentam como se foram peças criadas expressamente para com ele se completarem. Dessa varina moderna dá ideia o belíssimo e expressivo desenho de STUART CARVALHAIS, de 1936, que a nossa fig. 74 reproduz.

Quão longe estamos daquele tipo (íamos a dizer... clássico) de «Ovarinas», desenhado por TOMÁS JOSÉ DA ANUNCIAÇÃO (fig. 75) ou até por MANUEL DE MACEDO (fig. 76), de 1872 este último! Ainda em 1900 o Almanaque ilustrado do Ocidente estampara essa mesma gravura, que não tinha perdido actualidade, comentando-a, na parte aqui aproveitável, desta expressiva forma: / 127 /

«Em as noites de Santo António, de S. João e de S. Pedro, as ovarinas dão a nota alegre da cidade com os seus descantes e bailados pelas ruas e praças, especialmente no Rossio e no mercado da Praça da Figueira. A festa do Senhor da Serra é também outro dia de regozijo para as ovarinas. Vão todas para Belas em alegre romaria com os seus homens; algumas em carroças enfeitadas de flores e chitas de ramagens, outras a pé calcorreando por essas estradas não menos de quinze quilómetros, dançando e cantando pelo caminho, e assim como vão, vêm, sempre alegres e incansáveis, descalças ou de tamanquinhas, sustentando nos quadris bem reforçados suas numerosas e fartas saias que lhes dão pela tíbia, e sobre o farto colo, onde se avolumam os seios protuberantes, bastos cordões de ouro, contas, corações, cruzes, Nossas Senhoras do precioso metal, como em tabuleta de ourives, recamando-lhes o corpete avivado ou a camisa de mangas ao punho com seus cabeções bordados.

Fig. 73 − PEIXEIRAS DE OVAR E ESPINHO − Trajos de 1908.

Das orelhas pendem-lhes grandes arrecadas de filigrana ou até de ouro maciço e a emoldurar-lhe o rosto colorido e vivo, um lenço de seda de cores vistosas, pontas caídas, saindo-lhe de sob o chapéu redondo que lhe completa o traje.»

E em 1878, no Universo Ilustrado, um artigo de F. NERY sobre tipos nacionais apresentava a varina em Lisboa «sempre / 128 / de xaile enrolado em volta da cintura, de lenço e chapéu desabado na cabeça, de grandes arrecadas de ouro nas orelhas, e de cordões, contas e relicários ao pescoço

Fig. 74 − VARINA de Lisboa. Actualidade (1941) − Desenho de STUART CARVALHAIS

Com o trajo de varina antiga de Lisboa se fotografou a Rainha D. Maria Pia: camisa de punhos, colete, enorme saia rodada, lenço e chapéu, meia branca e chinela, etc. (Ilustração Portuguesa / 129 / de 26 de Fevereiro de 1906). E a Rainha D. Amélia tomou para tema dum dos seus quadros, que apresentou na Exposição do Grémio Artístico, em 1892, uma varina de Lisboa também (Revista ilustrada, N.º 48 de 1892, pág. 71). Aqui se reproduz um desenho original de D. AFONSO, do mesmo tema.

Fig. 75 − OVARINA DE LISBOA − Desenho original de D. Afonso, Duque de Bragança.

Tudo isto documenta o grande interesse que o trajo da varina sempre suscitou, consequência da graciosidade e harmonia dos seus elementos, de remota ascendência, em contraste com a banalidade do vestuário corrente. Comentando o concurso da terra de mais lindas mulheres em Portugal, dizia a Ilustração Portuguesa de 2 de Julho de 1906:

«Quem, aqui mesmo em Lisboa, deixou de reparar mais de uma vez na elegância ondulosa da varina, na beleza oriental da sua pele e no ingénito donaire das suas atitudes? / 130 /

Parecem modelos de um atelier de escultor − dizia ALFREDO SERRANO, parando em frente ao mercado da Ribeira Nova, poucos dias depois do seu regresso da Áustria, ainda saudoso das tirolesas e das vienenses».

Fig. 76 − OVARINAS − Litografia baseada num quadro de TOMÁS JOSÉ DA ANUNCIAÇÃO
(Museu Municipal de Ílhavo).

Do trajo feminino de Ovar escrevia em 1912 o agrónomo / 131 / [Vol. VII - N.º 26 - 1941] JOÃO VASCO DE CARVALHO na monografia rural que acima aproveitámos já para o vestuário masculino.

Fig. 77 − OVARINAS
Desenho de MANUEL DE MACEDO, gravado em madeira por J. PEDROZO; é a estampa n.º 17 do álbum intitulado A gravura de madeira em Portugal − estudos em todas as especialidades e diversos estilos por J. PEDROZO; Lisboa, Horas Românticas, 1872.

«O traje da mulher do povo, há uns 50 anos, era extremamente interessante. Compunha-se de um enormíssimo chapéu / 132 / desabado, com cerca de 1 metro de comprimento e com copa baixa. Como a aba era ridiculamente baixa, para não ficar derrubada, ligavam-na à copa por meio de presilhas. Imagine-se por baixo desta enorme mole um lenço de cores berrantes, solto sobre a nuca, e sobre os ombros uma comprida capa de pano preto e aí teremos o aspecto de uma mulher de Ovar em dias de trabalho. Quando não traziam chapéu, levantavam então o enorme capelo ou rebuço da capa, o qual lhe encobria quase por completo o rosto. Actualmente, a vareira usa o conhecido traje da varina, quase sem diferença sensível.»

Evidentemente, o trajo da mulher de Ovar não consistia apenas no «enormíssimo chapéu desabado», no «lenço de cores berrantes» e na «comprida capa de pano preto»...

Mas nada mais o autor acrescentou a quanto fica transcrito. As nossas figuras 17, 21 e 55, especialmente, elucidam bem e permitem concluir de diferente modo acerca do formosíssimo trajo antigo de Ovar; e a sua evolução em 1908 e na actualidade também se pode seguir através das figs. 27 e 29 com grande segurança.

De 1863 se conhece uma fotografia de mulher de Ovar vestindo mantilha, lenço branco de bobinete, grande chapéu vareiro e calçando chinela; foi publicada no fascículo do Turismo Magazine de Janeiro de 1933, dedicado àquela vila.

Da evolução do trajo na Gafanha fixou alguns aspectos a monografia que em 1938 o Reverendo JOÃO VIEIRA REZENDE publicou, trabalho utilíssimo também já por nós aproveitado nesta leve inquirição de como vestiu, e veste, o povo da nossa Província da Beira Litoral; aí se lê, a propósito do vestuário feminino local:

CHAPÉU

«O primeiro tipo de chapéu de que aqui há notícia é o chapéu de presilha e de abas tão largas que se tornou necessário, para não desabarem sobre os ombros, segurá-las ou prendê-las com fitas ou presilhas, que partindo do rebordo das mesmas abas, as iam segurar à copa exteriormente e em toda a volta dela. Colocado sobre uma mesa de tamanho regular, ocupava-a totalmente. Seguiu-se-lhe depois o chapéu de tope, de aba menos larga, mas suficientemente ampla para resguardar totalmente o tronco dos raios solares.

Era desprovido de presilha. O tope consistia em farta laçaria de fitas em forma de pinha alta e colocada sobre a copa, o que tornava o chapéu bastante incómodo, sobretudo para o transporte de qualquer objecto sobre a cabeça. Por esta razão muitas mulheres não o queriam usar, dando em resultado haver / 133 / ao mesmo tempo dois tipos de chapéu: o de tope com a respectiva aba larga e um outro com aba igualmente larga, mas sem tope.

Foi por isso que o uso do chapéu sem tope prevaleceu por mais tempo. Aí por 1870 também se usou o chapéu de maçaneta e que era adornado por uma maçaneta grande, de retrós preto ao centro e sobre a copa, e ainda por outras mais pequenas em volta da mesma copa. Veio depois o chapéu de penacho, interessante chapelinho de aba tão reduzida que, dobrada para cima paralelamente à copa, a não ultrapassava na altura e ficavam tão pouco distanciadas aba e copa, que dificilmente se lhe poderia fazer passar de permeio um dedo sequer. A aba era inteiramente coberta exteriormente com fita de veludo, e sobre a copa e em volta dela, quase a tocar o bordo da aba, circulava outra fita de veludo que terminava ao lado com um laço de pontas soltas. Era aí que se fixava o penacho ou pluma com farta penugem tingida de preto e que realçava com todo o seu conjunto o pequenino chapéu, colocado sobre a cabeça com ademanes de natural galanteria. Este chapéu, tão original e característico, emprestava à sua portadora uma certa beleza e um colorido tão regional, que marcavam e faziam atrair sobre ela as atenções, aliás respeitosas, sobretudo dos estranhos, e realçando-lhe mesmo as belezas naturais e tornando-a objecto de simpatias muito afectuosas e muito afáveis. Passou a moda e a tricana só usa hoje o lenço sobre a cabeça».


SAIA

«O tecido de que era confeccionada a primitiva saia da Gafanha não tinha passado pelas fábricas dos grandes industriais, nem pelos balcões das casas comerciais das grandes cidades, nem mesmo pelas mãos fidalgas e delicadas de costureirinhas profissionais. Tudo se preparava a dentro das próprias casas, cheias de fumo e desarranjadas. Tudo passava ao serão pelo fuso cantante da jovem camponesa, de tez tisnada pela torreira do sol; tudo era martelado pelo truc... truc... do tear, que gemia ao canto da casa nessas noites de serão, nessas noites de trabalho.

Na Gafanha abundavam sobremaneira os maninhos e os prados, e por isso não havia naqueles tempos, dizem, família alguma que não possuísse três, quatro, cinco e seis ovelhas, que os mais novos da casa por ali iam apascentar. Com os primeiros calores do verão o animal ofegava sob a lã farta e crescida. Tinha chegado o tempo da tosquia e o animal, amarrados os pés às mãos, sofre ofegante e pacientemente o zuc... zuc... da tesoura naquela operação demorada. Tirado o veldro que passava, depois pela lavagem, era em seguida escarpiado, cardado, fiado, tecido e finalmente posto em obra, o que tudo / 134 / se fazia em cada casa nas noites de inverno. Em todas essas casas havia ao começar o verão grandes teias de lã, fraldilha ou serguilha, que depois, ou mesmo durante o inverno, eram postas em obra, talhando e confeccionando com elas as mantas de cama, as saias, os mantéus, etc. Com tanta abundância desta matéria prima, e também porque era moda, a saia de fraldilha tinha de ser, como foi, a primeira saia conhecida na Gafanha. Era simples, com pregas, tendo ourelo na orla e rodada com quatro a cinco varas de fraldilha e sem enfeite algum(7). Note-se que todos os tipos de saia de que vamos falar, e bem assim os dos outros vestidos, eram usados tanto pelas pessoas adultas, como pelas donzelas.

Passou-se algum tempo e a esta saia aplicou-se-lhe exteriormente pela orla uma larga forra de baeta com pequeno debruamento para a parte interna. Esta forra de baeta só se usava nas saias de luxo. Veio depois a saia de paninho preto, ainda mais rodada e com fita ou forra larga de veludo a debruar para dentro também. Após esta começou a usar-se a saia de olho de azeite, de chita azul-escuro, planetada de flores cor de azeite e com 15 panos de roda. Costurados uns aos outros chegariam para um pano de barco moliceiro!... Em 1907 ainda existia uma na Encarnação, que foi desmanchada, e da qual se fizeram três saias, que certamente não deveriam ser... travadinhas!

A fita ou liga da orla era de lã e pregada de chapa, isto é, sem debruamento. A seguir trouxe a moda a saia de baeta com fita de veludo a debruar para dentro. Ainda apareceu a seguir a interessante saia de viés, confeccionada de baeta ou outro pano qualquer e com liga de rolo, larga, a debruar na orla, de fora para dentro. O viés era uma fita larga, com 6 cm de merino ou de cetim, paralela à liga de rolo, e distanciada dela vinte a vinte cinco centímetros. E vamos fechar esta secção com a descrição do berrante saiote vermelho que era as delícias das raparigas daquele tempo. Era urdido de baeta, espinhado (agora diríamos bordado) a pé de galinha ou a estrelas, em lã e a diferentes cores, com viés de veludo preto ou de algodão.

Este saiote luzia ao longe!... Era tentador... pelo que as donzelas muito gostavam dele. Mais tarde estes saiotes passaram a ser de flanela vermelha com duas fitas pretas, estreitas, pouco distanciadas entre si e distantes da orla dez centímetros. Era vestido de luxo, usado somente ao domingo (domingueiro) / 135 / para levar à capela, quer fosse de manhã à missa, quer de tarde ao terço e ainda se levava ao pasto para o gado, à fonte, etc. Às romarias, ou aos passeios, ou mesmo às festas da vila ou da cidade, levavam a saia de viés preta dobrada sobre o braço, e só a vestiam sobre o saiote vermelho quando entravam nas povoações do seu destino, ou no local das romarias. Ainda estava em uso em 1900.

Todos os tipos de saia, até cerca de 1900, desciam até ao tornozelo aproximadamente, e sobre ela e pela cintura, usavam à semana a cinta preta, com a qual, às vezes e por comodidade, subiam a saia até ao meio da perna durante os trabalhos na terra. Aos domingos e dias de festa usavam a cinta roxa, azul e às vezes vermelha com o nome da possuidora feito a torçal, não tendo outro efeito estas cintas senão ostentar luxo e beleza, e por isso só eram cingidas à cintura sem apertar, caindo as duas pontas posteriormente até à orla da saia, e às quais chamavam o rabo da cinta. Os homens também usaram estas cintas. Ainda aparecem de quando, em vez.

Depois vieram as muito conhecidas variedades da moda nas saias, mesmo travadinhas, tendo desaparecido as cintas.»


OUTROS VESTIDOS

«Só muito tarde se usou a blusa, que nos primeiros tempos não existia. Havia a camisa de pano cru, que desempenhava estas duas funções. Era rematada no pescoço e nos punhos por pequenos colarinhos, que às vezes, quando de luxo, terminavam com adornos de rendas estreitas, (bico de serra) e eram fechados por botões, tanto no pescoço como nos pulsos.

Estes botões eram confeccionados de pano somente, ou de tremoços cobertos de pano, sendo estes últimos muito inconvenientes, por amolecerem e desfazerem-se com a lavagem da felpa. Sobre a camisa vestiam o colete, também de pano cru, e que era a última felpa exterior a cobrir o tronco. Para as festas, romarias ou outros dias mais solenes, havia os coletes de droga ou de luxo confeccionados nas fábricas, com ramagens ou adornos muito bizarros. Nos mais modestos empregavam-se botões simples ou atacadores; nos de droga aplicavam-se quatro ou cinco pares de grandes botões de prata, a que chamavam abotoaduras.

Ainda estavam em uso em 1880.

Por motivos de pudor usavam-se uns grandes lenços de cor, enramados às vezes e com franja ou cadilhos, cujas pontas pendentes do pescoço se cruzavam pela frente para se trilharem na cintura, ou quando eram de maiores dimensões, depois do cruzamento pela frente, iam atar-se por detrás, na cintura. Havia um lenço, o lenço da cabeça ordinariamente de cache-nez, azul, e com franja de cadilhos. Mais tarde foi substituído por outro / 136 / cor de carne, com cercadura branca. Ainda a proteger o tronco na época dos frios usavam o Gibão e por isso dispensavam o lenço do pescoço, por desnecessário na sua função de manter o recato, que ficava a salvo com o uso do dito Gibão. Era esta peça de vestuário uma espécie de casaco de pano preto que mal chegava à cintura, com mangas, botões e guarnecido de fita preta. Usava-se em 1850.

Era uma espécie de Quinzena que os homens também usavam naquele tempo embora com talhe diferente. Sobre toda esta indumentária usava-se o Mantéu de fraldilha, espécie de opa sem abertura de passagem aos braços, e com tira de ourelo em chapa pela orla.

Apoiado sobre os ombros em volta do pescoço, sobressaía por cima uma espécie de gola, bastante saliente, chamada o Refêgo.

Era um pedaço da mesma teia de fraldilha, redobrado e repregado sobre si e cosido com o fio de vela, terminando na frente por duas fitas castelhanas para o segurar sobre os ombros.

Ainda se usava em 1885. Veio finalmente o Capote de bom pano e com talhe igual ao do Mantéu, mas muito mais comprido, chegando alguns quase ao tornozelo. Uma fita larga, de veludo, com arabescos ou lavrada em ramos, cobria em chapa a gola de bicos e as folhas pela frente e junto à orla.

Ainda se usava ao mesmo tempo a Mantilha Redonda, de pano fino que se diferençava do capote por ser muito mais curta, ter a gola redonda e desguarnecida a fita de quaisquer arabescos e tinha também abaixo da gola uma farta laçaria de compridas fitas de veludo, enlaçadas e à mercê do vento. Estas duas peças de vestuário ainda estavam em uso em 1880. Até esta época era rara a mulher que usava qualquer calçado, a não ser os tamancos, e só por ocasião do casamento os pais lhe permitiam usar as chinelas, que eram o calçado próprio de casamento, que depois era guardado religiosamente só para as festas mais solenes».

Ilustra-se suficientemente o trajo actual da gafanhoa com as nossas gravuras n.os 25 e 78; esta, de fotografia colhida em dia da Senhora da Saúde (último domingo de Setembro), na Costa Nova; pode dizer-se comum à Gândara, pelo litoral abaixo, pois assim o encontramos nas Gafanhas, Vagos, Mira, e até nas Gândaras de Leiria; verifique-se, por exemplo, a afinidade flagrante que existe entre os trajos desta grav. 78, da Gafanha, e os da n.º 60, dos arredores de Leiria; nestas usa-se menos a faixa, que nas Gafanhas é de rigor, chegando em Mira a diferenciar o estado civil da portadora: as solteiras usam-na encarnada, e, as casadas, preta; o agasalho que a gafanhoa lança pelos ombros ou traz dobrado, no braço, é um xaile, ao passo que a gandaresa de Leiria cobre-se com uma saia dobrada ao meio, dela / 137 / fazendo capote (fig. 60); é a saia de ombros, ou saia das costas, de castorina, e de serguilha também, que, aliás, noutros pontos do país se usa igualmente; já as antigas estampas de Bradford e de Manuel Godinho registaram esse curioso complemento do vestuário; no mais não se distinguem; o modo de deixar cair o lenço é igual, e o chapéu é o mesmo, vindo, para ambas as partes, de S. João da Madeira.

Fig. 78 − GAFANHOAS NA ROMARIA DA SENHORA DA SAÚDE NA COSTA NOVA  (Actualidade) 1941 (?)

Não permitem as nossas gravuras n.os 25 e 78 apreciar o colorido dos trajos da gafanhoa, elemento importante para a fixação da psicologia e da educação estética da mulher local. As preferências cromáticas desta gente desorientam muito o observador; quando não vestem de preto − que é o mais corrente, talvez pela elevada percentagem de lutos que a vida marítima dos homens provoca, como em Ílhavo igualmente acontece − as mulheres da Gafanha e de Mira não buscam a harmonia de tons que mais ou menos por toda a parte se procura obter; uma blusa verde-mar, por exemplo, tem a acompanhá-la, muitas vezes, saia azul, avental cor-de-rosa, lenço encarnado e preto, ou outra dissociação cromática idêntica, que fere a retina e fica incompreensível ao equilíbrio estético a que estamos habituados; com saia vermelho-carregado, anotámos frequentemente blusa branca, lenço verde de ramagens e avental azul claro; saia verde, blusa cor-de-rosa viva, avental azul claro debruado a branco, e lenço / 138 / amarelo, encontrámos nós também na romaria da Senhora da Saúde; etc.

É estranho, à primeira vista; mas onde tudo aquilo se valoriza e transforma, pela fusão de cores que então se opera, é nos bailes que se armam sobre as proas dos barcos moliceiros onde o pessoal fez a viagem, desde Mira distante, o Areão ou a Vagueira; num pequeno espaço − 4 escassos metros quadrados, nem tanto, talvez − volteiam cinco, às vezes seis pares, dançando a Farrapeira, a Chula, o Verde Gaio, o Folgadinho, o Vira, o Malhão, a Caninha Verde. É vê-las então, vibrando, ao ritmo do harmónio, da viola e dos indispensáveis ferrinhos, faixas e pontas do lenço ao vento, registo da Senhora da Saúde entalado no chapelinho preto de veludo e feltro, à mistura com o cravo ou a rosa de papel e arame, das floristas de Ílhavo de há muito afamadas, que o namorado ou pretendente a isso ofereceu, generoso e calculista:

Ai e ó ai!
Digo-te adeus, regalar!
Corre fama que sou tua,
Já te não posso deixar...


E virou!
E vai ao meio!
Certo, certo sem parar...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ,

As penas do Verde Gaio
São verdes e amarelas;
Não me toques, senão caio,
Não me tenho nas chinelas.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Costa Nova nada vale,
Aveiro vale um vintém;
Ílhavo vale um cruzado
P'las lindas moças que tem.
                (Recolhido em 1907).


Vai tudo certo,
Folgadinho, certo, certo;
Vai tudo certo,
Folgadinho, certo não.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Manuel, tão lindas moças,
             Manuel!
Manuel, tão lindas são!
Manuel, quero-te muito
             Manuel!
Mas casar contigo, não...(8)
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
/ 139 /
Adeus, adeus, Costa Nova
Até ao ano que vem!
Deus nos leve e Deus nos traga
E nos junte mais alguém...


Alegria aliciante, comunicativa, que logo se transmite ao areal onde o moliceiro abicou, aí se formando nova roda a cada momento engrossada por outros pares que não resistem ao apelo ancestral, e que acorrem de longe em marcha, comandados pela viola de arame martelando a Ribaldeira, cadência marcada pelo tambor e pelo estralejante bater das mãos de todo o rancho, ali ficando depois pela noite dentro até de madrugada...

Senhora da Encarnação, Senhora da Saúde, São Paio da Torreira, Senhora das Areias... romarias da beira-Ria, do cenário inconfundível da laguna e dos areais doirados, quando vos descobrirão os pintores de Portugal e o turismo oficializado dos guias e dos roteiros?...

Onde encontrar mais típicos motivos para estilizações coreográficas, hoje tão afanosamente rebuscados para regalo de Lisboa que desconhece Portugal, do que entre este alegre e estranho povo, que baila e canta tendo por tablado a proa dum moliceiro e por fundo velas e mastros a entre cortar a tremulina que irradia do cobalto da Ria, encandeia a vista e entontece toda a gente de saudade e deliciosa angústia?

Tenho peregrinado de lés a lés a costa portuguesa, e observado como vive o povo, trabalha e folga; em luz, movimento e cor, nada conheço que se compare às romarias da Ria de Aveiro!

*

*     *

Por toda a Beira Litoral a mulher do povo, no trabalho, hoje em dia, veste blusa e saia, raramente vestido inteiro; reserva este para o domingo ou dia de festa, e, mesmo assim, quase só para o interior da Província se usa; a camisa, outrora de mangas à vista, apertando no pulso e terminando por uma rendinha ou frioleira, é agora exclusivamente roupa interior, apenas com um rudimento de manga e grande decote, começando já a rapariga a usá-la sem mangas nem cabeção, suspensa aos ombros por alças, irradiação da moda senhoril; sobre ela assenta o colete de pano cru ou de sarja, de atacadores, para apertar o tórax e conter os seios; uma vez ou outra há ainda um chambre ou um corpete ligeiro; e então, vestuário exterior, a blusa que varia de tecido conforme a estação.

Nas cidades e centros de população mais desenvolvida, vai-se generalizando a combinação e o soutien-gorge, sobretudo entre criadas de servir, raparigas das fábricas e costureiras. Sempre as mesmas causas a actuar da mesma forma. / 140 /

A blusa, absolutamente generalizada hoje, veio substituir uma peça do vestuário feminino que por completo desapareceu nesta Província e que antigamente em toda a parte se encontrava: o colete exterior. Já em pinturas portuguesas do século XVI ele se mostra, e seguramente provém do trajo medieval.
 

No estrangeiro foi usado igualmente pela camponesa, como documentam gravuras que possuo de França, Suíça, e Espanha; antigas, e de há poucos anos também. Não é fácil determinar a irradiação para o nosso país.

Usou-se entre nós até final do século passado; a vulgarização da moda francesa do chambre e da blusa acabou por o desterrar do uso diário, ficando apenas em regiões onde era parte componente de trajo especial, catalogado e inalterável, como no Minho.

Era graciosíssimo; modelava o busto, e como, por via de regra, o faziam de tecidos de cor, contrastava admiravelmente com a brancura da camisa, desenhando sobre ela os seus recortes ou debruns de fita de lã; a mulher de então não usava ainda xaile; e mesmo para o final do século passado, só muito raramente o punha; andava em corpo. Se queria agasalhar-se sem recorrer ao pesado capote ou ao mantéu, lançava pelas costas um lenço dobrado em bico, que vinha cruzar no peito, atando-se depois as pontas atrás, na altura da cinta (fig. 35).

O colete de tipo mais pobre, de uso diário, apertava por meio de cordões que passavam em ilhós, dum lado e doutro; mas em dias de festa havia sempre uns botões de prata, maiores ou menores (por vezes muitíssimo grandes) que por meio duma travinca, ou dum elo, do mesmo metal, uniam as duas abas do colete.

Literariamente, foi-nos conservada a lembrança deste colete nos descritivos acima transcritos, do Conselheiro FERREIRA DA CUNHA E SOUSA e do Reverendo RESENDE, para Ílhavo e imediações.

Conservo ainda de memória a impressão de tão lindo trajo, que pude ver a uso diário, mas no seu declínio já, em velhas mulheres da Gafanha; e durante anos seguidos assisti, maravilhado e contente. − menino ainda − ao cortejo do dia de Reis que do Vale de Ílhavo descia à vila, onde então exibia a dança medieval da Barroquinha, entrelaçando os pares, enquanto volteavam, fitas de cor em torno dum mastro enfeitado, sustido pelo porta-bandeira do rancho, no meio da roda, na praça de Ílhavo.

São coisas que não esquecem mais; cores e movimentos que a retina fixou para sempre, álbum de imagens que a saudade desfolha constantemente, e pela vida fora nos acompanha.

Vestiam também o tal coletinho, essas pastorinhas do cortejo de dia de Reis (fig. 34), e pareciam figuras arrancadas a um presépio dos nossos barristas de outrora(9); coletes ricos, pretos, / 141 / encarnados, azuis ou cor-de-rosa; de veludo ou de sedas antigas, e botões de prata, todos luzentes, que dos bragais de suas mães e avós nesses dias de festa saíam, à mistura com os grossos cordões de ouro, de estrelas dependuradas, os colares de contas que eram o encanto dos olhos, e as arrecadas de aljofres para as orelhas, pesadas mas cheias de distinção.

Fig. 79 − ARRECADAS DE ALJOFRES
(Ouro, esmaltes brancos e verdes, e pérolas) − Século XVII − Gravura extraída do livro de ROCHA MADAHIL, História e Etnografia, bases para a organização do Museu Municipal de Ílhavo; 1934.

/ 142 /
Pois toda a Província se vestiu assim, ainda até aos últimos anos do século passado. Chamavam-lhe por vezes
corpete; e na região de Leiria era conhecido pelo nome de roupinha.

Fig. 80 − LAVADEIRAS D0 RIO MONDEGO, EM COIMBRA
Antes da construção da ponte metálica, que foi principiada em 1873. Aguarela de ROQUE GAMEIRO, reproduzida a cores na capa da Ilustração Portuguesa, de 30 de Agosto de 1909.

As nossas figuras 8, 9, 16, 17, 23, 26, 31, 33, 34, 35, 46, 47, 52, 53, 55, 68, 70,76,77, documentam a forma e atestam a repartição geográfica do colete na Beira Litoral.

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(1) O lenço de bobinete, tecido fino a que os modernos dicionários dão a equiparação de filó, usava-se também na Galiza. JOSÉ SEIJO RUBlO, no Boletín de la Real Academia Gallega (ano XX, núm. 175, de 1 de Set. 1925, pág. 72) falando da exposição do trajo regional espanhol e da participação que nela tomou a Galiza, não esquece... la artística cofia y el pañuelo de bobinet con que se engalanaban nuestras mujeres aldeanas en sus dias de fiesta... 

(2) Com a variante, também então ouvida: É rival da.

(3) Etnografia e História − Bases para a organização do Museu Municipal de Ílhavo; Ílhavo, 1934.

(4) Rita da Moleira, foi, no seu tempo, uma beldade da terra, que fez as delícias de certo secretário da Administração; tinha, há 60 ou 70 anos, uma tendinha nos baixos da casa onde hoje se encontra instalado o Museu de Ílhavo, na extremidade Norte.

Cambeia é a ponte da Gafanha, perto do Forte, assim chamada; é possível que a alusão toponímica se relacione com a construção da ponte.

(5) Todos os estrangeiros que visitam Portugal notam com estranheza nas suas memórias de viagem que a mulher do povo transporta à cabeça as mais pesadas e inconcebíveis cargas; e a Imprensa, por vezes, lança campanhas que intitula humanitárias contra a retrógrada usança. Pois as Academias de Beleza e os cursos de ginástica estética obrigam hoje as suas clientes a prolongadas marchas (nos seus salões de tratamento, bem entendido...) com grandes pesos sobre a cabeça... para engrossar o pescoço, fortalecer o tronco, e para elas aprenderem a andar com firmeza e elegância.

As contradições e a incoerência da Civilização, a par com a leviandade de certas generalizações demasiado apressadas mas vulgares em nossos dias...

(6) (6) Alteador se chama a esse atilho (evolução da antiga faixa) em certas zonas da nossa Província: registámos o termo em Coimbra, Torre de Bera e na Gândara da Guia a Leiria. Nesta cidade fabricavam-nos com fio entrançado os presos da cadeia, e aí se vendiam; há 30 anos, pelo menos.

(7) Tinha quatro a cinco varas de roda ou de circunferência pela orla e descia da cintura até próximo do tornozelo. Em cada vara gastava-se um arrátel de lã, de modo que se gastavam quatro a cinco arráteis de lã em cada saia, não incluindo o caberão da saia, que era aparte superior dela, e que no seu arranjo ficava costurada em sentido horizontal à parte inferior que por sua vez ficava em posição perpendicular no sentido da teia.

(8) Com a variante do último verso, também lá ouvida: Amor do meu coração.

(9) Com esse vestuário se apresentou uma fotografia «Fiandeira de Ílhavo» ao concurso da Ilustração Portuguesa de 1900 para se eleger a terra de mais lindas mulheres de Portugal; foi premiada em 6.º lugar, tendo obtido o 1.º prémio outra fotografia de Ílhavo também, mas de tricana da época.

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